Arqueologia experimental — hipótese a hipótese

EdT57 — Há mais de um século que se conduzem experiências no campo da arqueologia, procurando recuperar… o irrecuperável. Hipótese a hipótese, constroem-se pontes para o passado.

Crónica originalmente publicada na Espiral do Tempo 57 (inverno 2016).

Imagemde abertura: Entalhe de madeira — A experiência sensorial do arqueólogo é decisiva para a arqueologia experimental, pois só a mão experimentada consegue reproduzir gestos precisos e certamente especializados do passado, como no entalhe de madeira. ©Prehistorical Skills

Apontemos a bússola para Kent, condado do Sudeste de Inglaterra, na ponta arrebitada da Grã-Bretanha que, vista no mapa, parece encolher-se em face do abraço oferecido por Pas-de-Calais, no lado francês.

Flaxman C. J. Spurrell (1842-1915) foi um homem ocioso. Filho de um médico, Flaxman nunca exerceu qualquer profissão — os seus biógrafos encontraram descrições suas nos vários censos britânicos, intitulando-se «estudante de Medicina» (curso que nunca concluiu), «geólogo» (embora nunca licenciado) ou simplesmente «sem ocupação». Flaxman Spurrell, porém, teve mais importância do que aquilo que os parâmetros dos censos poderiam contar.

Arqueologia experimental — Gastronomia
Gastronomia — Numa experiência em Tollund (Dinamarca), utilizou-se informação produzida pela análise do conteúdo estomacal de um indivíduo estrangulado cujo corpo fora preservado numa turfeira para uma inédita perspectiva sobre a dieta pré-histórica. Noutros contextos, a reconstituição gastronómica depende de factores ambientais e climáticos, associados aos dados do registo arqueológico. ©Prehistorical Skills

Na década de 80 do século XIX, acompanhou fervorosamente o movimento científico britânico, percorrendo avidamente as pedreiras do condado em busca de fósseis e artefactos que pudessem explicar a história do Old Man, a conceção vitoriana da fase pré-histórica do homem. Fez duas descobertas ainda hoje decisivas na arqueologia paleolítica britânica: os sítios de Ebbsfleet e Crayford, palcos de uma «curiosa mistura» entre fauna de zonas quentes e frias. Não foi apenas por isso que Flaxman Spurrell entrou para a história: em 1884, publicou o primeiro estudo validado, revelando as suas experiências de talhe de sílex. Meticuloso, Spurrell queria perceber de que modo o homem pré-histórico aperfeiçoara a matéria-prima disponível e a transformara numa ferramenta. Compreendeu também que, na história da evolução humana, não há só um caminho — há bifurcações, tentativas e erros, métodos que se testam numa geração e se abandonam na seguinte. Numa frase, Flaxman C. J. Spurrell inaugurou um campo prolífero da arqueologia — a abordagem científica da experimentação, construindo hipóteses e testando-as empiricamente. Deveria ser um nome celebrado na comunidade científica, mas «o homem silencioso de Kent», como lhe chamaram os historiadores Beccy Scott e Andrew Shaw, não figura nos manuais escolares.

As boas histórias podem começar de várias maneiras, mas não há maneira de prever a ressonância da narrativa junto do público. A narrativa sobre a origem da arqueologia experimental é um desses casos. Os nórdicos gostam de começar pelo ano de 1947 e pela viagem experimental do explorador norueguês Thor Heyerdahl, um zoólogo apaixonado pela etnografia decidido a provar que, a bordo de uma jangada de balsa, conseguiria vencer as dificuldades do oceano Pacífico e rumar da América do Sul à Polinésia.

A sua experiência mais bem-sucedida, a bordo do Kon-Tiki, foi tão política como científica — o governo peruano viu no empreendimento a oportunidade de reescrever uma página gloriosa da história indígena, alheia à influência colonizadora europeia, e concedeu todas as facilidades a Heyerdahl. A rota atribulada do Kon-Tiki provou, de facto, que, com tecnologia reduzida e matéria-prima disponível na selva amazónica, seria possível cumprir a viagem e iniciar a colonização do arquipélago perdido. Mas não provou — nem poderia provar — que foi, de facto, isso que sucedeu. «Certezas, não temos nunca! A frustração desta disciplina reside precisamente nisso», diz Pedro Cura, pioneiro da arqueologia experimental em Portugal e fundador da empresa Prehistorical Skills. «A busca nunca termina, pois há sempre mais uma variável passível de teste.»

As sociedades sem escrita, perdidas na bruma do tempo, fascinam-nos. Nunca poderemos reconstituir a sua mentalidade ou o seu sistema simbólico, nem ousar compreender como tiravam partido da matéria-prima e do território que ocupavam. Restam-nos artefactos, fósseis e vestígios de estruturas como minúsculas peças de um puzzle dinâmico, a três dimensões, cuja imagem completa nunca compreenderemos.

A descoberta de artefactos da pré-história para os quais antecipamos uma função abre um túnel temporal para o passado remoto. Nos séculos XVIII e XIX, emergiram magníficos instrumentos de som da Idade do Bronze preservados em turfeiras escandinavas. Naturalmente, os entusiastas — antiquários, curiosos, académicos e proto-arqueólogos — tentaram extrair «sons antigos», embora o facto de os instrumentos produzirem oito ou dez notas musicais não implicasse que os seus utilizadores originais o conseguissem fazer. Desprovidas de qualquer método, as experiências não tiveram particular valor científico — um caso, o de Robert Ball, de Dublin, foi até fatal. Depois de retirar uma nota grave de uma corneta feita a partir do chifre de um touro, soprando violentamente para o interior, rompeu-se-lhe um vaso sanguíneo e Ball morreria, tornando-se a única… baixa da arqueologia experimental até ao momento.

Arqueologia experimental — Talhe de sílex
Talhe de sílex — Na década de 1950, François Bordes, em França, testou vários modelos de aperfeiçoamento do sílex, compreendendo que a disponibilidade de matéria-prima influencia o próprio processo de talhe. Experiências posteriores têm revelado mais sobre o aperfeiçoamento deste material. ©Prehistorical Skills

Na segunda metade do XX, a arqueologia experimental foi dotada de um método empírico e de uma fundamentação teórica. Em França, François Bordes dedicou-se ardentemente às questões de produção associadas ao uso da pedra talhada e, na Dinamarca, Hans-Ole Hansen reconstruiu uma casa neolítica à escala real, com materiais disponíveis na região, cronometrando cada tarefa exaustivamente, de modo a obter uma estimativa provável da força de braços envolvida no processo. Em Portugal, a uma escala mais reduzida, o arqueólogo Manuel Calado conduziu igualmente reconstruções de estruturas megalíticas. «A experimentação tem de ser exaustiva», explica Pedro Cura, do Instituto Terra e Memória de Mação, polo principal desta disciplina no País. «O arqueólogo tem de encontrar uma problemática suscetível de tradução numa experiência. Depois, cabe-lhe imaginar um número considerável de variáveis controladas, lembrando-se sempre de que está a tentar reproduzir técnicas de que não precisa, ao contrário do seu antepassado. Por fim, terá de testar com precisão cada hipótese, obtendo uma amostra estatística relevante.»

Pedro Cura tem conduzido, na Europa e no Brasil, variados projetos de arqueologia experimental. No último verão, trabalhou no Parque Arqueológico de Campo Lameiro, na Galiza, num povoado da Idade do Bronze, demonstrando processos de preparação gastronómica — cortando os alimentos com as mãos e um cutelo de pedra, experimentando diferentes processos de combustão lenta, utilizando pedras para abrir frutos secos e tirando partido da envolvência ambiental e da tecnologia disponível há alguns milhares de anos.
As práticas culturais continuadas, como a agricultura, exigem modelos experimentais de longa duração, pois assentam em ferramentas já abandonadas e, com frequência, em variedades cerealíferas já diferentes das variedades modernas. «Essa é informação perdida», diz o especialista. «Nunca a reconstituiremos.»

Todavia, há informação de que esta disciplina pode recuperar. Num projeto recente, Pedro Cura cultivou cereais para poder testar hipóteses sobre o lustro identificado numa foice depositada numa sepultura neolítica. Teria sido produzida no próprio contexto do enterramento? Seria o uso repetido da mesma responsável por esse polimento? Ou seria o contacto com a sílica do próprio cereal que produziria esse efeito? «Testámos dezenas de foices e dezenas de gestos de corte, cronometrando cada variável. É um processo muito exaustivo, porque têm de ser combinados todos os parâmetros. Mas gera conhecimento.»

Apesar da facilidade com que uma experiência científica pode resvalar para domínios menos sérios («Não é considerado necessário vestir-se com peles de animais antes de talhar sílex, embora tal traje pareça ser muito popular entre alguns experimentadores», brincou John M. Coles em Experimental Archaeology), a arqueologia experimental tem a capacidade sensorial de sugerir novas interpretações e de (in)validar hipóteses vigentes.

Arqueologia experimental —
Crânios trepanados — Numa conferência do final do século XIX, o médico e arqueólogo Robert Munro conduziu experiências de trepanações cranianas, procurando reproduzir os mesmos orifícios encontrados em materiais ósseos de vários sítios arqueológicos. Foi uma das primeiras abordagens à antropologia médica da pré-história. ©Robert Munro, 1891

Na viragem para o século XX, Robert Munro, médico e arqueólogo amador, conduziu uma experiência espantosa a propósito de um crânio encontrado na ilha de Bute (Escócia) com marcas de trepanação. Munro queria explicar aos congressistas o tempo necessário para proceder a uma intervenção cirúrgica daquela natureza por um curandeiro que dispusesse apenas de instrumentos básicos. Demorou 50 minutos a produzir um orifício semelhante no crânio de um adulto, mas apenas quatro no de uma criança, concluindo que nenhum adulto poderia sobreviver à intervenção e que talvez as incisões fossem produzidas postumamente.

Enganou-se — não na experiência, mas na dedução das suas implicações. Em vários sítios arqueológicos do Mesolítico (incluindo em Portugal, como o belíssimo exemplar do Museu dos Serviços Geológicos, em Lisboa), surgiram crânios com marcas evidentes de cicatrização após trepanações semelhantes. Munro não incluíra no seu modelo a variável da resiliência humana para resistir ao sofrimento e sobreviver.

Hipótese a hipótese, a arqueologia experimental vai descobrindo mais sobre nós. ET_simb

Save

Save

Save

Save

Save

Outras leituras