EdT52 — Parece inverosímil, mas a incrível história dos motores elétricos não começou numa oficina, nem com um mecânico. Começou com um sapo. Ao contrário dos sapos das fábulas juvenis, este exemplar já encomendara a alma ao criador — aliás, dele, restava apenas metade do corpo que, mesmo assim, suscitou, neste ano da graça de 1791, a curiosidade de um professor de Anatomia na Universidade de Bolonha.
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Crónica originalmente publicada no número 52 da Espiral do Tempo.
Introvertido por natureza, fadado por pressão paternal para a via litúrgica, da qual por pouco se libertou, mantendo porém acentuada espiritualidade, o italiano Luigi Galvani observou a metade do batráquio depositada na sua mesa de trabalho. Num daqueles gestos inesperados em que a ciência é pródiga, Galvani imaginou uma nova experiência: introduziu um fio de bronze pela espinal medula do sapo, empurrando-a até onde conseguiu, de forma a que ela envolvesse músculos e nervos. Como toda a Europa setecentista, Galvani estava fascinado com os fenómenos elétricos, moda chique das cortes dos últimos anos. A certo ponto da experiência, aparentemente por descuido, Galvani deixou cair o fio de bronze sobre o tampo da sua mesa de ferro. Para seu espanto, as pernas do animal escoicearam o vazio. Mexeram-se. O fisiologista repetiu, atónito, o exercício: os dois metais tocaram-se e o sapo, barbaramente cortado ao meio, continuou a chutar o infinito, como se lhe restasse um sopro de vida.

Galvani enunciou ao mundo a descoberta da «eletricidade animal», explicando que as pernas de um sapo morto produziam movimento percetível se alguns músculos e nervos estivessem ligados. A novidade galgou fronteiras e, como brinca o professor Fabio Bevilacqua da Universidade de Pavia, teve consequências desastrosas para a população europeia de sapos. Em Pavia, outro italiano, Alessandro Volta, mostrou interesse pelo trabalho, apesar de a sua personalidade ser totalmente diferente da de Galvani. Volta era autodidata e extrovertido, guardando reservas prudentes sobre as questões do espírito.
Tudo indica que Volta desejava somente reproduzir a experiência, mas, ao fazê-lo, deduziu nova conclusão: não era a eletricidade animal que explicava os coices do sapo. Tratava-se de eletricidade comum gerada pelo contacto entre dois condutores diferentes (o bronze e o ferro), ligados a músculos e nervos. Com Volta, nasceu o conceito de força eletromotriz e foi ele, anos depois, que descobriu que o contacto entre metais produz uma tensão elétrica que pode ser armazenada quimicamente. Em 1799, Volta construiu a primeira pilha do Planeta, antecessora das baterias e componente encontrada em todas as propostas de carros elétricos.
Desta incrível troca de argumentos entre sábios, a ciência ganhou o primeiro «órgão artificial elétrico» (a designação de Volta para a sua pilha) e um novo campo do saber — a eletrofisiologia — pois Galvani ainda provou que, mesmo sem contacto com metais, o sapo mostrava mais movimentos do que alguns avançados que os nossos clubes fazem evoluir nos relvados de futebol.

Três oportunidades falhadas
O debate sobre os méritos do carro elétrico face aos motores convencionais alimentados a gasolina ou gasóleo não é radical, nem é inédito. Na verdade, andamos a discutir o tema há mais de cem anos e, em três períodos históricos distintos, essa transformação de paradigma poderia ter ocorrido, não fossem a genialidade de um industrial americano, o comodismo humano e a nossa obsessão pelas escolhas mais baratas e simples.
Inventado em 1821 por Michael Farraday, o motor elétrico rapidamente se impôs sobre as alternativas a vapor ou a gás, sobretudo quando, uma década depois, o mesmo autor enunciou os princípios da indução eletromagnética (relação entre correntes elétricas e magnetismo), essenciais ao carro elétrico. Até final do século XIX, a nova tecnologia aplicada a veículos de transporte individual disseminou-se como as chamas de um incêndio. Em 1881, foi mostrado em Paris o primeiro veículo elétrico — um triciclo —, ao qual fora adaptada uma bateria de chumbo. No mesmo ano e na mesma cidade, o inventor Trouvé aplicou-a a um barco no Sena; em Londres, surgiram companhias de táxis exclusivamente elétricos.
As melhores mentes do hemisfério norte dedicaram os seus esforços a melhorar esta inovação. Thomas Edison (1901) testou baterias de níquel, com mais capacidade de armazenamento de energia. Ferdinand Porsche (1898) introduziu o primeiro híbrido na equação, apresentando um modelo com um motor convencional, cuja ação iniciava um gerador que, por sua vez, dava energia aos motores elétricos. Na Feira Mundial de Chicago, em 1893, foram exibidos seis tipos diferentes de carros elétricos, com evidente vantagem sobre os motores a vapor e a combustível, muito mais ruidosos, vibratórios e malcheirosos.
O primeiro golpe profundo nesta aparente história de sucesso foi dado por Henry Ford em 1904. O visionário industrial americano superou os problemas de odor, ruído e vibração com o seu modelo T, movido a gasolina, aparentemente inesgotável e barata. Iniciou uma linha de montagem de carros acessíveis e pouco onerosos. Em breve, as estradas estariam repletas de veículos mais móveis, mais autónomos e mais potentes. Para trás, bem ao longe, a braços com a arreliadora falta de autonomia das baterias e com a proverbial escassa performance do motor elétrico, rolava a frota silenciosa do carro elétrico — uma espécie em vias de extinção.
As duas guerras mundiais constituíram nova oportunidade de reabilitar o habitat do carro elétrico. A gasolina era escassa e requisitada para o esforço de guerra, tal como todos os veículos com motor convencional. Longe da linha da frente, restavam os veículos elétricos que, por breves instantes, viveram nova era de prosperidade. Em Inglaterra, frotas municipais de veículos de limpeza e abastecimento foram colocadas ao serviço e os camiões leiteiros silenciosos criaram um novo imaginário. Desenharam-se soluções nos Estados Unidos para as deslocações urbanas de curta distância, nas quais o carro elétrico, sempre muito limitado, conseguia fornecer resposta, até porque a eletricidade abundava. O fim dos conflitos, porém, restituiu a primazia dos carros convencionais.
A crise petrolífera de 1973 produziu o terceiro impulso que poderia ter catapultado o carro elétrico para a liderança do setor dos transportes, mas a indústria automóvel não mostrou engenho para superar as tradicionais limitações, confiando que o abastecimento de produtos petrolíferos voltaria à pujança de outrora.
As experiências industriais, como o Ford Comuta na Grã-Bretanha (1966), foram exasperantes, sublinhando os problemas de sempre: com baterias de chumbo, o pequeno veículo utilitário urbano não cumpria mais de 60 km a 40 km/h, mostrando também grande vulnerabilidade no inverno. Os carregamentos demoravam quase dez horas. A crise veio e passou. Os motores convencionais beneficiaram de mais quatro décadas de supremacia até o debate mudar de tema: da dependência de petróleo (que caprichosamente costuma esconder-se em sítios pouco recomendáveis do Planeta), migrou para as alterações climáticas, produzidas pelas emissões crescentes de dióxido de carbono para a atmosfera.

Múltiplos ângulos do problema
Karl Høyer, especialista norueguês em transportes e autor de valiosas resenhas históricas sobre a evolução do carro elétrico de que esta crónica é devedora, enunciou o problema que temos em mãos como um desafio civilizacional e não apenas como uma mudança tecnológica: ao longo do século XX, a sociedade fóssil cresceu a par da sociedade móvel, como gémeos siameses. A proposta de extinguir a primeira implica a transformação dos parâmetros da segunda. Estarão os consumidores europeus preparados para conduzir automóveis mais lentos ou com menos autonomia e com a obrigatoriedade de conceberem o ato de estacionamento em função da necessidade de recarga? Conceberão um sistema em que, para viajar de Lisboa ao Porto, poderão ter de mudar de carro em Pombal, abandonando o primeiro veículo para que este seja recarregado (os tempos mínimos de recarga cifram-se agora em quatro horas) e subindo a bordo de novo carro? Ou ponderarão comprar um carro para as deslocações urbanas, guardando um segundo veículo convencional para as grandes deslocações?
Os primeiros consumidores de veículos elétricos (e sobretudo híbridos) aceitaram adaptar a sua condução e os seus hábitos de estacionamento, adotando o veículo como statement urbano de consciência ecológica. Mas a vaga de fundo terá de ser convencida com argumentos mais persuasivos e económicos.
A indústria, pela primeira vez, dedica avultados volumes de investimento à investigação, testando baterias de chumbo mais baratas (ainda custam cerca de 1800 euros), com mais tempo de vida (em média, cerca de 20 mil km ou 200 descargas) e mais rápidos tempos de recarga. Em alternativa, emergiram as baterias de lítio fosfato de ferro, consideravelmente mais caras (cerca de seis mil euros), mas com autonomias mais amplas (200 a 300 km por ciclo) e com um tempo de vida muito mais duradouro (dois mil a quatro mil ciclos de carga, ou dez anos). Talvez a próxima geração de baterias já não careça de substituição, da mesma forma que a solução das células de combustível resolveria parte destes problemas, embora permaneça incerta e terrivelmente cara.
Os próprios híbridos, bem-sucedidos comercialmente, não são totalmente satisfatórios, pois já foi demonstrado que, num ciclo urbano, podem consumir 4,5 litros de gasolina aos 100 km em cidade e cinco fora dela, o que os torna semelhantes aos veículos convencionais mais eficientes.
E há ainda a questão da fonte de eletricidade, que faz tremer os ambientalistas de cada vez que se sugere que a China ou a Índia poderão substituir a sua frota convencional por uma frota mais numerosa e elétrica: em países como Portugal, onde a grelha normal de produção de energia elétrica já só tem uma componente de 30 a 40% de combustíveis fósseis, há uma evidente vantagem ambiental; nos gigantes asiáticos, a grelha de produção apoia-se em centrais a carvão. Onde estaria o benefício ambiental se a produção aumentasse para servir uma frota elétrica?
Horizonte 2050
A aceitação gradual das implicações das alterações climáticas e a respetiva demonstração de fenómenos inéditos, como as secas extremas em vários territórios, as inundações ou o poder autoexplicatório de catástrofes como o furacão Katrina, introduziram urgência no debate sobre a mitigação dos efeitos das emissões de CO2 para a atmosfera. E se muito já foi feito no capítulo da produção de energia elétrica a partir de fontes renováveis, o setor dos transportes continua a ser um icebergue quase imóvel, apesar de consumir uma percentagem relevante de combustíveis fósseis.

Como qualquer mudança comportamental, o processo levará tempo e será contestado. As grandes mudanças ocorrerão nas cidades, onde as necessidades de ar puro e de redução das emissões são mais palpáveis, onde os automobilistas se deslocam em distâncias curtas (a média na União Europeia é de 30 a 40 km/dia) e onde existem consumidores menos reticentes. A rede de postos de carregamento já começou a densificar-se e, em breve, rara será a rua que não disponha de postos para recarga. Viena, na Áustria, já ultrapassou a barreira dos 400 postos de recarga e outras cidades seguirão o exemplo.
As autoridades locais têm um peso decisivo nesta revolução. Londres já baniu o acesso ao seu centro aos veículos que produzam emissões, ao passo que outras cidades criaram faixas de circulação só para veículos elétricos. Em Grenoble (França), avançou um curioso projeto de car sharing, à semelhança do que existia para as bicicletas: os automóveis elétricos são municipais e o utilizador recolhe-os e devolve-os, à medida das suas necessidades.
O preço de produção é a variável mais incerta. Um relatório de 2012 da União Europeia concluiu que um carro elétrico apresenta um preço médio de venda ao público na ordem de 30 mil euros, mais dez mil do que os veículos convencionais médios. A diferença terá de ser compensada com incentivos, fiscais ou financeiros, por muito que os fabricantes tradicionais se queixem da discriminação. A própria indústria acordou para o desafio e, em 2014, anunciaram-se 17 novos modelos exclusivamente elétricos nos Estados Unidos. Em Portugal, o prometedor Veeco, um roadster de três rodas já homologado, tem autonomia para quase 400 km e iniciará a comercialização em 2016.
Em última instância, como advoga o sábio Gandalf em O Senhor dos Anéis, será no Homem que devemos depositar a nossa esperança. A história de amor entre a sociedade industrial e o seu automóvel será reescrita até 2050, ano em que o roadmap da União Europeia imagina cidades sem veículos convencionais e totalmente livres de emissões de CO2 resultantes dos transportes. Não será fácil: como o sapo de Galvani, a sociedade fóssil ainda dará coices mesmo depois de morta. Mas reconheçamos que, desta vez, o motor elétrico tem quase tudo a seu favor.
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