O maior evento bienal do universo relojoeiro e também o mais influente foi adiado para 2024, na sequência de diversos pedidos de esclarecimento e uma onda negativa que ganhou inusitada tração nas redes sociais. A organização do Only Watch decidiu dar um passo atrás para prosseguir futuramente com a sua missão.
É a notícia mais marcante do ano no mundo da relojoaria: o anúncio de que a décima edição do famoso leilão de beneficência Only Watch foi adiada para o próximo ano — a uma escassa dúzia de dias da data prevista para a sua realização em 2023. Tal como muitos outros títulos da imprensa relojoeira e não só, a Espiral do Tempo tinha prevista a sua presença para acompanhar a subasta, como sucedeu nos anos anteriores; os bilhetes de avião já estavam emitidos, o hotel reservado… tudo em vão, como em vão foi toda uma organização extremamente complexa no plano logístico e que iria também atrair à Palexpo colecionadores e personalidades de todo o mundo, juntamente com os mais altos executivos das marcas relojoeiras participantes. Porquê?
Tudo começou com algumas questões levantadas por um proeminente colecionador de Singapura chamado Santa Laura, que foi de imediato secundado pelo autoproclamado ‘investigador forense’ José Perez (aka Perezcope) — uma figura relativamente bem conhecida entre os aficionados pelo seu trabalho de desmistificação e desconstrução de certas narrativas promovidas no meio relojoeiro. As primeiras perguntas prenderam-se com o destino exato da substancial verba (cerca de 100 milhões de euros) alcançada pelo Only Watch desde a sua implementação por Luc Pettavino em 2005, num crescendo que viu alguns relógios bater recordes absolutos de vendas (tanto no geral como no caso de cada marca). O leilão Only Watch rapidamente se tornou num barómetro do valor das marcas participantes e com uma tremenda repercussão mediática à escala global, até porque estava assente numa história de dor e tinha um fim admirável: reunir fundos para financiar a pesquisa para combater a distrofia muscular, doença que vitimou o filho do fundador. François-Paul Journe chegou a confessar à Espiral do Tempo em 2019 que o leilão se tinha tornado mais importante do que o Grand Prix d’Horlogerie de Genève na valorização de certas marcas junto de colecionadores.
Como se tem visto em muitos movimentos ‘de cancelamento’ na Internet, as dúvidas levantadas pelo colecionador Santa Laura rapidamente ganharam tração e foram transformadas numa inexorável bola de neve que acabou por redundar no anúncio do adiamento… havendo mesmo quem peça o definitivo cancelamento. Basta ter acompanhado as caixas de comentários das redes sociais do Only Watch para se constatar a índole de uma turbe nem sempre bem informada e que facilmente embarcou numa onda negativa. No entanto, as questões que despoletaram tudo o que se seguiu até foram pertinentes tendo em conta os valores em causa e o impacto da iniciativa. Para onde foi o dinheiro? Quais os progressos científicos gerados pelo dinheiro? Porque é que há 50 milhões em caixa que ainda não foram investidos? Só que a organização não só não estava preparada para satisfazer imediatamente todos os pedidos de esclarecimento como ainda tinha aberto o seu campo de atividade para outras áreas e abrangido outras firmas sem o ter anunciado previamente…
Dúvidas e certezas
A polémica alastrou e a De Bethune solicitou publicamente um esclarecimento; logo depois, e sem qualquer explicação, a Audemars Piguet retirou-se do elenco; de seguida, François-Paul Journe emitiu um comunicado reafirmando a sua confiança no projeto liderado por Luc Pettavino. Pelo meio, a Patek Philippe continuava sem revelar a peça única que iria destinar ao leilão e a própria Associação Monegasca contra as Miopatias (AMM) foi divulgando esclarecimentos sobre a estratégia da iniciativa, a sua própria estrutura e os projetos financiados. Os esclarecimentos não foram suficientes e, no início desta semana, surgiu a tal bomba do adiamento. «O tempo para a certificação, mudanças na gestão e o leilão iminente não coincide», lê-se no comunicado. «Não podemos deixar que haja dúvidas sobre a sinceridade do empenho de todas as partes envolvidas no projeto, nem podemos deixar que tão bela história seja reescrita. Vamos prosseguir com a nossa intenção, partilhando mais informação sobre as virtudes e extraordinárias ações promovidas por esta dinâmica. Uma das nossas grandes alegrias é saber que um grupo de crianças e jovens adultos que padecem da doença foram incluídos num teste clínico apenas tornado possível com o financiamento do Only Watch. É tangível, concreto e dá esperança de cura».
Uma das possíveis interpretações para o adiamento pode ter a ver com o peso institucional da Patek Philippe. Nunca se vê a reputada manufatura genebrina associada a situações menos claras e, contrariamente ao sucedido em anos anteriores, ainda não tinha desvelado o relógio que iria submeter a leilão a duas semanas do evento — o que pode indiciar que preferiu aguardar até que a controvérsia se clarificasse. Sendo que as peças únicas com o selo da Patek Philippe têm gerado sempre vendas estratosféricas no Only Watch (incluindo o mais caro relógio de sempre, em 2019, arrematado por mais de 30 milhões), parece lógico o compasso de espera da organização para assegurar a sua contribuição em 2024 e, eventualmente, contar com o regresso da Audemars Piguet, outra das marcas de élite que assegurava à partida uma venda milionária.
A par da notável promoção relojoeira junto de outros públicos, a iniciativa tem-se revelado admirável no âmbito da criatividade: as companhias relojoeiras têm mostrado liberdade para arriscar soluções fora da caixa e mesmo aproveitado para lançar protótipos que depois passam para a coleção regular. Resta saber se o passo dado atrás para ganhar tempo para os devidos esclarecimentos e toda a publicidade negativa entretanto gerada à volta da iniciativa não irão descarrilar o Only Watch. Ou se alguma revelação de más práticas deite mesmo tudo a perder e conduza à extinção do projeto. O certo é que as acusações de que há quem embarque numa falsa filantropia para comprar relógios valiosos completamente dedutíveis nos impostos também são indevidas: o beneficio fiscal só é exequível em certos países (por exemplo, nos Estados Unidos não é) e incide apenas sobre o montante acima do valor da estimativa média inicial, não sobre o valor integral.
Enquanto não chegam os esclarecimentos suplementares que nesta altura se exigem, Luc Pettavino merece o benefício da dúvida: é um personagem consensual entre os protagonistas da relojoaria ao mais alto nível e foi mesmo galardoado com o Prémio Especial do Júri no Grand Prix d’Horlogerie de Genève de 2019. E, tendo em conta o rápido assassinato de caráter que se fez nas redes sociais, o que o autor destas linhas pode acrescentar, por conhecimento pessoal do fundador da Only Watch, é que nunca pareceu haver algo no seu comportamento ou estilo de vida que sugerisse o uso indevido de verbas em benefício próprio: é alguém humilde, frugal, asceta, espiritual e que dispensa luxos. Caraterísticas que, por si, não têm a ver diretamente com boas ou más práticas da iniciativa — mas que podem ajudar a compor o seu perfil.
Após a tragédia que foi a morte do filho Paul, Luc Pettavino tem agora por missão não deixar esmorecer (e muito menos morrer) aquela que se mostrou, na sua essência, a mais louvável iniciativa de beneficência jamais associada ao universo relojoeiro. Porque nunca antes se viu tantas marcas de peso unirem-se em torno de uma mesma missão. «O Only Watch é a celebração da qualidade humana. Faz-nos recordar que temos de nos desapegar, abrir mão, criar algo de belo e fazer o bem em conjunto», disse-nos Luc Pettavino antes do leilão de 2021 — que congregou 54 marcas e proporcionou cerca de 30 milhões de francos suíços. «Normalmente, temos sempre o receio de sermos enganados ou então queremos assumir o controlo; o Only Watch é a escola inversa, é a celebração da confiança e da entrega, da percepção de que estamos todos na mesma casa: cada um participa na construção do edifício para partilharmos um projeto universal. A base do projeto é uma patologia grave — o nosso filho Paul foi vítima dessa patologia há quatro anos —, mas é uma base de dificuldade transformada em esperança terapêutica e celebração da felicidade de caminharmos juntos rumo a um objetivo comum». E reforçou: «Precisamos de energia desse tipo para nos levantarmos de manhã e acharmos que nem tudo é sombra, nem tudo é complicado, nem tudo é cínico, nem tudo é stress. São pequenos grandes projetos como o Only Watch que constituem uma pequena pedra no edifício da celebração da vida».
Pode ser um chavão, mas é adequado à temática: o tempo ajudará a esclarecer o imbróglio — e determinará o futuro da Only Watch.