Aurel Bacs: martelo de Midas

É o mais famoso leiloeiro do universo relojoeiro e o seu martelo arrematou alguns dos mais caros relógios de todos os tempos, mas a sua área de influência ultrapassa em muito o púlpito. Aurel Bacs é uma das mais proeminentes personalidades da indústria e também uma das mais carismáticas. Na sequência de mais um histórico leilão e de cinco extraordinários dias em Genebra, impunha-se uma entrevista de fundo ao homem com o toque de Midas.


Entrevista originalmente publicada no número 77 da Espiral do Tempo (inverno 2021)


Ao longo de quase quatro décadas, o fleumático Aurel Bacs acompanhou o regresso em força da relojoaria mecânica após a crise do quartzo, assistiu à emergência dos independentes e viu a chegada dos grandes grupos de luxo; foi presidente do júri do Grand Prix d’Horlogerie de Genève quase desde o início e o seu martelo de Midas permitiu-lhe leiloar alguns dos mais caros relógios de todos os tempos. Acompanhámo-lo na direção de mais uma sessão recordista promovida pela Phillips (in Association with Bacs & Russo, com o seu nome e o da mulher sempre em destaque) no Hotel La Réserve e depois fizemos com ele o rescaldo de cinco dias em Genebra — que celebraram o regresso presencial e em força da comunidade relojoeira após o longo hiato da pandemia.

Aurel Bacs | © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Aurel Bacs | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Como está habituado a estar no centro das atenções, vou colocá-lo desde logo em foco: foi quarto na nossa lista das personalidades mais carismáticas da relojoaria publicada na última edição da nossa revista, após Jean-Claude Biver, Max Büsser e Nicolas Hayek… O que pensa disso?

Não sei se mereço a distinção, mas fico muito honrado. Sobretudo sendo eu dos mais jovens e tendo em conta que Nicolas Hayek foi um incrível entrepreneur e visionário; que Jean-Claude Biver não só é um caro amigo, mas também alguém com muita sabedoria e um grande mentor que me ensinou tanto; e que Max Büsser é a combinação perfeita entre a criatividade e a criação de um modelo de negócio sustentável, sempre sorridente e, na ótica de muitas aficionadas, o homem mais bem parecido da indústria relojoeira!

Houve muita gente carismática e relógios carismáticos em foco na primeira semana de novembro. Começando pelo Grand Prix d’Horlogerie de Genève em ano de 20.º aniversário, e tendo sido presidente do júri durante tanto tempo, que avaliação faz sobre a evolução do concurso?

Digo agora o mesmo que dizia quando fui presidente do júri até há um ano. Temos os Óscares no cinema, na indústria automóvel existe o Carro do Ano, SUV do Ano, Carro Elétrico do Ano… Temos de celebrar na relojoaria aqueles que são os melhores, os mais inovadores, os de preço mais acessível, os mais corajosos, os mais disruptivos. Esse tipo de prémios funcionam bem em qualquer indústria. A ideia original de Gabriel Tortella e Jean-Claude Pittard estava certa e foi visionária. Mas quando se dirige uma tal competição, ela tem de ser feita da melhor maneira possível — não há espaço para política, para interferências na decisão; tem de haver o máximo de integridade por parte do júri e no processo de votação. Houve sempre evolução e eu sempre pressionei para que o júri fosse mais representativo; tinha de haver abrangência nos grupos de idade e nas disciplinas, representação desde o retalho aos designers, passando pela imprensa e pelos relojoeiros. Após a chegada de Raymond Loretan à presidência do GPHG, achámos que 30 jurados não eram suficientemente representativos e daí nasceu a ideia de uma Academia. O conceito do GPHG é absolutamente válido e cada ano se torna melhor. Mas tenho pena que não consiga ainda envolver todas as marcas e todos os grupos. Como se pode coroar o melhor relógio se há quem não participe? Estou otimista de que comecem a participar ou que voltem a participar, e que possa acontecer o que sucedeu no Only Watch, embora também aí haja marcas que escolhem não participar pelas suas razões. Deveríamos celebrar essas ocasiões e aceitar que nem sempre podemos ganhar.

“Avaliar simplesmente a beleza, a relevância e a qualidade de um relógio pelo preço é uma maneira de o fazer, mas não creio que seja o único meio de homenagear um relógio.”

Aurel bacs

François-Paul Journe, que tantos prémios ganhou no GPHG, deixou de participar e confessou-nos que considera agora o Only Watch como a referência absoluta do valor de um relógio ou de uma marca…

Avaliar simplesmente a beleza, a relevância e a qualidade de um relógio pelo preço é uma maneira de o fazer, mas não creio que seja o único meio de homenagear um relógio. Na eleição do Carro do Ano, às vezes é um supercarro de um milhão de dólares a ganhar o prémio por ser high tech… e por vezes o que ganha é um familiar de 10 mil euros que permite a uma família que não seja endinheirada viajar em conforto e segurança. Ambos são extremamente relevantes para a indústria automóvel. Os que proporcionam tecnologia de ponta aos ricos e os que dão mobilidade aos menos ricos. Se o melhor relógio do ano é o Patek de mesa que fez nove milhões no Only Watch, isso não é relevante para quem queira um bom relógio para uso diário. E no GPHG há também as categorias Challenge e Petite Aiguille para preços acessíveis, ganhas este ano pela chinesa CiGA Design e pela Tudor. Temos de arranjar maneira de celebrar todos os que contribuem para a indústria, seja o relógio de 500 euros de uma micromarca, seja um de 5000 ou outro de 5.000.000.

Aurel Bacs | © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Aurel Bacs no leilão da Phillips ‘in Assotiation with Bacs & Russo’ | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Nos últimos anos houve leilões a estabelecer recordes com regularidade e o vosso mais recente leilão da Phillips estabeleceu um novo máximo. Qual a razão para isso estar a acontecer?

Já sabíamos que iria ser o melhor de sempre porque nunca antes uma casa leiloeira teve um conjunto de relógios do outro mundo, daqueles que só aparecem uma vez na vida e no mesmo catálogo. Ter o conjunto completo dos relógios de subscrição Nº1 do François-Paul Journe, ter o único conjunto completo de relógios Philippe Dufour no mundo, ter um mítico Patek 2499 com Serpico y Laino no mostrador, e por aí fora… foi a tempestade perfeita. O mercado está numa forma fantástica, em volume e profundidade. Tivemos 3000 pessoas a participar, acho que foi um recorde, especialmente porque estavam apenas 250 relógios em leilão. O apetite por grandes relógios é maior do que nunca. E depois vemos o sistema económico global e pensamos: porque é que há criptomoedas, porque estão as propriedades tão caras, porque é que a bolsa está em alta? Porque há mais dinheiro do que nunca a circular. É a história da oferta e da procura; a procura aumentou e, consequentemente, os preços aumentaram.

Avaliando as tendências do mercado, tem-se notado que o vintage talvez esteja a estagnar, mas os desportivos de luxo e os independentes estão em alta. Como testemunha privilegiada, do que se apercebeu nestes leilões?

Há sempre tendências. E as tendências revelam que, num período curto, há mais procura por um certo produto do que a que havia seis ou 12 meses antes… Isso não significa que as outras coisas percam interesse ou se tornem irrelevantes. Cada tendência dá sempre lugar a uma outra. Houve a moda dos cronógrafos vintage da Patek Philippe, a moda dos relógios desportivos da Rolex, a moda dos mostradores de esmalte para o mercado chinês. Quando há algo que está na moda e tem um valor elevado, haverá sempre gente a achar que há outras coisas subvalorizadas e passam a comprá-las. Porque colecionadores que têm 10.000 ou 20.000 euros para gastar em relógios querem o melhor valor pelo seu dinheiro. E o valor é a relação entre o valor racional/analítico e o valor emocional, muito difícil de avaliar. Quando as pessoas se perguntam se, por 100 mil, vale a pena comprar um Nautilus ou um Royal Oak, ou dois Vacherons, ou três Omegas, ou quatro IWCs, podem também achar que um modelo está demasiado caro e passam a comprar outro. Há sempre compensações.

Aurel Bacs com a Espiral do Tempo e o F. P. Journe a leilão
Aurel Bacs com a Espiral do Tempo e o F. P. Journe a leilão | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Falando de compensações… Toda a loucura atual à volta dos chamados luxury sports watches — sobretudo o Nautilus, o Royal Oak, os Rolex da linha Professional e mesmo os Richard Mille — parece injusta para tantas outras marcas que fazem relógios excecionais e que, como qualquer carro novo que desvaloriza logo à saída do stand, também desvalorizam comparativamente com esses da moda.

Concordo. Mas… a vida é injusta. Muitos sommeliers dirão que, em testes cegos, tantas vezes os vinhos baratos de 20 ou 50 euros são mais apreciados do que vinhos incrivelmente famosos que custam 500 euros. Será a marca? Talvez. Há artistas por aí que podem ser génios, mas que só mais tarde são descobertos e celebrados. Vincent Van Gogh não foi apreciado em vida pelo seu trabalho e não vendeu um quadro. A vida é injusta e nós, consumidores, nem sempre somos os mais inteligentes. Confortamo-nos com o que os outros fazem sem nos questionarmos se está certo ou errado. Há 10 anos, um Nautilus 27100 fazia 30.000, 40.000 euros. Há 10 anos, um Royal Oak de série A em aço fazia 10 mil euros. Dir-se-ia então que seria injusto. Sempre que uma tendência se torna demasiado forte, outra nova tendência surge como reação. Hoje em dia, o Nautilus e o Royal Oak têm sensivelmente o mesmo valor.

“O mercado está numa forma fantástica, em volume e profundidade. Tivemos 3000 pessoas a participar, acho que foi um recorde, especialmente porque estavam apenas 250 relógios em leilão. O apetite por grandes relógios é maior do que nunca.”

AUREL BACS

Houve um resultado completamente inesperado no leilão, o do Omega Speedmaster Broad Arrow de 1957 — depois de tão animada licitação intercontinental, foi para a China por 2,813 milhões. Viu-se um Aurel Bacs espantado a agradecer em várias línguas e até disse ‘obrigado’ em português!

Quando comecei, os leilões eram dominados por 20 colecionadores italianos, alguns franceses e poucos alemães, ingleses, americanos. Agora temos participantes de mais de 80 países. Parece uma reunião das Nações Unidas, graças à conetividade — temos a possibilidade do online biding, democratizámos o processo e toda a gente pode participar. Viram-se licitadores das British Virgin Islands no telefone, Suíça online, New Jersey, Illinois, Califórnia, Porto Rico, Reino Unido, Itália, Tailândia, Singapura, Malásia, Japão, Hong Kong, China, de todo o lado!

Os quatro magníficos de Philippe Dufour que perfizeram 11 milhões: Grande et Petite Sonnerie Nº 1 (vendido por 4,749 milhões de francos suíços), Grande et Petite Sonnerie de bolso, (2,3 milhões de francos suíços), Duality Nº 8 (3,660 milhões de francos suíços) e o Simplicity Nº 57 (756 mil francos suíços).
Os quatro magníficos de Philippe Dufour que perfizeram 11 milhões: Grande et Petite Sonnerie Nº 1 (vendido por 4,749 milhões de francos suíços), Grande et Petite Sonnerie de bolso, (2,3 milhões de francos suíços), Duality Nº 8 (3,660 milhões de francos suíços) e o Simplicity Nº 57 (756 mil francos suíços) | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

As obras de arte e os carros passam por um processo de restauro para ficarem próximos do original; nos relógios, um mostrador queimado como o desse Speedmaster, que bateu um recorde para a Omega, é valorizado. Como explicar isso?

Tecnicamente e legalmente, quando alguém é dono de algo pode fazer o que quiser. Se um carro, um relógio ou um quadro devem ser restaurados tem a ver com a abordagem intelectual, emocional e prática de cada um. A coisa mudou muito, porque quando comecei, há quase 40 anos, tudo tinha de ser novo. Qualquer relógio que comprasse, levava-o ao relojoeiro para polir os riscos, mudar o mostrador sujo ou mudar ponteiros que já não tinham luminescência. Também é uma questão de educação apreciarmos o facto de o envelhecimento ser uma coisa boa e natural. Quando os concursos de elegância de carros começaram, até havia a expressão «it has been restored to concours condition»; para ganhar era preciso restaurar o carro. Mas, há uns anos, estrearam a nova categoria Preservation Class — que premeia o carro com menos restauro. O que acho é que nunca se deve fazer algo que não possa ser reversível, porque fazer algo de errado e não poder voltar atrás deixa-nos com remorsos. Mas a manutenção é necessária, fazer a revisão, olear o movimento, mudar a correia, eventualmente mudar o vidro ou mandar polir os riscos. Desde que o caráter original do relógio se mantenha, deve haver restauro suave e intervenção artística.

Estamos numa era em que praticamente todas as marcas mainstream têm modelos new vintage, neo-retro, reedições ou reinterpretações. O sucesso do vintage pode estar a prejudicar a criatividade da indústria.

Não nos podemos esquecer de que houve coisas que o homem desenhou que são simplesmente geniais; e que quando algo é genial consegue sobreviver às tendências e aos altos/baixos da sociedade. Não há nada de errado com um Reverso ou com um Tank. O mesmo se pode dizer da arquitetura ou da moda. Se as companhias escolhem inspirar-se no que é excelente, não tenho nada a dizer. Ao mesmo tempo, saúdo os que arriscam e tentam desenvolver novas coisas. Se Gérald Genta não tivesse ousado em 1972, talvez hoje não existisse a categoria dos relógios desportivos de luxo. Mas claro que houve coisas que não foram bem sucedidas — por exemplo, a década de 70 também deu a conhecer relógios monstruosos. Sou mais para o clássico, as coisas não têm de ser extravagantes para serem boas. Não condeno ninguém, mas encorajaria as marcas a pensar no futuro porque talvez um dia o vestido preto de Coco Chanel deixe de ser tão popular… A Porsche percebeu que não podia estar tão dependente do 911 e foi por isso que surgiram o Cayenne e o Macan, tal como a Audemars Piguet percebeu que não pode viver à sombra do Royal Oak e lançou o Code 11.59. Necessitamos dos dois lados, daqueles que se apercebem do que funciona de modo intemporal e dos que ousam contestar as fórmulas existentes.

Aurel Bacs | © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Aurel Bacs | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Na segunda parte do leilão da Phillips, o Luc Pettavino apareceu e viu-se uma interatividade especial entre vocês — e houve alguns lotes especiais vendidos em favor da sua pesquisa contra a distrofia muscular.

Tenho uma bela amizade com o Luc Pettavino, desde que ele veio ter comigo em 2014 e pediu para tomarmos conta do Only Watch. Fizemos mudanças radicais e foi muito importante para o Only Watch passar do Mónaco para Genebra, integrando-o na mesma semana do GPHG e dos leilões. O Only Watch é como o GPHG, é um evento para toda a comunidade. Tal como me convidou para o seu leilão, foi um grande prazer recebê-lo no nosso leilão. E tivemos dois objetos em que os consigners declararam que a verba iria para a causa de Luc Pettavino, nomeadamente a caixa dos modelos de Souscription da F.P. Journe e a caixa dos relógios Philippe Dufour, porque eram de conjuntos de relógios que foram individualmente adquiridos por compradores diferentes. Durante a sessão dei-lhe as boas vindas e ele estava sentado entre vários licitadores que foram competindo entre si até se chegar aos 100 mil francos pela caixa F.P. Journe. Foi hilariante termos conseguido um recorde mundial para uma caixa de relógios em madeira!

Como viu o desempenho do seu colega Rahul Kadakia no Only Watch — e o que faz com que um leiloeiro seja um bom leiloeiro?

O Rahul e eu trabalhámos juntos quando eu estava na Christie’s; somos amigos, convidou-me para o seu casamento e recebeu-me pessoalmente na Palexpo. Não há sentimento de competição porque ele é especialista em joalharia e eu em relógios. Ele é um dos melhores leiloeiros e fez um grande trabalho no Only Watch: com 850 pessoas na sala era quase preciso ter uns binóculos! Um leiloeiro só é bom quando sabe o que está a vender e a quem está a vender. Quem não sabe o que está a leiloar e não sabe com quem está a interagir na sala nunca pode ser tão bom como quando conhecemos as pessoas que estão na sala, os tratamos pelo primeiro nome, sabemos o nome da mulher, os nomes dos filhos, o dia de aniversário, o seu número de telefone, onde vão de férias, se são vegetarianos. Quando jantamos com eles e percebemos os relógios que lhes interessam, sabemos quão longe poderão ir ao leilão — é isso que faz um grande leiloeiro. É claro que com a Internet, nos últimos anos, se tornou muito difícil manter esse conhecimento pessoal, conhecer as preferências de 3000 pessoas…

Aurel Bacs | © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Aurel Bacs no leilão da Phillips ‘in Assotiation with Bacs & Russo’ | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Como gostaria de ser recordado? Ganhou fama como o leiloeiro que vendeu o relógio de pulso mais caro do mundo, o homem que vendeu o Paul Newman do Paul Newman.

Já me aconteceu muitas vezes dizerem-me isso, na rua ou até… no Camboja. Estávamos numa volta de bicicleta nas margens do rio Mekong e alguém diz: «eu conheço a sua cara. É o tipo que vendeu o Paul Newman!». Admito não querer ser recordado como aquele que vendeu o Rolex Daytona do Paul Newman, ou que esteve no maior leilão relojoeiro jamais realizado, ou que vendeu o relógio vintage de pulso mais caro da Patek… mas sim como aquele que teve a sorte de estar loucamente apaixonado pela relojoaria fina, que foi capaz de partilhar a sua paixão com uma larga audiência e que talvez tenha feito algumas pessoas felizes ao partilhar a paixão com elas!

Outras leituras