EdT57 — A Espiral do Tempo gosta de datas redondas, naturalmente, e estas até têm mais encanto nos tempos angulosos em que vivemos. A BMW faz cem anos numa altura em que a revolução bate à porta da indústria automóvel. Justificava-se, portanto, falarmos com o Diretor Geral do Grupo BMW em Portugal, Mário Fernandes, e tentarmos perceber o tanto que vai mudar na nossa mobilidade individual, e como é que uma marca centenária se preparou para o admirável mundo novo automóvel com que nos vamos confrontar brevemente. Mundo esse para o qual ela, BMW, está, decididamente, a contribuir.
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Versão integral da entrevista publicada no número 57 da Espiral do Tempo (outono 2016)

A BMW está a celebrar os seus 100 anos, e, para assinalar a data, lançou a sua ambiciosa visão do futuro automóvel. O que há de comum entre o vosso passado e a projeção que fazem do futuro?
Todos os nossos marcos temporais dos últimos 100 anos revelam um mesmo fio condutor, uma mesma capacidade para, em cada momento, prever aquilo que vão ser as necessidades e as alterações de comportamento dos consumidores, e arranjar soluções para elas. É esse o nosso fio condutor, a capacidade que o Grupo sempre teve de olhar para o futuro e encontrar soluções à frente do seu tempo. Mais uma vez, é isso que estamos a fazer, alterando o conceito de construtor. No Grupo BMW, sempre fomos ativos e não reativos perante as coisas.
Agora, defina futuro. Estamos a falar de quanto tempo até que aquilo que o Vision Next 100 propõe seja uma realidade?
Um horizonte temporal de dez anos.
E o que é que essa proposta tem de futurista, além do design?
Antes de falar das caraterísticas do automóvel, vou justificar porque é que apareceu este automóvel, esta visão do futuro. No Grupo BMW, acreditamos que a indústria automóvel vai mudar mais nos próximos dez anos do que mudou nos últimos 100 anos, e isto não é um cliché, é uma realidade do setor. Sabemos bem os impulsos que foram dados ao longo destes 100 anos, e que foram significativos, mas sem dúvida nenhuma que as coisas vão evoluir muito mais nos próximos dez anos do que evoluíram nos últimos 100 anos, na indústria automóvel. São quatro os fatores que vão condicionar as opções de futuro no que respeita à mobilidade individual: a urbanidade, a sustentabilidade, a digitalização e a partilha. Teremos uma mobilidade individual que será autónoma, será conectada, será elétrica e será partilhada. Cada uma destas caraterísticas tem um papel importante a desempenhar. Hoje em dia, nos ambientes urbanos, as pessoas precisam de tempo e, nos próximos dez anos, o fluxo de população para os grandes centros urbanos vai-se acentuar. As pessoas não vão ter disposição para estar tanto tempo dentro de uma viatura, numa fila, só para se deslocarem do ponto ‘a’ para o ponto ‘b’. Vão querer utilizar esse tempo de forma mais eficiente e fazer um conjunto de coisas durante a deslocação. Hoje, já foram dados passos importantes em matéria de condução autónoma, mas acredito que nos próximos anos, e neste caso estaremos a falar de cinco anos, ela será uma realidade. Os baby steps que temos dado rapidamente vão converter-se em grandes passos, e isso fará com que a mobilidade individual passe a ser muito mais autónoma. A questão da conectividade, por razões óbvias, tem que ver com a digitalização, com a necessidade que hoje as pessoas têm de estar conectadas com o mundo. Cada vez mais, os smartphones estão conectados com a viatura, estão conectados com as nossas casas, com um conjunto de sistemas que hoje já estão presentes na nossa vida. Há coisas que já existem e, concretamente, na BMW já demos passos avançados no que respeita à de conectividade, mas ela será muito mais acentuada nos próximos anos.

A questão da eletrificação das viaturas tem muito que ver com a sustentabilidade e consciência ambiental, mas também envolve legislação. A União Europeia definiu metas que temos de cumprir; todos os construtores têm, aliás. Até 2020, temos de respeitar o limite de 95 gramas de emissões de CO2 por km, e esta é uma meta para a qual temos estado a caminhar. Estamos próximos. No caso do Grupo BMW, acabámos o ano de 2015 com um registo de 127 gramas de emissões de CO2 por km. Temos de chegar aos 95 gramas, e isto só será possível através de veículos elétricos, veículos zero emissões, ou veículos híbridos. Será o conjunto dos dois sistemas que vai permitir atingir esses objetivos. Por outro lado, a consciência ambiental dos cidadãos também está a fazer com que este percurso dê passos muito rápidos. Em Portugal, o mercado dos veículos elétricos e dos híbridos é ainda residual, mas é o segmento que mais está a crescer. Acreditamos que, no mundo, na Europa e também em Portugal, ele vá crescer significativamente. Neste momento, já temos mercados europeus a discutir legislação, no sentido de proibir a venda de veículos a combustão nos próximos dez anos. A Holanda, a Noruega, a Alemanha já estão a discutir essa legislação, e essa proibição significa que a eletrificação vai ter de acontecer muito rapidamente. Finalmente, a mobilidade partilhada porque, sobretudo as novas gerações, não percebem o conceito de posse que nós tínhamos até há pouco tempo. Têm uma perspetiva completamente diferente relativamente à mobilidade, e o conceito é o da utilização, e não o da posse. As gerações mais novas não percebem porque é que se utiliza um veículo para ir de casa para o emprego, onde fica parado imensas horas, e depois vai para casa onde fica outra vez parado — o que quer dizer que, em 24 horas, a utilização diária do veículo é muito reduzida. E isto deve ser passado para semanas, meses, anos. Diria que, na primeira década deste século, já passámos de um conceito de posse para um de utilização, e é assim que aparecem os produtos financeiros. Mas a questão da partilha irá mais longe, para plataformas de car sharing. Depois de 100 anos como construtor de viaturas e como fornecedor de produtos e de serviços de pós-venda, a BMW prepara-se para ser fornecedor de projetos de mobilidade individual e de serviços digitais. O automóvel vai crescer como um meio para fornecimento de serviços de mobilidade individual.
A relojoaria tradicional tem um novo desafio: os smartwatches. Põe-se a questão de se devem ser as marcas que estão ‘para aí viradas’ a incorporar as competências para a sua produção — o que significa um ‘mundo’ de investimentos — ou se devem desenvolver parcerias com quem já domine essas plataformas. Já que as vossas competências incluem construir motores, carroçarias etc., como é que estão a proceder relativamente ao desenvolvimento das plataformas digitais? Fazem-no internamente ou procuram parcerias?
Até agora, o Grupo tem-se caraterizado por uma grande independência, adquirindo naturalmente know-how, o que é visível na tecnologia do BMW i3. Estes foram os primeiros veículos elétricos a serem construídos de raiz, e isto significa que não nos limitámos a pegar numa carroçaria normal e colocar uma bateria lá dentro. Desenvolvemos o veículo de origem — daí o slogan «born electric». Desenvolvemos tudo o que é necessário para que o veículo elétrico possa proporcionar aquilo que tem sido e que vai continuar a ser o nosso slogan, o prazer de condução. Como é que se consegue ter o prazer de condução num veículo elétrico? Isso leva-nos à necessidade de ter, entre outros componentes fundamentais, carroçarias em carbono, que vêm substituir o alumínio. O que fizemos, neste caso, foi adquirir fábricas de carbono e desenvolver a tecnologia dentro do Grupo. Isto são processos longos. A submarca BMW i apareceu há três anos, mas a sua conceção estava a ser analisada muito antes, e isso permitiu-nos desenvolver as tecnologias necessárias, com a matéria-prima necessária.

Redução de emissões e prazer de condução também parece contraditório. Como é que isto se consegue?
No caso da BMW, liga-se muito esse conceito do prazer de condução à gama M, viaturas de 500 cavalos ou mais, que são veículos altamente poluentes. Como é que se consegue conciliar estes dois objetivos? Temos a resposta nestes produtos da submarca BMW i, e outros se seguirão. O modelo BMW i8, uma viatura híbrida, é a possibilidade de os nossos clientes conduzirem hoje o carro desportivo do futuro. Como é que é possível ter prazer de condução com uma viatura elétrica? Trabalhando ativamente em vários fatores, nomeadamente, reduzindo substancialmente o peso das viaturas, e é aí que entra a questão do carbono.
O prazer de condução é, de facto, uma assinatura da BMW, mas não vão os veículos autónomos dar cabo do conceito?
[risos] Não. É outra contradição aparente, mas posso-lhe garantir que vamos encontrar a solução. Não quero levantar muito o véu.
O Vision Next 100 passa por fornecer essas alternativas.
É, passa por aí. Criar produtos para cada uma das marcas do Grupo. Temos o MINI Next Vision, o BMW Next Vision, o Rolls Royce Next Vision e a BMW Motorrad Next Vision, e, portanto, em cada uma das marcas, temos um produto que ilustra a forma como nós vemos o futuro.
As implicações deste futurismo são enormes, há toda uma economia que vai ser alterada, porque haverá menos componentes, menos lubrificantes, menos mecânicos, tudo isso será muito menos necessário. Há uma economia que vai desaparecer ou alterar-se significativamente.
Está a tocar numa questão muito importante. A revolução de que estamos a falar vai além das questões do produto, vai àquilo que estas alterações de produto implicam — uma revolução no modelo de distribuição que se faz hoje, por exemplo. Existe uma rede de retalho em que uma componente muito importante do seu negócio são os lubrificantes, porque o óleo ‘pinga’ todos os dias, e as margens nos lubrificantes são margens interessantes. Ora, essa é uma componente importantíssima da faturação dos concessionários que tende a desaparecer. É evidente que temos um parque circulante que vai ajudar a atenuar esse efeito, mas este é um processo que vai acontecer rapidamente. O modelo de distribuição na indústria automóvel vai ter de ser alterado e os concessionários passarão a ter uma atividade completamente diferente. Aqueles que estiverem menos atentos e permanecerem dentro daquilo que são os padrões que a indústria automóvel tem tido nos últimos tempos vão ter muita dificuldade em sobreviver no futuro.

Na Alemanha, já se discute a possibilidade de, até 2030, daqui a 14 anos, todos os veículos terem de ser elétricos. Independentemente de as coisas virem a ser assim, ou durarem mais ou menos ano, a leitura que eu faço é que, lá, o Estado e as empresas estão a caminhar em conjunto.
Sim. Desejavelmente é isso que deve acontecer. Em Portugal, estamos muito atrasados, tanto comparativamente com a Alemanha — que, enfim, é um mercado muito desenvolvido —, como também em relação a outros países que não são produtores nem têm construtores automóveis. Os mercados nórdicos, por exemplo, estão muito à nossa frente. Isso acontece porque o Estado promove o desenvolvimento das consciências ambientais. As novas gerações podem ter uma sensibilidade grande para as questões da sustentabilidade, mas não há dúvida de que as decisões que se tomam em relação à aquisição de uma viatura continuam a ser, sobretudo, racionais. Nos mercados que referi, há vários incentivos em vigor, não só na fiscalidade, mas, também, no não pagamento de portagens ou de parques de estacionamento, na criação de vias de circulação exclusivas, todo um pacote de infraestruturas que promove essa consciência ambiental. A Noruega é o mercado que mais viaturas BMW i vende em toda a Europa. Perguntei ao meu colega norueguês como é que isto acontece. Ele dizia-me «é uma decisão racional» em que, feitas as contas, as pessoas percebem que têm uma vantagem grande. Não é só uma questão emocional, as pessoas chegam racionalmente à conclusão de que é melhor comprar uma viatura elétrica porque o Estado lhes dá incentivos que justificam essa decisão.
Há dias, vi um programa num canal internacional em que se previa que, no espaço de uma década, começarão a ser proibidos veículos com condutor nos centros das grandes cidades. A discussão era à volta do que isto implica e da preparação que as cidades terão de fazer.
Tem de ser assim mesmo.
Mas isto implica que as cidades comecem a pensar nisto.
Aquilo que eu referia há pouco sobre as novas tendências da urbanidade vai inviabilizar a circulação nos grandes centros urbanos. Este é o futuro. Claramente, as viaturas terão de ser autónomas, elétricas, conectadas e partilhadas.
Inclusivamente, já se está a discutir quem é que vai pagar os seguros, no caso dos veículos autónomos, porque não será quem adquire o veículo, mas vocês, os produtores.
Sim. Em matéria de legislação, muita coisa vai acontecer. A condução autónoma tem riscos elevados e há impactos colaterais que não passam só por ir, tranquilamente, dentro da viatura. Há muitos impactos, há riscos relativamente à estrada, aos outros veículos, ao trânsito, e, por isso, é fundamental que estes passos sejam passos seguros e que sejam suportados do ponto de vista legal. Portanto, também relativamente ao modelo tradicional na área dos seguros, muita coisa vai mudar.

Até porque durante determinado período, os autónomos vão conviver com os veículos com condutor.
É verdade.
Com isto dos veículos autónomos, vamos perder uma competência motora, uma destreza própria da condução. Já deixámos de saber montar o esquentador e as torneiras que precisam de ser substituídas em casa. Qualquer dia, não temos competências manuais. Isto também implica uma transformação social, civilizacional… sei lá.
Sim, é verdade. Esta revolução pela qual a indústria automóvel vai passar provocará impactos sociais muito grandes. O próprio conceito de partilha vai fazer com que, socialmente, muita coisa mude muito rapidamente. Aqui no Lagoas Park há um sistema de car sharing da Hertz com 15 BMW i3, que é um exemplo de um futuro que já está aí. Você chega lá, tem uma aplicação da Hertz, faz os procedimentos, pega na viatura e vai para onde quiser. Eles, para já, apostaram nestes parques empresariais, têm presenças no aeroporto, no centro da cidade, em pontos estratégicos, e é uma solução muito cómoda. Lembro-me de que na conferência de imprensa onde apresentaram este produto deram o exemplo do percurso entre o Lagoas Park e o aeroporto. De táxi, custaria 26 euros; na Uber, custaria entre 16 euros e 20 euros, e eles alugam a viatura por 9 euros/hora. Sendo nós uma multinacional, temos muitas pessoas que nos visitam regularmente e eles utilizam muito este sistema. Estes fluxos, que existem ainda de forma residual no mercado português, vão aumentar significativamente, e posso dizer-lhe que, para o primeiro semestre do próximo ano, estamos a planear lançar uma solução muito forte de car sharing com viaturas do Grupo BMW.
Perante tão ‘verniano’ cenário e tendo a BMW começado pela produção de motores para aviões, a produção de veículos aéreos, se assim se pode chamar, é uma possibilidade para a BMW num futuro um pouco mais distante, daqui a uma ‘brutalidade’ de 30 em vez de dez anos?
[risos] Bom, num horizonte temporal de 100 anos, não excluo essa possibilidade, de regressarmos às origens.
Esta é a indústria mais ágil do momento?
Eu acredito que sim. Em retrospetiva, considerando os últimos 100 anos, diria que não, que houve indústrias que progrediram mais, mas, neste momento, a indústria automóvel está com uma evolução tremenda, pelo que acredito que é, neste momento, das indústrias mais avançada.

Quando todas as marcas avançarem para este futuro, o que continuará a distinguir a BMW?
[risos] O prazer de condução. A BMW tem-se caraterizado por não ser apenas um construtor. A BMW cria emoções, cria paixão, cria fascínio pelo mundo automóvel. Somos uma marca premium com um caráter aspiracional muito forte. Por isto, pelo prazer de condução, pelas emoções que criamos, pela paixão, pelo fascínio que a marca suscita. Acredito que estes, que foram os fatores diferenciadores nos últimos 100 anos, vão continuar a ser os fatores diferenciadores nas próximas décadas. Como é que isto se faz? Bom, começando no produto, no design, na tecnologia, mas também passando pela forma como se trabalha a marca, pelos investimentos que se fazem. No caso concreto do mercado português, sempre sentimos muito este caráter aspiracional da marca, e é isso que nos tem permitido obter o crescimento que temos tido. Em 2005, éramos a 13.ª marca automóvel no mercado e hoje estamos no top 5. Este ano, vamos fazer o nosso melhor ano de sempre, mas já o ano passado o tinha sido. Aliás, é a primeira vez que isso acontece na história da marca em Portugal, dois anos consecutivos como os melhores de sempre, em todas as marcas e em todas as áreas de negócio. Isto traduz a nossa capacidade para alimentar o caráter aspiracional da marca. O que acontece é que qualquer consumidor tem a marca no mundo dos seus sonhos. Trabalhar o caráter aspiracional da marca passa por isso, por trabalharmos não só os nossos atuais clientes, mas também por trabalharmos muito os novos e potenciais clientes. O que sucede de uma maneira geral, e que é muito visível nas empresas que têm grelhas de viaturas de serviço, é que se um BMW estiver nessa grelha, e se o cliente tiver a oportunidade de optar entre uma marca generalista, mesmo que fortemente equipada, e um BMW com menos equipamento, optam pelo BMW. E porquê? Porque no subconsciente das pessoas está este caráter aspiracional que carateriza a marca. Acredito que, nos próximos anos, como nos anteriores, vamos continuar a ter capacidade para produzirmos automóveis que despertam emoções e paixão.
Isso tem tudo a ver com o mundo da relojoaria: a paixão, as emoções, o caráter aspiracional que a relojoaria mecânica em geral, e certas marcas em específico, têm. E da mesma forma que a relojoaria suíça assume claramente a sua origem, vocês também assumem — e não podem deixar de o fazer — que são uma marca alemã. Continua a ser um ADN do qual não prescindem e que vende.
Claramente. Sim, está no ADN da marca e isso nota-se no rigor, na qualidade, na robustez dos produtos. Não é um cliché. Sempre com a preocupação de criar soluções que vão ao encontro das necessidades dos clientes.

Sobre as parcerias que o mundo automóvel e relojoeiro fizeram desde sempre: acha que estes dois universos, que produzem produtos aspiracionais e desejados com paixão, vão continuar?
Acredito que sim. Desde que os smartphones passaram a ter multifuncionalidades, passei a andar sem relógio. Um relógio, para mim, neste momento, é muito mais um acessório de moda. Falando de produtos premium e da conotação associada a estes produtos, considero que a razão de os deter está mais relacionada com isto do que com a sua função primordial, que era utilitária.
Ou seja, usa-os numa reunião mais formal, num jantar, mas não os traz para o trabalho todos os dias.
Exatamente, já não o utilizo com o mesmo objetivo. O relógio hoje já aparece como uma peça de arte que não se utiliza diariamente e se reserva para determinados momentos.
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