Alexandre Perdigão: o gosto pelas marcas independentes

Foi um dos protagonistas do número 79 da Espiral do Tempo ao aceitar o desafio de responder sem receios a algumas perguntas sobre o seu especial gosto por relógios. Como colecionador, Alexandre Perdigão vibra com pormenores que fazem a diferença e revela deixar-se levar por marcas independentes. Depois de parte da entrevista que lhe fizemos ter sido publicada na edição impressa, publicamos hoje a sua versão completa e mais algumas fotografias.

Notário de profissão, Alexandre Perdigão coleciona relógios de pulso, destacando-se pelo especial gosto por marcas independentes. Mas não é só a relógios que dedica o seu tempo. Além de gostar de aprender sobre assuntos tão díspares entre si como carros, arquitetura ou urbanismo, é apreciador de arte, em especial pintura e escultura, e não dispensa a praia, ressalvando, no entanto, que também se sente muito bem no campo ou a passear calmamente pela cidade. Estar com os amigos é outro dos pontos a destacar e foi precisamente no mundo dos relógios que descobriu algumas das suas amizades. Depois de há uns anos se ter revelado no podcast A hora certa, Alexandre aceitou, agora, o desafio de responder às nossas perguntas sobre a sua relação com o mundo dos relógios.

Citizen Challenge Timer, ref. 67-9011, ‘Bullhead’ ou ‘Mickey Mouse’. 1976 e IKEPOD Hemipode Grand Date HD 04, Marc Newson design, Limited. 1998
Esq: Citizen Challenge Timer, ref. 67-9011, ‘Bullhead’ ou ‘Mickey Mouse’. 1976; Dta: IKEPOD Hemipode Grand Date HD 04, Marc Newson design, Limited. 1998 | © Alexandre Perdigão

Amor para a vida toda

O primeiro amor não se esquece (diz quem sabe): como começou o seu percurso enquanto colecionador?
O relógio mais antigo de que me lembro e que, creio, coincide com o primeiro que tive, era um pequeno Norton de corda manual que já havia passado pelo pulso do meu tio paterno. Depois de andar uns anos no meu, transitou para a minha irmã. Pelo meio, perdi o seu rasto. De vez em quando, dou comigo a vasculhar a Internet, na esperança de encontrar um igual.
No entanto, o primeiro relógio que tive oportunidade de escolher para mim foi um Swatch Snowwhite CK104, comprado no verão de 1989, em plena febre da marca. Aquele pequeno objeto de plástico transparente sem algarismos, com 33 milímetros de diâmetro e bracelete preta em borracha era, provavelmente, o relógio que espelhava já esta veia de colecionador, apesar de numa fase muito incipiente. Refletia também algumas das tendências que ainda hoje são observáveis na minha coleção. Seguiram-se-lhe um Cauny Prima do meu pai, resgatado a custo do fundo de uma gaveta, que me acompanhou durante toda a faculdade, e o meu primeiro grande relógio, um Omega Speedmaster Professional ‘Moonwatch’, oferecido pelos meus pais quando terminei o curso. Mais tarde, o IWC ‘Portuguesa’ Cronógrafo marca a primeira compra de relevo feita com recurso ao meu próprio dinheiro. Talvez tenham sido estes dois que cimentaram as bases para o assumir, a princípio algo tímido, desta perdição, a qual acabaria por só florescer e se revelar, de forma mais descomplexada, cerca de uma década mais tarde. Mas, de facto, quem sabe, sabe, e é absolutamente verdade que o primeiro amor não se esquece. Prova cabal disso é o relógio que hoje trago no pulso: o Sartory-Billard SB04 SNOWWHITE revamped.

Sartory-Billard SB04, Pièce unique. ‘SNOWWHITE revamped’. 2022
O Sartory-Billard SB04 foi o modo que encontrei de reinterpretar, de forma perene, o meu Snowwhite originário, cumprindo ainda o meu gosto por dar um empurrãozinho aos independentes (o Armand, encantador que é, merece-o!). Chamei-lhe SNOWWHITE revamped e, sempre que o uso, sinto-me com 15 anos outra vez. | © Alexandre Perdigão

O que o motiva a colecionar relógios?
Os relógios são objetos belos, engenhosos e, de certo modo, algo misteriosos, principalmente para aqueles, como eu, a quem faltam conhecimentos técnicos que permitam compreender para lá do básico tudo o que torna possível que um relógio meça, com precisão, o passar do tempo. Além disso, tal como a roupa que vestimos ou o corte de cabelo que escolhemos, permitem-nos afirmar a nossa personalidade sem que, para tanto, necessitemos de proferir uma só palavra. São, a par dos botões de punho, as únicas joias que concebo usar. Por fim, podem também constituir uma reserva de valor, com uma liquidez que não é menosprezável. Penso que o que me motiva a colecionar relógios é uma amálgama de todas estas coisas, mas, também e talvez acima de tudo, o prazer que me proporcionam quando os observo.

Hermès Slim d’Hermès Titane. 2022
Hermès Slim d’Hermès Titane. 2022 | © Alexandre Perdigão

Em que momento se apercebeu de que estava ‘irremediavelmente perdido’ por este mundo?
Sem qualquer hesitação, aquando do ressurgimento do Omega Speedmaster Professional ‘Moonwatch’. Estávamos em meados da década de 90 e Jean-Claude Biver e a Omega souberam, justiça lhes seja feita, cavalgar exemplarmente a oportunidade de marketing criada à volta do lançamento do filme Apollo 13, de Ron Howard, com Tom Hanks no papel principal. O Speedy, como mais recentemente viria também a ser chamado, estava então em todo o lado para onde nos virássemos e, que diabo, se servia para viajar até à Lua ou para resgatar astronautas da órbita terrestre, muito mais serviria para um miúdo como eu! Foi nesse momento que soube que tinha de ter um. E assim aconteceu, dois anos depois.

Como descreve a sua coleção?
Em poucas palavras, defini-la-ia como eclética, informal e tendencialmente icónica, com uma forte componente estética e alguma irreverência, manifestada através de características técnicas ou de design que escapam, mesmo que subtilmente, à norma, assim como através de uma presença considerável de independentes.

Alexandre Perdigão
Alexandre Perdigão | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Confissões de um colecionador

Coleciona relógios para os usar ou para os deixar bem guardados na gaveta?
Para usar, claro!

Quanto tempo aguenta sem adquirir um relógio?
O estritamente necessário até surgir uma oportunidade que, não raro, se revela… inoportuna…

Se voltasse atrás, que erros que não voltaria a cometer enquanto colecionador?
Felizmente não tenho sofrido grandes dissabores, mas já me arrependi de ter vendido alguns relógios. E de ter voltado a comprá-los… Tipicamente os arrependimentos têm sido relacionados com o tamanho – peças que vestem demasiado grandes ou que desaparecem no pulso – e com o estilo – relógios que se revelam excessivamente formais ou ostensivos.

Girard-Perregaux Gyromatic, ref. 9278/1. Ca. 1970
Girard-Perregaux Gyromatic, ref. 9278/1. Ca. 1970 | © Alexandre Perdigão

Tem algum relógio que o faça sorrir pela história que guarda?
Tenho, pois! Aliás, vários! O Cauny Prima do meu pai, que, em miúdo, vá-se lá saber porquê, resolvi atirar da janela do segundo andar onde vivíamos… O relógio de bolso do meu avô materno, cujo processo de restauro terminou no final do ano passado, após ter passado largas dezenas de anos guardado numa caixa. Atualmente resplandece, dentro da sua redoma, no aparador da minha sala. O IWC ‘Portuguesa’, que comprei através do Ebay a um comerciante americano, literalmente com o coração nas mãos, por ser a minha primeira compra do género. Vinha avariado… Tudo acabou por se resolver sem problema, mas não ganhei para o susto! O Grand Seiko SBGX089 de edição limitada que comprei num site japonês, mas que, na chegada à alfândega de Lisboa, não passava de uma caixa vazia, forçando-me a voltar à caça de outro. O Heuer Carrera 1964 Re-Edition que teima em ser mais pequeno que a ideia que fazia dele… Comecei por comprar a versão com o mostrador preto, estilo Daytona, com os anéis dos submostradores do cronógrafo em prateado (Ref. CS3113), mas vendi-o uns tempos depois, por achar os seus 35,5 milímetros demasiado pequenos para o meu pulso. Arrependi-me e voltei a comprá-lo, desta feita na versão com mostrador integralmente preto (ref. CS3111), para logo concluir que não cresceu…
O esquivo Rolex Submariner que comprei no último dia do ano de 2018 e que, mais do que personificar o milagre de ter sido obtido da manhã para a noite, trouxe à boleia uma amizade que muito estimo. O Sartory-Billard SB04, que foi o modo que encontrei de reinterpretar, de forma perene, o meu Snowwhite originário, cumprindo simultaneamente o meu gosto de dar um empurrãozinho aos independentes – o Armand, encantador que é, merece-o! Chamei-lhe SNOWWHITE revamped e, sempre que o trago no pulso, sinto-me com 15 anos outra vez.

TAG Heuer Carrera 1964 Re-Edition, ref. CS3113. 2002 e The MIH watch. 2005-2020
Esq: TAG Heuer Carrera 1964 Re-Edition, ref. CS3113. 2002; Dta: The MIH watch. 2005-2020 | © Alexandre Perdigão

Sobre futuros e impossíveis possíveis

Qual o seu grail watch?
Felizmente tenho tido a sorte de conseguir cumprir boa parte das minhas aspirações o que, de algum modo, deriva também do facto de o meu estilo e gosto não tenderem para grandes desvarios. Assumo, sem pejo, a minha predileção por cronógrafos – sou um verdadeiro ‘Crono-Magnon’, como define, com graça, o Miguel Seabra – mas, no que a complicações diz respeito, pouco vou além disso. Neste momento, os grails que ainda não atingi, mas que gostava de vir a ter um dia são, por exemplo, o Grand Seiko 61GS V.F.A., com os seus indexes a fazer lembrar hotéis de Monopólio, e o Laurent Ferrier Galet Square Autumn. Para mim, a Laurent Ferrier produz os mais belos ponteiros e coroas de toda a indústria e acho este modelo, em particular, absolutamente desconcertante. Desde logo pelo facto de nem sequer apreciar particularmente caixas não redondas! Fora do pulso, fascina-me a técnica – e também a estética! – por detrás do Atmos, da Jaeger-LeCoultre. Sendo os últimos os primeiros, é bem provável que este venha a ser o próximo dos três.

Seiko Grand Seiko SBGA029. Ca. 2011 e De Rijke & Co. Amalfi Series No. 1S, Limited Edition 99 of 99. 2020
Esq: Seiko Grand Seiko SBGA029. Ca. 2011; Dta: De Rijke & Co. Amalfi Series No. 1S, Limited Edition 99 of 99. 2020 | © Alexandre Perdigão

Neste momento, que destino imagina para a sua coleção?
Não sei se consigo interpretar convenientemente o fito com que se utilizou ‘destino’ nesta pergunta. Se o que se pretendia saber era qual a direção que a coleção vai tomar, antecipo que a evolução vai continuar a centrar-se em peças tendencialmente informais, icónicas e/ou com características particulares que me captem a atenção, seja a nível estético – a cor contrastante de um ponteiro, a localização escolhida para a coroa, o formato ou acabamento incomum de uma caixa – seja do foro técnico – soluções mecânicas engenhosas, uso de materiais invulgares, como o papel Washi, tradicional no Japão, no mostrador do The Citizen Chronomaster – e, sempre que possível, com alguma consciência social, isto é, tentando apoiar os independentes – assim foi com a Nomos, De Rijke & Co., Fears, Sartory-Billard, Defakto… Na vertente estética, apercebi-me recentemente de que se nota já, de forma bem clara, um gosto especial pelas linhas depuradas do movimento Bauhaus, quer na sua execução mais fiel – Junghans max bill chronoscope, Defakto Vektor Modul – quer em derivações com maior ou menor grau de parentesco – Nomos Metro Datum Gangreserve, Mondaine EVO Automatic, MIH Watch, Ressence Type 1. Se, ao invés, a questão se prendia com o fim último pensado para os meus relógios, não estranharia se os meus dois filhos, ou, pelo menos, algum deles, viesse a dar continuidade a esta paixão. Se tal não ocorrer com o grau de empenho que dedico aos relógios, espero que, no mínimo, tenham gosto e estimem as peças que restarem. E mesmo que porventura nada disto se cumpra, gosto de pensar que, pelas suas dimensões contidas e/ou por algum valor que espero que retenham, os meus relógios nunca serão um estorvo ou uma dor de cabeça ao ponto de quererem ver-se livres deles mal o pai dobre a sua última esquina.

Mondaine EVO Automatic. 2015
Mondaine EVO Automatic. 2015 | © Alexandre Perdigão

Que pergunta faria a alguém que está agora a começar a ficar ‘irremediavelmente perdido’ pelo mundo dos relógios?
Perguntaria talvez o que atrai a pessoa nessa direção. Em que se funda o seu interesse na indústria? O que vê de fascinante num relógio? Em suma, tentaria saber qual a espécie do seu bichinho, ciente de que cada um de nós, apaixonados por relógios, alimenta o seu.

Ressence Type 1W. 2018
Ressence Type 1W. 2018 | © Alexandre Perdigão

Autorretrato

Identifica-se com algum ou alguns dos estilos de colecionador que tentámos isolar [no artigo «Eu e os Outros» publicado no número 79 da Espiral do Tempo] ?
Encontro pontos de contacto em praticamente todos os estereótipos. Diria, no entanto, que aqueles com que terei mais em comum são o narciso, o meticuloso, o investidor e o guardador de memórias, estando mais distante do comprometido e do engenhocas. Com efeito, encanta-me sobretudo a beleza estética dos relógios, não sendo difícil distrair-me a contemplar os seus pormenores. Acho também estimulante o desafio de encontrar a correia ideal para casar com certa peça ou, quem sabe, alterar por completo o respetivo estilo. Sou meticuloso acerca do funcionamento e precisão dos meus relógios, que faço questão de acertar ao segundo sempre que os uso, e observo – se necessário à lupa – e tento compreender, até ao limite do que me é possível, todas as particularidades da sua construção.

Enquanto sinalizadores de efemérides, os relógios têm a rara capacidade de corporizar momentos, colecionando e transportando consigo memórias ao longo do tempo que eles próprios medem.

Alexandre Perdigão

Não sou avesso à perspetiva do investimento e até aprecio um certo caráter de jogo que a transação destes objetos encerra. Conforta-me a ideia de ter neles uma espécie de reserva de valor. Apesar disso, como só compro relógios de que efetivamente gosto – ou, pelo menos, que estou convencido de que gosto – a lógica de investimento nunca surge como prioritária. Por regra, as situações em que tendo a dar mais atenção à vertente comercial ou de liquidez são quando compro alguma peça sem estar bem certo se me irei dar bem com ela, nomeadamente devido ao seu tamanho. Nessas ocasiões, sossega-me saber se conseguirei ou não, com relativa facilidade e, de preferência, com pouco ou nenhum prejuízo, revendê-la caso, por qualquer motivo, conclua que não se adequa a mim.

Fears Brunswick Salmon. 2021
Fears Brunswick Salmon. 2021 | © Alexandre Perdigão

Como já referi, complicações não são o meu forte. Gosto de compreendê-las e sei apreciá-las, como é evidente, mas passo bem sem elas. Definitivamente, sou tudo menos dado a compromissos com uma só marca, como se vê. Enquanto sinalizadores de efemérides, os relógios têm a rara capacidade de corporizar momentos, colecionando e transportando consigo memórias ao longo do tempo que eles próprios medem. Se pararmos para pensar quais os objetos suscetíveis de nos acompanhar, em permanência, praticamente desde o momento em que nascemos até depois de morrermos, aposto que não nos ocorrerão muitos. Porém, não tenho grandes dúvidas de que o relógio tem lugar assegurado nessa lista.

Outras leituras