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Um enclave de Genebra em Istambul

Durante quase dois séculos, em pleno coração do Império Otomano, uma comunidade de relojoeiros protestantes sobreviveu e prosperou, numa lição intemporal de coexistência pacífica entre duas civilizações. 

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Foto acima: Selim II no Palácio de Topkapi em 1789. A capital turca estava então quase fechada aos ocidentais. Nesta altura, viveriam em Istambul cerca de 1.600 pessoas ligadas à Congregação de Genebra. © Konstantin Kapıdağlı

Texto originalmente publicado no número 65 da edição impressa da Espiral do Tempo (inverno 2018)

Imaginemos um elevador no qual o piso 0 corresponde à atualidade. Sempre que o observador força o ascensor a descer, retrocede no tempo de forma a presenciar alguns dos momentos mais significativos da história que se vai contar.

A primeira descida leva-nos a recuar a 1517 e à discreta cidade de Wittenberg. Um professor de Teologia Moral da universidade local acaba de remeter um documento ao arcebispo de Mainz, mas não fica por aí. Dirige-se à porta do Castelo de Wittenberg — e, talvez, a uma das igrejas da cidade — e afixa aí uma longa lista escrita em latim. O gesto é mais simbólico do que útil: poucos conseguem descodificar as 95 Teses e menos ainda assimilam que, com esta denúncia da Igreja Católica e da prática de venda de indulgências dos pecados cometidos, Martinho Lutero está a produzir a maior rutura da história da Igreja.

JOHAN CALVINUS | Calvino introduziu as ideias de Lutero em Genebra a partir de 1536. O protestantismo trouxe uma consequência inesperada para os artesãos da cidade: os ornamentos e produtos de luxo foram proibidos em nome da austeridade espiritual promovida pelas novas ideias. (Imagem adaptada com base na gravura da autoria de René Boyvin.)
JOHAN CALVINUS | Calvino introduziu as ideias de Lutero em Genebra a partir de 1536. O protestantismo trouxe uma consequência inesperada para os artesãos da cidade: os ornamentos e produtos de luxo foram proibidos em nome da austeridade espiritual promovida pelas novas ideias. (Imagem adaptada com base na gravura da autoria de René Boyvin.)

No mundo germanófilo, o documento e o seu significado alastram como um fogo florestal. As 95 Teses alimentam o ressentimento de vários monarcas europeus contra o poder absoluto do papado e a sua insistência de que a primeira autoridade na Terra cabe ao papa. No mundo francófono, a rutura de Lutero demora um pouco mais a romper fronteiras, mas eventualmente chega a França e aos estados vizinhos.

Tomamos novamente o elevador.

Em 1536, acaba de chegar à cidade suíça de Genebra um jovem recém-convertido ao movimento de Lutero. Chama-se Johan Calvinus e introduz rapidamente a Reforma na cidade, então sob vassalagem dos condes de Sabóia. As sementes do protesto já existiam. Nos anos anteriores, a cidade mandara cunhar moedas com uma mensagem clara: «Após as trevas, a Luz.» É todo um programa ideológico que passa a estar em causa, mesmo que os comerciantes e artesãos das cidades não tomem de imediato consciência disso. Entre estes, existe um núcleo pujante de relojoeiros, motores da economia da cidade e pioneiros na longa história de envolvimento das cidades suíças com a relojoaria.

A Reforma tem naturalmente consequências importantes no tecido cultural e religioso da cidade, mas implica, quase no final do século XVI, em 1585, uma restrição devastadora: ao abrigo da Reforma luterana e do anseio coletivo de regresso à austeridade sagrada, proíbe-se o uso de ornamentos na cidade. O mercado dos produtos de luxo, até então uma força vital em Genebra, é travado por decreto. Só resta uma solução aos hábeis relojoeiros da cidade: encontrar outros mercados para a sua arte.

Regressamos novamente ao elevador.

Desde o cerco e a conquista de Constantinopla, em 1435, que a cidade turca atravessa sucessivas convulsões. Não voltará a haver uma liderança cristã no coração da Anatólia e o Império Romano do Oriente colapsa, por fim, com estrondo. Alguns historiadores consideram mesmo a tomada da cidade como o evento que coloca um ponto final na Idade Média.

As caixas dos relógios produzidos pelos artesãos da Congregação de Genebra, como estes exemplares conservados no Museu Patek Philippe (inv. S-156), inspiram-se no quotidiano, cores, texturas e paisagens do Oriente. © Patek Philippe Museum, Genève
As caixas dos relógios produzidos pelos artesãos da Congregação de Genebra, como estes exemplares conservados no Museu Patek Philippe (inv. S-156), inspiram-se no quotidiano, cores, texturas e paisagens do Oriente. © Patek Philippe Museum, Genève

Seja como for, Constantinopla, ou Istambul, como as novas autoridades reclamam (de forma a evitar qualquer reminiscência do império de Constantino), mantém o estatuto especial: é a porta de entrada no Levante e a cidade mais fascinante do mundo oriental. Com a pacificação das elites locais, em meados do século XVI, a cidade recupera a capacidade económica e concentra-se no luxo, nos produtos que ajudam a assinalar um estatuto social marcado. Naturalmente, os relógios ocidentais tornam-se desejados. Representam o cosmopolitismo dos homens viajados, a ligação às grandes capitais europeias e à sua tecnologia.

Não se sabe o momento exato, mas desta conjugação entre uma oferta disponível e seleta e um mercado desejoso de assimilar os relógios suíços nasceu uma parceria invulgar. Em breve, Genebra (que até à emergência de Neuchâtel como segundo polo relojoeiro em território helvético funcionou como capital da indústria relojoeira) colocou em marcha um plano ousado, implantando no coração do Império Otomano a única minoria protestante residente que se conhece na Turquia durante os séculos XVI e XVII.

Na verdade, esta história conta-se de trás para a frente, com nova entrada no elevador da história.

Em meados do século XIX, dois investigadores, Archinard e Heyer, descobriram os preciosos arquivos de correspondência comercial entre a Congregação de Genebra em Istambul e as autoridades políticas e espirituais na cidade-mãe. Foram os primeiros autores a validar uma velha história que se contava entre as famílias suíças da cidade — durante quase duzentos anos, houve um intenso intercâmbio comercial com a capital turca, conduzindo à instalação de dezenas de famílias no coração otomano. Enquanto os portugueses e espanhóis se batiam no Atlântico pelas preciosas especiarias, ouro, prata e escravos, os mercadores e artesãos de Genebra colocavam no Oriente o mais duradouro mecanismo inventado pelo engenho humano — o relógio.

ISAAC ROUSSEAU | Pai de Jean-Jacques Rousseau, trabalhou durante vários anos como relojeiro em Istambul. Coube-lhe a responsabilidade (entre outras) de assegurar o funcionamento dos pêndulos do Palácio Topkapi que, por sua vez, regulavam as horas de oração na capital turca. © Pintura da Coleção do Comité Europeu J.-J. Rousseau
ISAAC ROUSSEAU | Pai de Jean-Jacques Rousseau, trabalhou durante vários anos como relojeiro em Istambul. Coube-lhe a responsabilidade (entre outras) de assegurar o funcionamento dos pêndulos do Palácio Topkapi que, por sua vez, regulavam as horas de oração na capital turca.
© Pintura da Coleção do Comité Europeu J.-J. Rousseau

Então como agora, a reputação dos relógios helvéticos supera a de qualquer outra manufatura. A corte do sultão requisita-os. Os relógios de Genebra chegam até à corte do rei persa. Disseminam-se como símbolo de prestígio e modernidade e, em troca, os relojoeiros adaptam-se ao gosto muito particular do mercado local. A caixa do relógio é frequentemente uma obra de arte, uma homenagem à cultura onde o engenho vai penetrar.

Em Genebra, intui-se a oportunidade que espreita, apesar da concorrência da relojoaria francesa e inglesa — a primeira dispõe de laços diplomáticos consolidados com as autoridades turcas, a segunda rapidamente controlará os portos e o comércio marítimo com a Turquia. Resta uma única via — a do prestígio. A Congregação de Genebra bate-se durante quase dois séculos em duas frentes, procurando, por um lado, sublinhar a originalidade dos seus mecanismos relojoeiros e, por outro, guardando ciosamente a tecnologia.

Para Istambul, seguem artesãos capazes de reparar relógios, mas em momento algum desta saga comercial e espiritual se transfere toda a tecnologia para território otomano. Com os artesãos, viajam igualmente os chargés d’affaires, os responsáveis pelo negócio, que asseguram encomendas e garantem as entregas.

O sultão poupa estes estranhos súbditos que prestam culto a um deus diferente, frequentemente recorrendo aos serviços religiosos das embaixadas inglesa e holandesa. Autênticas dinastias familiares radicam-se na Turquia, partilhando segredos do negócio e prosperando, embora a investigação de Thomas David, o historiador que mais se dedicou a este episódio, tenha igualmente demonstrado que os suíços preferem comissões de serviço na capital turca, regressando à terra natal após alguns anos de trabalho intenso na inebriante Constantinopla.

Alguns são mais conspícuos do que outros. Há muito que se sabe que o próprio Voltaire, em meados do século XVIII, aproveitou a onda relojoeira e estabeleceu uma manufatura em Ferney cuja principal operação de exportação se dirigia ao mercado turco. Thomas David recuperou igualmente o exemplo de Isaac Rousseau, pai do notável Jean-Jacques Rousseau: entre 1705 e 1711, o patriarca trabalhou igualmente na relojoaria em Constantinopla, regressando a casa abruptamente, por insistência da esposa. «Eu sou o triste fruto desse regresso», chegou a escrever o autor d’O Contrato Social.

As caixas dos relógios produzidos pelos artesãos da Congregação de Genebra, como estes exemplares conservados no Museu Patek Philippe (inv. S-210), inspiram-se no quotidiano, cores, texturas e paisagens do Oriente. © Patek Philippe Museum, Genève
As caixas dos relógios produzidos pelos artesãos da Congregação de Genebra, como estes exemplares conservados no Museu Patek Philippe (inv. S-210), inspiram-se no quotidiano, cores, texturas e paisagens do Oriente. © Patek Philippe Museum, Genève

Não haverá, na história turca dos séculos XVI e XVII, outro exemplo vigoroso de permanência tolerada de uma comunidade protestante no coração do Império Otomano, então ciclicamente varrido por episódios de tensão espiritual. Mesmo sujeitos a acusações de apostasia, os relojoeiros de Genebra provaram ao sultão e aos seus súbditos que, por vezes, a chave da tolerância pode depender da arte de criar um engenho tão simples, e ao mesmo tempo tão fascinante, como um relógio personalizado.

No século XIX, Genebra perdeu finalmente a guerra contra a relojoaria inglesa. Um tratado comercial entre Londres e Constantinopla colocou um ponto final na aventura suíça em território turco — uma aventura que começara nos alvores da Reforma e que provou à Europa que, mesmo nas civilizações mais antagónicas, há pontos de contacto possíveis… desde que seja apreciada a simplicidade de um ponteiro que acompanha implacavelmente a marcha do tempo.

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