Bárbara Morais: dar e receber

Edição Impressa | Fomos a Norte, muito a Norte. Fomos tão a Norte que até ultrapassámos fronteiras. No entanto, se houve conceito que ficou pulverizado com esta viagem, foi esse mesmo, o de fronteira, o de limite. É impossível dissociar as criações de Bárbara Morais, enquanto fotógrafa, da sua vida como médica, esposa e mãe. Mulher de um tempo e de um local, única e indivisível, assim é esta ‘alquimista’ da fotografia que fomos visitar em terras transmontanas. E gigante é o coração com que nos recebeu.

— 

Eram perto das quatro da tarde quando chegámos a Pedras Salgadas. Um rápido telefonema e marcámos encontro perto do Centro de Saúde. A Bárbara é orgulhosamente médica de Medicina Geral e Familiar naquele centro, com um carinho especial pelos cuidados paliativos e geriatria. Entre duas consultas, tirou uns minutos para os primeiros beijos e abraços e, sendo mulher africana com costela transmontana, deixou-nos também uma (deliciosa) ameaça:

— Não admito outra coisa, hoje jantam na minha casa, com a minha família. O Paulo [marido] já foi buscar carne barrosã! Se forem vegetarianos, não há problema. A Isabel [uma das gémeas] e a Raquel [a filha mais velha] também são; tenho alternativas.

Bárbara Morais | © Paulo Pires/Espiral do Tempo
Bárbara Morais | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Dito e feito. Jantámos carne barrosã grelhada pelo Paulo na lareira da sala. A Inês acompanhou-nos no repasto, pois, apesar de gémea da Isabel, tal não as torna iguais nestas lides gastronómicas.

Mas recuemos na história.

Como é que para uma edição, sob o tema ‘Green’, acabámos a 500 km de Lisboa, numa pequena aldeia perto de Vila Pouca de Aguiar, na casa de uma médica?

A explicação é simples. Numa das reuniões editoriais ficou decidido que tínhamos de ir mais longe. Este ‘mais longe’ não era geográfico, mas sim visual. O relógio de capa já estava escolhido: o icónico Rolex Submariner Date com mostrador e luneta verde. Acontece, porém, que este modelo específico já foi mais fotografado que a Torre Eiffel, daí a necessidade do tal ‘ir mais longe’. Lembrei-me então das experiências fotográficas de Bárbara Morais, especialmente das suas clorofilotipias. O método da clorofilotipia consiste em usar elementos orgânicos como suporte para impressões fotográficas. A ideia de ter o relógio de capa impresso numa folha pareceu-nos que poderia resultar visualmente. Avançámos para o desafio.

Clorofílotipia do icónico Rolex Submariner Date por Bábara Morais | © Paulo Pires/Espiral do Tempo
Clorofílotipia do icónico Rolex Submariner Date por Bábara Morais, que é a grande protagonista da capa da mais recente Edição da Espiral do Tempo  | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Por paixão

Conheci a Bárbara há alguns anos através de uma paixão comum, a fotografia analógica, sobretudo a preto e branco. Temos um pequeno grupo de amigos entusiastas por estes pro- cessos que se encontra anualmente. E foi num desses encontros que a Bárbara entrou na minha (nossa) vida. Se tivesse de fazer um analogismo de relojoeiro, diria que a fotografia analógica está para a relojoaria mecânica como a fotografia digital está para a relojoaria de quartzo. Transportar uma máquina mecânica com um rolo a preto e branco, sair para fotografar e ter de ajustar manualmente cada exposição; cada fotograma conta. Chegar a casa, misturar o revelador e o fixador, revelar o rolo e, ao fim de alguns minutos, ver o negativo pendurado a secar. A fotografia analógica é apaixonante. Já dizia Andy Warhol que uma das melhores coisas da vida é acordar sabendo que se tem um rolo para revelar. Concordo em absoluto. O cheiro a fixador na ponta dos dedos desperta emoções que nenhum sensor digital alguma vez conseguirá.

Zenith Pilot Type 20 Ton Up | © Paulo Pires/Espiral do Tempo
Zenith Pilot Type 20 Ton Up | © Paulo Pires/Espiral do Tempo. Relógio gentilmente cedido por Gilles Joalheiros.

Pois a Bárbara foi mais longe. Muito mais. Começou a fazer experiências com reveladores próprios. Se é sobejamente conhecido o uso do café como revelador, o chamado cafenol, creio ser bastante mais surpreendente usar vinho, bolotas, romãs, chá verde, maçarocas ou barbas de milho, aos quais são adicionados vitamina C e outros ingredientes. É um processo de tentativa e erro até descobrir as porções certas, os passos certos. Envolve ebulição, coar, filtrar, criar infusões. É um processo alquímico. Mais uma vez aqui se unem duas paixões de Bárbara Morais: cozinhar e os seus reveladores alternativos. «Faço as infusões na cozinha enquanto preparo as refeições para a minha malta. Porque cozinhar é um ato de amor, tal como fazer reveladores. E estas infusões têm um cheiro maravilhoso. Imaginem o cheiro a chá verde por toda a casa, ou de vinho quente. Uma delícia!». O objetivo final será chegar a um revelador totalmente orgânico, usando cada vez menos vitamina C, e procurando explorar as caraterísticas dos taninos como agente de revelação. Amplamente encontrados na natureza, os taninos – polifenóis de origem vegetal – inibem o ataque às plantas por herbívoros. «Sabem aquele ácido na casca dos dióspiros que torna a língua áspera? É isso. É esse o revelador natural que procuro.» Se certos processos podem ser feitos na cozinha, outros são um pouco mais delicados, como trabalhar com éter para fazer wet plates, o também chamado colódio húmido. «Uma vez estava a trabalhar com éter e disse ao Paulo para ficar do lado de fora do quarto escuro. Pedi-lhe, caso ouvisse o som de algo a cair, para entrar e me socorrer!»

Processos alternativos

Sendo uma pessoa inconformada por natureza, que sofre com as injustiças que não consegue mudar, a opção de se mudar e viver numa pequena aldeia foi a reação ao corropio do mundo, à agressão constante das notícias, ao ruído ensurdecedor que nos afasta de nós próprios e dos outros. Medicina Geral e Familiar e cuidados paliativos num meio pequeno significa ser mais do que médica. É conhecer pelo nome histórias que acabam com um último suspiro. Pergunto-me agora como seriam as criações fotográficas de Bárbara Morais se não vivesse ali, rodeada de campo, da sua maravilhosa família, cultivando o seu terreno ou suturando o seu ganso — de mau feitio, após o ataque de uma raposa que o deixou viúvo.

Folhas esqueletizadas  | © Bárbara Morais
Folhas esqueletizadas | © Bárbara Morais

As folhas nas quais Bárbara imprimiu alguns relógios através do processo de clorofilotipia foram apanhadas por ela no seu terreno. Os ovos no interior dos quais aplicou uma das suas gelatinas de brometo de prata vieram de uma vizinha. As madeiras e pedras, que tantas vezes usa como suportes fotográficos para essas mesmas gelatinas fotossensíveis, são recolhidas por ela ou pelo Paulo durante as suas longas caminhadas. E é isto que torna o seu trabalho único, pois não é — nunca foi — trabalho. É a vida a acontecer.

Colódio húmido | © Bárbara Morais
Colódio húmido | © Bárbara Morais

A terra e a natureza naquele enquadramento geográfico são fatores fundamentais da paixão fotográfica da Bárbara. Tudo se mistura. Como referi atrás, até a sazonalidade tem o seu papel nestas experiências fotográficas. Esta ligação à terra fascinou-nos. Este fazer com as mãos que tanto tem a ver com a bela relojoaria. Decidimos fazer a viagem até Vila Pouca de Aguiar. Descobrimos que alternativas não são apenas as experiências fotográficas da Bárbara. Alternativa é também a sua postura perante a vida.

À esquerda: Clorofilotipia | À direita: Filme de 35 mm caseiro. | © Bárbara Morais
À esquerda: Clorofílotipia | À direita: Filme de 35 mm caseiro. | © Bárbara Morais

Caderno de viagem

A Bárbara e o Paulo levaram-nos até Aquis Querquennis, onde começámos a fotografar a nossa produção, agora tornada caderno de viagem. Voltámos a entrar em Portugal pela Portela do Homem, no Gerês, e seguimos caminho para Pitões das Júnias. Carismática aldeia, tanta vezes isolada pela neve, brindou-nos com um sol radioso. Almoçámos o famoso cozido, comprámos pão e fotografámos relógios. Conhecemos a Margarida, que nos deixou fotografar no Ecomuseu de Barroso de Pitões das Júnias. Curiosamente, a Margarida é seguida por um pequeno cão, de pelo branco, que não lhe pertence. Mas, enfim, escolheu-a como dona. A estragar tudo, a relação complicada com o gato da mesma.

Clorofílotipia do TAG Heuer Monaco Calibre 11 Automatic Chronograph por Bábara Morais sob o relógio real | © Paulo Pires/Espiral do Tempo
Clorofílotipia do TAG Heuer Monaco Calibre 11 Automatic Chronograph por Bábara Morais sob o relógio real.  | © Paulo Pires/Espiral do Tempo. Relógio gentilmente cedido pela Torres Distribuição.

Terminámos, no dia seguinte, no quarto escuro da Bárbara, onde aproveitámos para fotografar um TAG Heuer Monaco e um Zenith Pro Pilot num ambiente mais controlado, pois a nossa anfitriã tinha mais clorofilotipias e cianotipias à nossa espera. Nessa tarde, com um pôr-do-sol inesquecível, realizámos a foto que seria a capa desta edição. Durante três dias fizemos parte daquela maravilhosa família. Passeámos juntos, comemos juntos e fomos brindados com uma generosidade que as palavras não conseguem exprimir. Trouxemos histórias, conhecemos lugares e pessoas e fotografámos relógios. «Não me chames fotógrafa, por favor! Nem escrevas isso! Eu gosto é de estar aqui com as minhas experiências, mas ao aceitar o vosso desafio aprendi muito. Eu é que vos agradeço!»

À esquerda: TAG Heuer Monaco Calibre 11 Automatic Chronograph |  À direita: Impressão do Zenith Pilot Type 20 Ton Up em gelatina de brometo de prata no interior de um ovo | © Paulo Pires/Espiral do Tempo
À esquerda: TAG Heuer Monaco Calibre 11 Automatic Chronograph | À direita: Impressão do Zenith Pilot Type 20 Ton Up em gelatina de brometo de prata no interior de um ovo | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Este agradecimento foi feito ao mesmo tempo que nos entregava um saco de nozes e outro de avelãs para trazermos de volta para Lisboa. Mais do que fotografias e material de reportagem, regressámos com o desejo de voltar e de partilhar com os nossos leitores esta viagem. Por isso, não, mil vezes não Bárbara. Nós é que vos agradecemos.

E aqui está a capa do número 66 da Espiral do Tempo que só se tornou possível graças às ‘artes alquímicas’ de Bárbara Morais:

EDT66_web_08

Siga-nos:
#espiraldotempo
#espiraldotempo66
#edt66rolex
#edt66green

Outras leituras