Ano novo, vida nova. O popular adágio de mudança de ano parece aplicar-se da maneira ideal à indústria relojoeira em 2020, com novas datas, novos nomes e sobretudo novos formatos para os principais certames relojoeiros. Menos negócio, mais cultura e mais comunidade — o conceito da Dubai Watch Week vai estar mais presente do que nunca no Watches & Wonders e em Baselworld.
No Dubai, Basileia e Genebra | A passagem de ano de 2019 para 2020 foi apresentada como viragem da década, embora haja quem afirme que esta última década acaba somente em 2020 e que a próxima se inicia apenas em 2021. Seja como for, o certo é que não há mesmo dúvidas relativamente à passagem do ano segundo o tradicional calendário gregoriano ocidental — e 2020 será um ano muito especial para a indústria relojoeira porque os principais certames do setor vão ter lugar numa nova data e com muitas mudanças, algumas das quais recentemente conhecidas: mesmo na ponta final de 2019 ficou a saber-se que a pequena exibição de cerca de 15 micromarcas no hall de entrada do vizinho Hotel Hyperion, denominada ‘The Hype’, vai transitar para o recinto ‘oficial’ de Baselworld.
O espaço dedicado a essas micromarcas vai ficar situado no Hall 1 (o pavilhão principal da feira) e assumir o nome ‘Watch Lounge’, complementando a área conhecida por ‘Les Ateliers’, dedicada às marcas premium independentes, e ainda a ‘Watch Gallery’, que engloba um conjunto alargado de companhias que vai desde as start-ups até empresas de maior renome. Claro que a política de preços mais competitivos por parte da direção de Baselworld e a disponibilização de áreas devido à saída de marcas mais conhecidas estão relacionadas com essa abertura da nova direção, mas também contribuiu muito para isso a constatação de que hoje em dia é necessário valorizar a cultura relojoeira e satisfazer as crescentes exigências das comunidades de aficionados para que qualquer certame relojoeiro seja encarado de modo positivo. E essa foi uma das premissas saídas do debate sobre o assunto realizado durante a Dubai Watch Week.
Denominado ‘State of Affairs’ e contando com o nosso colega Ian Skellern (co-fundador e editor técnico do site Quill & Pad) como moderador num fórum que teve como oradores Michel Loris-Melikoff (diretor executivo de Baselworld), Raymond Loretan (presidente do Grand Prix d’Horlogerie de Genève), Hind Seddiqi (diretora-geral da Dubai Watch Week e responsável de comunicação & marketing do Grupo Seddiqi) e Carlos Alonso (diretor do Salón Internacional de Alta Relojeria no México), a palestra versou sobre a nova realidade associada aos certames relojoeiros.
E houve muito a debater sob os mais diversos ângulos. Porque 2019 foi mesmo um ano extremamente agitado relacionado com os grandes eventos do setor: muitas marcas já não estiveram em Baselword e um par delas (Audemars Piguet e Richard Mille) anunciou a sua futura saída do SIHH; as marcas de topo do Swatch Group (Breguet, Blancpain, Harry Winston, Jaquet Droz, Omega e Glashutte Original) realizaram um bem sucedido evento denominado ‘Time to Move’ para retalhistas e imprensa; confirmou-se que o Salon International de la Haute Horlogerie e Baselworld passariam a realizar-se colados no calendário; o SIHH comunicou que passará a chamar-se Watches & Wonders, assumindo a designação dos seus spin-offs ‘regionais’ (primeiro em Hong Kong, depois em Miami); o SalonQP, cuja afluência vinha decaindo nos últimos anos, admitiu não se realizar em 2019 devido a uma alegada indisponibilidade da Saatchi Gallery e foi substituído por um acontecimento de menor escala denominado ClubQP. No final de Novembro, a Dubai Watch Week acabou mesmo por ser, para a imprensa especializada, o melhor evento do ano – como já tinha sido aquando da sua anterior edição, em 2017.
O calendário de 2020 assume uma aparência completamente diferente e vai arrancar dentro de dias: as marcas do pólo relojoeiro do grupo LVMH (TAG Heuer, Hublot, Zenith, Bulgari) vão apresentar as suas novidades entre 12 e 16 de janeiro, no Dubai; marcas independentes como a Moser & Cie, a MB&F e a Urwerk aproveitam a ocasião para exibir também num hotel vizinho. A Seiko e a Grand Seiko, que resolveram abandonar Baselworld por acharem que a feira se realiza demasiado tarde no ano, organizam um salão no Japão de 3 a 6 de março – exatamente as mesmas datas da segunda edição do ‘Time to Move’ do Grupo Swatch, em Zurique. E depois vêm os principais e tradicionais certames, pela primeira vez um a seguir ao outro desde que se ‘separaram’ em 2009: Watches & Wonders de 25 a 29 de abril, em Genebra, e Baselworld de 30 de abril a 5 de maio, em Basileia. De caráter bienal, a Dubai Watch Week não se realiza em 2020 mas organizará o Horology Forum possivelmente em setembro, num local ainda por designar (em 2018 teve lugar em Londres). E espera-se que o SalonQP volte a ter lugar na Saatchi Gallery, em novembro.
Todos os eventos darão mais importância ao conceito implementado pela Dubai Watch Week, um certame que claramente coloca em primeiro plano a partilha do conhecimento em detrimento dos supostos interesses comerciais da entidade organizadora – o grupo familiar Seddiqi & Sons, que passa por ser o maior retalhista no segmento da relojoaria fina nos Emirados Árabes Unidos (e só o mercado do Dubai vale uns 800 milhões de euros anuais) — mesmo que também haja relógios novos para mostrar, como já reportámos anteriormente aqui (um primeiro top 5) e aqui (outras cinco novidades). Em 2019, a elevada fasquia qualitativa da Dubai Watch Week voltou a subir com a afinação do rico calendário de eventos e a melhoria das infraestruturas montadas à volta do enorme edifício central em forma de arco de triunfo na zona denominada The Gate, à entrada para o Dubai International Financial Centre.
A Dubai Watch Week tornou-se primeiramente inovadora e depois um exemplo a seguir porque a própria Suíça se revelou incapaz de organizar uma cimeira que desse primazia às vertentes cultural e intelectual (já vistas em pequenos acontecimentos paralelos no SalonQP) que deviam ser fundamentais para a sua própria renovação, mas também não foi fácil para Baselworld e para o Salon International de la Haute Horlogerie fugir à razão da sua existência: mostrar novidades que é preciso vender aos clientes, ao mesmo tempo que as revelam a jornalistas que andam demasiado atarefados a correr de apresentação em apresentação. Ou seja, normalmente não existe disponibilidade física, mental e temporal para um profícuo debate de ideias sobre o passado, o presente e o futuro da indústria relojoeira.
Nos últimos dois anos, o Salon International de la Haute Horlogerie promoveu iniciativas aparentemente inspiradas na programação da Dubai Watch Week com a abertura de um salão para debates/eventos e no ano passado Baselworld tentou seguir o mesmo caminho, face a uma nova conjuntura em que a sangria de marcas e a voragem comunicacional dos aficionados conduziram a medidas drásticas – até porque a reputação de Baselworld andava nas ruas da amargura e nos escaparates da imprensa especializada, devido à escandalosa exploração de preços na feira (os stands, o armazenamento, a restauração, a própria internet!) e em Basileia (hotéis, restaurantes, até táxis!). A feira e a própria cidade mostraram demasiada ganância e arrogância durante demasiado tempo, fazendo tudo para ‘matar a galinha dos ovos de ouro’. Quase conseguiram. A viabilidade de Baselworld parece atualmente pendurada na permanência da Patek Philippe, da Rolex e das marcas do grupo LVMH.
Claro que já existiam instituições como a Fundação da Alta Relojoaria, associada ao Salon International de la Haute Horlogerie/Watches & Wonders, para dar maior substrato a eventos de génese comercial. Tentaram promover-se debates tanto em Genebra como em Basileia, mas eram escassos e o efeito perdia-se devido à excessiva rivalidade entre os principais conglomerados de luxo e à falta da tal concentração, física e mental, inerente a um evento que isole os protagonistas do setor num determinado espaço e no tempo. Vamos ver o que farão o neobaptizado Watches & Wonders e Baselworld em 2020 (e já se sabe que em 2021 se realizarão consecutivamente cerca de duas semanas antes no calendário) para satisfazer as novas necessidades da comunidade relojoeira. Para já, o certame que se realiza em Genebra desde 1991 promete muito por si só, sem esquecer que paralelamente o Grupo Franck Muller realiza o habitual WPHH (World Presentation of Haute Horlogerie) no seu recinto de Watchland e todas as pequenas marcas que exibirão novidades em show rooms de hoteis: “Novo nome, nova fórmula, novas audiências: para a sua 30ª edição, o SIHH opera uma revolução sob a designação Watches & Wonders e será a maior mutação da sua história”, refere o comunicado. Mais concretamente, o Watches & Wonders passará a ter dois pólos: um centrado no tradicional Salão, de acesso exclusivo aos profissionais, à imprensa e aos convidados nos pavilhões da Palexpo (ao lado do aeroporto), e que este ano será “mais experiencial, mais interativo e mais conectado do que nunca”, com “conteúdos ricos e experiências inéditas para os visitantes”; e depois haverá um outro pólo ‘In The City’, com o centro da cidade a “promover iniciativas abertas que permitirão ao grande público e aos aficionados descobrir todas as facetas da relojoaria de excelência através de exposições temáticas, percursos na cidade, visitas a manufaturas, animações nas boutiques, visitas a museus e encontros com os protagonistas do mundo relojoeiro”! A revelação é prometedora. E denota clara inspiração na Dubai Watch Week, pioneira no acompanhamento das novas exigências no plano da partilha do conhecimento.
A Dubai Watch Week teve uma agenda intensa ao longo dos seus cinco dias, mais intensa ainda do que havia sucedido nas anteriores edições. Senão, atente-se bem à programação dos diversos pavilhões do evento. A começar pelo Horology Forum, com as seguintes temáticas e aparticipação de oradores de luxo: Entrar na Lista de Espera; Relógios Usados Certificados e a Sabedoria de Saber o Seu Lugar; O Que Te Traz Aqui; Caveat Emptor & The Money Mouth sobre a adaptação da indústria aos novos relacionamentos entre consumidores, retalhistas oficiais, marcas, e-comércio e grey market; Lidar Com a Infâmia do Marketing e Publicidade, numa palestra de Jean-Claude Biver; State of Affairs, com os vários líderes dos principais eventos relojoeiros; Apocalipse II e o Desafio Tecnológico; Marcos Testemunhais e a vida de John B. McLemore; O Que Fez a H. Moser; Control Freak; Les Femmes Sauvages. Em que outro evento relojoeiro há tantos debates com tantos protagonistas — de mestres relojoeiros a CEOs — das mais diversas áreas da relojoaria? Em nenhum.
Mas houve mais. A programação do Creative Hub foi a seguinte: Colecionar Relógios Numa Era de Inovação; Serpenti: A Concepção de um Ícone (Bulgari); Lançamento de Edições Limitadas da H. Moser & Cie; De Bethune e Jorg Hysek Apresentam o Dream Machine 6; Lançamento de Uma Edição Limitada Hublot; Apresentação Grand Seiko; Lançamento de Edição Limitada Vacheron Constantin; Tornar-se Um Mestre; O Reaparecimento da Frodsham; Criação Dior Grand Bal; Tudor: o Pior Segredo do Colecionismo; Utensílios Vintage e o Seu Uso Atual; Bell & Ross e o Nascimento de Um Novo Ícone.
E ainda mais. No salão didático das Masterclasses houve as seguintes iniciativas (com várias sessões cada): Watch Design com Fiona Krüger; Relojoaria com Antoine e Florian Preziuso; Acabamentos com Anders Sjögren (GoS Watches); A Arte da Gravação com Tiago Aires (o português da Bovet); Relojoaria com Sébastien Billières (Genus); Conceber o Coração de um Relógio (as espirais segundo a H. Moser & Cie); Pintura Miniaturizada (Alco); Relojoaria com a Ulysse Nardin.
Pensavam que era tudo? Também houve grande atividade no espaço denominado Christie’s Auction Room: Porque a Patek Reina no Mercado de Colecionismo Vintage; Luxury Time Travel; Lançamento da Academia do Grand Prix d’Horlogerie de Genève; Educação Christie; Leilão para Crianças; A Filosofia Por Trás do Restauro em Alta Relojoaria; Os Desafios de Curar Uma Coleção de Museu.
Mas houve ainda mais. Ao fim da tarde, o restaurante Cipriani mudava de figurino para dar lugar ao Cipriani Pop-Up em modo discoteca-bar para apresentação de novidades em animado ambiente: Cocktail Grand Seiko; Cocktail Girard-Perregaux; Cocktail Ulysse Nardin; Cocktail Roger Dubuis. Também ao fim da tarde, e no terraço do Horology Forum: Lançamento Internacional do H5 da HYT; Lançamento de Edição Limitada da Ressence.
Para além dos espaços comuns incluidos na infrastrutura de apoio à Dubai Watch Week, houve a novidade de dois pavilhões exclusivos para duas marcas. A Rolex estreou-se com um espaço mais reservado para os seus convidados complementado por duas áreas de exposição — uma dedicada ao Submariner, a outra com exemplares raros da coleção da família Seddiqi. Mas sem qualquer evento propriamente dito, enquanto a sister company Tudor teve uma apresentação seguida de cocktail. Convém referir que o próprio presidente da Rolex, Jean-Frédéric Dufour, fez a deslocação ao Médio Oriente — afinal de contas, a família Seddiqi é parceira de longa data da marca e gere a maior boutique Rolex do mundo, no Dubai Mall.
Por sua vez, a Chopard, que esteve presente na nave central de exibição com dois stands (Chopard e Chronomètrie Ferdinand Berthoud), teve um pavilhão inteiramente dedicado ao Alpine Eagle. Foi lá que o co-presidente Karl-Friedrich Scheufele apresentou mais detalhadamente a ideia subjacente à criação da linha Alpine Eagle e todos os detalhes identificativos da nova estrela do catálogo da Chopard, incluindo o aço Lucent. Houve também um Painel de Discussão de Sustentabilidade no espaço, que a partir do fim da tarde acolhia um dj para animadas soirées.
Como se pode constatar, o patamar em que se colocou a Dubai Watch Week é particularmente elevado. O certame tem por missão assumida ‘Unir e fazer crescer a comunidade relojoeira global para a preservação e transmissão do conhecimento relojoeiro’, definindo-se como ‘uma plataforma global dedicada à preservação da cultura e herança relojoeira que fornece um ambiente íntimo onde colecionadores, marcas, relojoeiros e jornalistas podem interagir e partilhar conhecimento’. A fasquia estabelecida é atualmente inatingível por qualquer outro evento, até porque a natureza do Watches & Wonders e de Baselworld é incontornavelmente comercial: afinal de contas, há relógios que se fazem e que têm de ser vendidos. Mas, com a crescente sede de conhecimento por parte dos aficionados e clientes finais, vamos ver de que modo irão promover efetivamente a cultura relojoeira em 2020.
Que seja um grande ano relojoeiro!