António Capela

Na semana do dia europeu da música, relembramos uma entrevista feita em 2015, em mais um regresso aos arquivos que fazem parte das duas décadas de edição da Espiral do Tempo. A capella é um termo de origem italiana — «à capela», em português — que designa o canto sem acompanhamento instrumental. A. Capela, António Capela, e o seu filho Joaquim constroem instrumentos musicais de cordas e são parte de uma dinastia de luthiers que vai na terceira geração. Sendo esta edição sobre o que há em comum entre relojoaria e música, não poderíamos perder a oportunidade de falar sobre um nome que perdura no tempo a produzir instrumentos musicais em Portugal, o da família Capela. Acabámos por descobrir que a atividade de luthier e a de relojoeiro têm muito em comum. A arte, as técnicas e as ferramentas de relojoeiros e de luthiers são de outros tempos e estão razoavelmente inalteradas há séculos. Ambos fazem um trabalho cada vez mais valorizado num tempo cada vez mais tecnológico.


Entrevista publicada no número 53 da Espiral do Tempo (inverno de 2015), mas aqui complementada com mais fotos exclusivas.


António Capela e o seu filho, Joaquim
António Capela e o seu filho, Joaquim | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Em 1924, o jovem marceneiro Domingos Capela consertou um violino de um músico italiano que atuava num dos casinos de Espinho. Outros consertos se seguiram, até que conheceu a violoncelista Guilhermina Suggia, que o convidou para trabalhar no Conservatório de Música do Porto. A partir daí, nunca mais deixou de construir instrumentos de cordas, sempre na sua oficina perto do Largo da Igreja da Anta, onde os seus herdeiros ainda hoje trabalham.
O filho, António Capela, estudou em Paris e em Cremona, berço dos grandes luthiers. Participou em vários concursos de construção de violinos, ganhou diversos prémios, tendo o seu maior êxito sido alcançado em 1972, em Poznan, na Polónia, quando concorreu, juntamente com o pai, com quatro violinos que alcançaram os quatro primeiros lugares. Joaquim Capela, o delfim, construiu o seu primeiro violino aos 13 anos e, pouco depois, participou no seu primeiro concurso internacional. Estudou nos EUA, e também ele tem alcançado vários prémios em concursos internacionais.

Como é que se constrói um violino?
Joaquim Capela (JC) — Faz-se um modelo daquilo que a pessoa pretende. Se não pedir um modelo especial, podemos usar um modelo próprio ou baseamo-nos nos construtores antigos — Stradivari, Amati e Guarneri. E, depois, cada construtor empresta algo de si, podendo modificar ou adaptar procedimentos e técnicas. Quando o meu avô começou, fazia de uma certa maneira, mas depois fez um processo de aprendizagem. Mais tarde, o meu pai foi para França e para Itália, onde aprendeu novos métodos. Eu estudei nos EUA e aprendi ainda outras técnicas. Mas, mesmo que um construtor faça um violino sempre da mesma maneira, eles nunca ficam iguais.

Joaquim, filho de António Capela, com um violino nas mãos.
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Entra em campo a personalidade e a experiência de cada um?
JC — Claro. Um violino feito por mim é diferente de um violino feito pelo meu pai. Para já, porque as mãos não são iguais: cada um tem a sua força, o seu toque, a sua forma de usar as ferramentas. Depois, cada um vê e ouve pela própria cabeça. Embora tenha uma etiqueta, quem souber distingue um violino feito por uma pessoa de um feito por outra. Os Stradivarius não precisam de ter uma etiqueta para se distinguirem dos Guarnerius.

Quanto tempo leva a aprender a fazer um violino?
JC É ver pela idade do meu pai. (risos)

António Capela e o seu processo de elbaoração de um violino
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Ambos começaram a aprender o mester em crianças. Há alguma vantagem em começar tão cedo? Pela agilidade dos dedos, eventualmente?
JC — A vantagem é que não se perde tempo, e quando se chega à idade adulta já se conhecem as técnicas, embora hoje seja considerado trabalho infantil (risos). Não é tanto preciso agilidade, mas sim firmeza. Mesmo que tremam as mãos, se é naquele sítio que se tem de cortar, é naquele sítio que se corta. É como quem toca violino: no início, o cérebro manda fazer uma coisa, mas os dedos vão para outro lado. Depois já é automático.

Ferramentas na oficina de António Capela
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

E as ferramentas que usam? São as mesmas de sempre?
JC — Sim, são mais ou menos as mesmas do século XVI. As diferenças são uma serra elétrica e um compasso que nos dá as espessuras. Se forem violinos feitos industrialmente, tudo é diferente, claro.

Como é que escolhe e onde adquire os materiais?
JC — As madeiras são pinho dos Alpes italianos e ácer ondulado dos Balcãs. Depois de várias experiências ao longo do tempo, revelaram ser as melhores no que respeita à acústica. Há outras madeiras que podem ser usadas, mas nós usamos só estas.
António Capela (AC) — O violino mais velho que se conhece é de 1540, mas antes disso já havia outros instrumentos, como o alaúde, que eram construídos com esta madeira, o ácer dos Balcãs.
JC — Está a ver esta madeira? Contando por aqueles veios, a árvore de onde vem teria uns 170 anos quando foi abatida.
AC — São raridades. É que, para a construção de instrumentos, as árvores não são cortadas em fatias, mas em gomos, para se ter um melhor aproveitamento e por causa do veio. Um violino tem 22 cm de fundo, pelo que a árvore tem de ter pelo menos o dobro da largura do fundo do instrumento. Para construir um violoncelo, que tem 45 cm de fundo, a árvore tem de ter 120 cm de largura. Quantos e quantos anos leva uma árvore a crescer até ter esse tamanho?

Pormenores da elaboração de um violino
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

E não há árvores destas em África, na Ásia ou na América do Sul?
JC — Há a mesma árvore na América do Norte e na China, só que não são iguais. A do Canadá é rosada e a chinesa tem uma espécie de lagartixas no meio da madeira. Os veios das árvores não são iguais e as sonoridades não são iguais.
AC — Se usar a vinha do Douro aqui, ela não faz o mesmo vinho.

Os humores podem alterar a mão do artesão? Há dias em que estão mais mal dispostos e, se calhar, a coisa não lhes corre tão bem…
AC — Não se pode estar mal disposto! E tem de se estar com atenção ao que se faz, porque a madeira é cara. Não se pode inutilizar, não se pode deitar fora. Temos de ter muito cuidado com as espessuras: não pode ficar demasiado fino, senão o instrumento fica uma cabaça.

O que é a alma de um violino?
JC — A alma é uma das peças fundamentais. É um pequeno cilindro de madeira de pinho que liga o tampo e o fundo do violino. Não está colada, está sob pressão. Por um lado, sustenta a pressão do cavalete para o tampo não partir; por outro, faz a transmissão das vibrações.

Pormenores da elaboração de um violino
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Quanto tempo demora a construir um violino?
JC — Aproximadamente dois meses. Para estar em branco, sem verniz, demora cerca de um mês; depois, a parte do envernizamento dura outro mês. Dão-se muitas demãos, e, finalmente, fazemos a sua montagem.

O que lhe dá mais gozo ou o que é mais desafiante? Consertar ou fazer um novo?
JC — Gosto das duas coisas, mas talvez prefira construir. Há reparações que são simples, mas há outras que dão gozo, como quando se trata de um violino todo partido e temos de o deixar perfeito. Quanto mais difícil for o processo, mais gozo dá. É como fazer um puzzle.
AC — É preciso ter mais técnica a reparar do que a fazer de novo.

Pormenores da elaboração de um violino
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Consegue-se identificar um violino pelo som? Há uma espécie de impressão digital sonora?
AC — Cada violino é uma peça única. Isto não é automático, não é mecânico. Até pelo veio da madeira: cada golpe não é igual, e a madeira não tem toda a mesma densidade. Repare, não consegue fazer a sua assinatura sempre da mesma forma, pois não? Há pessoas que têm o chamado ‘ouvido absoluto’ e conseguem detetar as falhas nas notas, mas duvido de que ao escutar vários instrumentos possam fazer uma distinção uns dos outros.
JC — Todos os instrumentos, novos ou velhos, são como as crianças. Se lhes dermos má educação, se os deixarmos fazer o que quiserem, tornam-se rebeldes. Embora também possam ser reeducados. Eu fiz uma viola para eu tocar, emprestei essa viola a uma rapariga que tocava melhor que eu e passados dois anos, quando ela ma devolveu, disse-me «agora está a tocar». E estava!

Pormenores da elaboração de um violino
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

O que faz de um Stradivarius um Stradivarius?
JC — Foram muito bem construídos, mas também têm a sua parte de mito. Há Stradivarius com muito bom som e há Stradivarius que não têm um grande som. Estes valem mais pela preciosidade do autor e da construção.
AC — O Stradivari não sabia que ia chegar aos 90 anos. Ele não podia ter arranjado madeiras para construir os seus instrumentos até ao fim. Não teria stock para isso. A partir de determinada altura, ele tinha de ir arranjando madeiras a pouco e pouco, madeiras novas. Nós não usamos madeiras que não tenham mais de 15 anos a secar aqui em casa, e já vamos na terceira geração. Ainda tenho fundos de violino do tempo do meu pai, que morreu em 1976. Se comprar madeira verde, cortada há um ou dois anos, ela não terá ressonância. Nós temos duas estufas onde temos a madeira e é lá que ela seca durante anos. No verão, se for lá buscar uma peça, deixo-a cair porque me escalda as mãos.

E como é que sabe quando devem ser usadas?
AC — Todas estão numeradas e escolhem-se as mais antigas. Quanto mais velha, melhor; mais vibra.

Mas o seu amigo Rostropovich tinha um Stradivarius.
AC — Tinha. É aquele que está naquela foto. Naquela época, tinha custado dois milhões de dólares.

António Capela com um violino nas mãos
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Porque é que nunca saiu de Portugal, senhor António Capela?
AC — Tive convites para ir para a América e para ficar em Cremona. Até o meu filho, quando lá esteve, teve professores que se referiram a mim. Olhe, estava em Cremona no dia em que morreu o Kennedy e soube da notícia num hotel que ainda existe, onde estava a almoçar com um italiano radicado na América que fez todos os esforços para eu ir para lá. Também queriam que eu ficasse em Cremona como mestre. Mas, e depois? Quando é que eu trabalhava? À noite? Também não quis deixar cá o meu pai, sozinho. Um senhor de Lisboa queria formar uma escola e queria que eu fosse o mestre, mas uma escola não pode só servir para ensinar a construir o instrumento. Tem de dar formação em física, acústica, história da música etc. Lá fora, são quatro anos de curso. Ensinei o meu filho, como era a minha obrigação, mas ensinar outros não é comigo.

Para mais informações consulte o site oficial da Câmara Municipal de Espinho.

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