Patinagem artística

Acompanhando a popularidade dos mostradores fumados ao longo da última década, também as correias com efeito patinado entraram no mainstream graças à validação de reputadas marcas. Fomos visitar um atelier em Portugal que confeciona artigos de pele com pátina e consultámos especialistas em patinação para melhor perceber os encantos de um acabamento artístico com efeito visual muito especial.


Artigo originalmente publicado no número 78 da Espiral do Tempo (primavera 2022) 


Não há dúvida de que a última dúzia de anos na relojoaria ficou marcada pela influência vintage, com o lançamento constante de reedições e reinterpretações de modelos históricos a ser acompanhada pelos recordes dos respetivos originais em leilões por esse mundo fora. Essa onda rétro também trouxe para a ribalta os mostradores dégradé tão em voga na década de 70 — e, à boleia, um tipo de correias de visual equivalente que se podiam adquirir em pequenos fornecedores, mas que ainda não tinham conquistado as principais marcas.

As braceletes da Watch Garage fabricadas na Follow Theory
As braceletes da Watch Garage fabricadas na portuguesa Follow Theory | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

A tendência começou a mudar com a associação de manufaturas relojoeiras de prestígio a ateliers especializados na confeção e tratamento de peles, nomeadamente marcas de calçado de luxo. A IWC estabeleceu uma parceria com a italiana Santoni, a Jaeger-LeCoultre com a Casa Fagliano argentina; mas foi sobretudo quando a Hublot desenvolveu edições limitadas com a Berluti, a partir de 2016, que se abriu uma nova perspetiva no setor: os típicos acabamentos patinados celebrizados pelo famoso boitier de Veneza surgiam não só nas inserções em couro da bracelete, como também no próprio mostrador em pele!

A pátina é uma caraterística que não é exclusiva dos artigos de pele. Pode ser encontrada na madeira, em ligas metálicas e mesmo em pedra. Mas está sobretudo associada a couros de melhor qualidade e representa de maneira bonita o processo de envelhecimento de peles tingidas sem adições químicas.

Mais recentemente, e depois de uma marca com tanta reputação na área da marroquinaria como a Montblanc começar a equipar totalmente a sua linha 1858 com correias de pendor rétro caraterizadas por um sfumatto digno do Renascimento, a melhor prova de que a pátina assentou definitivamente arraiais no mainstream prende-se com a utilização de peles fumadas na prestigiada linha Les Historiques da Vacheron Constantin — no cronógrafo Cornes de Vache e especialmente nas várias versões do American 1921, dotadas de correias da casa italiana Serapian. A pátina tinha chegado a uma das mais tradicionais maisons de alta-relojoaria.

Os relógios Hublot com braceletes Berluti
Jaeger-LeCoultre com a Casa Fagliano argentina e a Hublot que desenvolveu edições limitadas com a Berluti | © Jaeger-LeCoultre e Hublot

Na verdade, a pátina é uma caraterística que não é exclusiva dos artigos de pele. Pode ser encontrada na madeira, em ligas metálicas e mesmo em pedra. Mas está, sobretudo, associada a couros de melhor qualidade e representa de maneira bonita o processo de envelhecimento de peles tingidas sem adições químicas, dando aquela aura tão especial da passagem do tempo: a pátina decorre do uso, e a exposição ao sol e ao calor reforçam tonalidades douradas, enquanto a humidade e o suor oferecem manchas mais escuras; o próprio contacto com a pele humana provoca reflexos peculiares. Cada artigo em pele acaba por ter uma história própria que a pátina subtilmente revela e distingue de outros que, à partida, eram idênticos.

Mas há dois tipos de pátina. Um que decorre do processo químico de utilização e envelhecimento de um material natural e orgânico, sendo sobretudo agradável em peles sofisticadas e com um lustro e uma variação de tonalidade particularmente atraentes. O outro é garantido logo à partida por um tratamento especial da pele e por um acabamento artístico durante a coloração – e é esse processo que tem suscitado a atenção das casas relojoeiras e dos aficionados, numa era em que o utilizador muda mais frequentemente do que nunca as correias/braceletes dos seus relógios.

Processo de fabricação de braceletes em pele patinadas na empresa portuguesa Follow Theory
Processo de fabricação de braceletes em pele patinadas na Follow Theory | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

«A arte da pátina só pode ser aperfeiçoada após muitos anos de dedicação e experiência», refere Nigel Siwani – um colecionador de relógios que fundou a Mount Street Shoe Company, marca londrina de calçado e acessórios celebrizada pelos exemplares com pátina. «Cada mestre tem as suas próprias técnicas secretas de patinação. Cada artigo é uma espécie de tela onde o artista estabelece vários efeitos de base com múltiplas cores à escolha. A aplicação de cor é feita meticulosamente através de uma variedade de técnicas e ferramentas, sendo depois acabada com uma combinação de óleos e ceras para finalmente ser polida até à perfeição». E acrescenta: «A paixão que o mestre da pátina tem ao criar cada artigo em pele transfere-se a cada pincelada. E isso é tangível quando usamos sapatos, sacos ou correias com pátina».

Três relógios com braceletes em pele em cima de um par de sapatos em pele patinada
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Um toque português

A esmagadora maioria das principais manufaturas relojoeiras recorre a fornecedores externos para a confecção de correias, sendo que os mais reputados até as fabricam para marcas concorrentes e mesmo de grupos diferentes. Uma das exceções é a Montblanc, até pela sua natureza; trata-se de uma marca global com um alargado campo de ação que vai das canetas aos relógios e que tem na marroquinaria um peso fulcral na sua linha de produtos. A Montblanc tem mesmo um polo de produção secreto de correias no norte de Portugal que nunca é relevado na sua comunicação.

Nélson Silva, da empresa Follow Theory e Nuno Sampaio da Watch Garage a verem braceletes em pele
Nélson Silva da Follow Theory e André Sampaio da Watch Garage | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Menos secreta é a firma Follow Theory, um de vários ateliers de confeção de artigos em pele que acompanha a mais tradicional produção de calçado em S. João da Madeira. Nos últimos tempos, a Follow Theory tem expandido a sua ação para a área dos acessórios em pele para relojoaria – na sequência do desafio colocado ao seu responsável, Nélson Silva, por parte de André Sampaio, fundador da Watch Garage. A ideia inicial prendeu-se com a criação de uma linha de correias, estojos, rolos e sacos que satisfizesse o gosto sofisticado de uma clientela à procura de algo especial; várias das correias têm a designação «Aged» para caraterizar um aspeto mais envelhecido e/ou patinado.

Nos últimos tempos, a Follow Theory tem expandido a sua ação para a área dos acessórios em pele para relojoaria – na sequência do desafio colocado ao seu responsável, Nélson Silva, por parte de André Sampaio, fundador da Watch Garage.

«A escolha por este tipo de acabamento foi uma decisão minha que nem foi propriamente tomada pela procura do mercado», refere André Sampaio. «Desde o início que fiz as escolhas para a coleção de correias Watch Garage, a partir do meu gosto pessoal e do que vou observando; reparei que não há assim tantas correias dedicadas aos relógios vintage e fizemos várias experiências ao longo do tempo até acertarmos com as cores e os acabamentos». Uma correia com acabamento ‘envelhecido’ inclui contrastes subtis e joga com tonalidades que podem ser combinadas ou contrastadas com o mostrador.

As braceletes da Watch Garage fabricadas na Follow Theory
As braceletes da Watch Garage fabricadas na Follow Theory | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Desde 1994 a trabalhar na confeção de cintos, bolsas e carteiras, Nélson Silva abraçou com gosto uma área completamente diferente. «Sou curioso e gosto de desafios, achei interessante o conceito que o André apresentou e apoiei-o. Tivemos de ir ao encontro do pretendido, e tem sido um processo constante de experiências, testes, aperfeiçoamentos, provas e contraprovas. Hoje em dia, temos vários tipos de máquinas de costura capazes de se adaptarem ao fabrico de correias; ao longo do tempo, fomos vendo o que era necessário até reunirmos um conjunto de apetrechos capazes de produzir o que se pretende», refere o responsável da Follow Theory – que também produziu as capas de pele para a edição especial de quatro revistas comemorativas do 20.º aniversário da Espiral do Tempo.

Relógio da Watch Garage com bracelete em pele da empresa portuguesa Follow Theory
| © Paulo Pires / Espiral do Tempo

A parte do envelhecimento das correias de visual patinado da Watch Garage exige uma abordagem especial: «Este género de acabamento requer uma massa preparada manualmente que é depois aplicada; a massa consiste num preparado específico utilizado nas peles para lhe dar esse aspeto mais envelhecido; as pinturas são feitas à mão e, seguidamente, há um tempo de secagem. Depois, há a costura ou não, dependendo do modelo da correia. Finalmente, damos um lustro e um polimento à mão com um pano para fixar a camada – e a correia fica com ‘irregularidades´ aparentes, nuns sítios mais e noutros menos, para a obtenção do visual desejado», explica Nélson Silva.

As correias com acabamento patinado são mais uma vertente que tem ganho popularidade junto de um público mais exigente e sobretudo sensível aos acabamentos artísticos.

Após o processo de preparação das peles, cada correia confecionada na Follow Theory exige um trabalho de cerca de cinco horas. Começando pela inspeção da pele, corte, normalização da espessura, faceamento em pontos específicos, igualização, colocação de forro e entreforro, colagem, aparo, acerto no balancé, pintura, frisos, pintura de acabamento à mão e diferentes tipos de costura para compor a personalidade que se pretende dar à correia. Tudo feito em Portugal, desde a matéria- prima ao tingimento – à exceção das fivelas em aço inoxidável e a pele vegan de alguns rolos para relógios, preparada no México a partir de fibra de cato.

Processo de fabricação de braceletes em pele patinadas na empresa portuguesa Follow Theory
Processo de fabricação de braceletes em pele patinadas na Follow Theory | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Internacionalmente, há já muitos ateliers de maior ou menor dimensão que se aventuraram no fabrico de artigos em pele para relojoaria. Na maior parte dos casos, os próprios aficionados optam mesmo por deixar o seu emprego para abraçarem um novo negócio. Isso acontece muito no universo Paneristi, onde as correias com pátina e de aspeto envelhecido são muito populares por combinarem especialmente bem com o visual militar e de inspiração vintage dos relógios Panerai.
Em Portugal, há vários casos parecidos – com alguns colecionadores e aficionados a fazerem as suas próprias correias nos tempos livres; o próprio Instituto Português de Relojoaria (IPR) já promoveu workshops sobre o fabrico de correias em pele.

Processo de fabricação de braceletes em pele patinadas na empresa portuguesa Follow Theory
Processo de fabricação de braceletes em pele patinadas na Follow Theory | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Nunca antes se viu as grandes marcas darem tanta atenção às correias e às braceletes, propondo ao cliente uma oferta cada vez mais alargada e dotando os seus relógios de sistemas para a troca rápida. As correias com acabamento patinado são mais uma vertente que tem ganhado popularidade junto de um público mais exigente e, sobretudo, sensível aos acabamentos artísticos. Afinal de contas, a técnica artística do sfumatto foi muito usada no auge do Renascimento para gerar suaves gradientes entre tonalidades, e teve por principal mentor Leonardo da Vinci…

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