Calvino, Genebra e os Métiers d’Art

EdT46 —Sobre Calvino, Genebra e como a intolerância religiosa acabou por dar ao mundo algumas das mais belas criações relojoeiras de sempre.

Originalmente publicado no número 46 da Espiral do Tempo

Quem iria supor que a reforma protestante liderada por Martinho Lutero e João Calvino em 1517 viria a dar origem a alguns dos mais belos relógios alguma vez construídos e a fundar aquele que é hoje amplamente reconhecido como o centro mundial da alta-relojoaria e das artes decorativas que lhes estão associadas?

Gravura de João Calvino por rené Boyvin
Gravura de João Calvino por René Boyvin

João Calvino, francês, advogado, pastor e teólogo, perseguia no seu tempo a convicção de que a recente prática instituída pela Igreja Católica Romana de vender indulgências não era aceitável. Um desacordo que acabaria por se alargar a muitas das doutrinas e práticas da igreja desse período, e que leva Calvino a romper definitivamente com a Igreja Católica Romana em 1530. Passados apenas quatro anos, um incidente anticatólico, que ficaria conhecido como o «Affaire des Placards», obriga-o a iniciar uma fuga para a cidade suíça de Basileia, nessa altura sob a influência de um eminente reformador.

Calvino regressaria ainda a Paris durante os seis meses de amnistia previstos pelo Édito de Coucy, em 1535, mas a imposição de uma reconciliação com a igreja católica leva-o a concluir que o seu futuro não passa mais por França. Parte assim para Estrasburgo, uma cidade pertencente ao Sacro Império Romano-Germânico e um refúgio para os reformadores, mas o destino dita que tenha de se desviar para Genebra ao deparar-se com manobras militares francesas.

A ideia de permanecer em Genebra apenas por uma noite acaba por ser contrariada pelo reformador francês Guilherme Farel, que o convence a ficar e a participar na exigente tarefa de disseminar as igrejas reformadas pelo território. Nas décadas que se seguem, e apesar de um trajeto algo atribulado e de forte oposição, a influência reformadora e religiosa de Calvino no governo da cidade chega ao ponto de Genebra ser conhecida além-fronteiras como a «Roma Protestante».

Calvino
Na década de 1550, João Calvino escreve ao Rei Eduardo VI de Inglaterra, um protestante, com o objetivo de o encorajar nas suas reformas. Aqui, um facsímile de uma carta manuscrita, assinada por João Calvino, com data de 4 de julho de 1552 dirigida ao rei inglês. do acervo do British Museum.

Seis anos após o «Affaire des Placards», o rei Francisco I de França assina o Édito de Fontainebleau, substituindo as políticas de tolerância vigentes por um conjunto de sanções aplicáveis a todos os protestantes, que previa a tortura, a perda de propriedade, a humilhação pública e a morte. Em 1551, Henrique II de França agravava o confronto ao assinar o Édito de Chateaubriand e, seis anos depois, escalava ainda mais a confrontação entre católicos e protestantes com a assinatura do Édito de Compiègne. Este tratado previa, entre outras penalizações, a pena de morte a todos os que, como Calvino, viajassem para Genebra ou lá publicassem livros.

É neste período agitado da história europeia que Genebra acolhe a primeira grande vaga de protestantes refugiados, entre eles um grande número de artesãos como relojoeiros, ourives, joalheiros, pintores e esmaltadores. Apesar de tudo, nem todos viam a sua vida facilitada no seu novo destino. Calvino proibia o uso de joias ou de quaisquer outros objetos de idolatria, ao mesmo tempo que permitia o uso do relógio como um objeto útil e, por conseguinte, aceitável. Em consequência, ourives, joalheiros e outros artífices converteram-se incondicionalmente à arte da relojoaria, produzindo caixas de relógios, gravando e pintando mostradores que depois exportavam para os mercados emergentes deste período, como eram o Oriente e as colónias americanas. Este período é hoje unanimemente considerado como o momento que dá início à produção de relógios portáteis em Genebra, e que viria a dar à cidade o seu estatuto de capital mundial da alta-relojoaria. A concentração deste grande número de artífices muito especializados deu a Genebra o estatuto de produtora de alguns dos mais belos relógios do mundo. Uma posição dominante que não voltaria a perder.

Entretanto, por terras francesas, a agitação religiosa continuava. Mas havia quem pretendesse serenar os ânimos. Ao reconhecer a opção religiosa como um direito, o Édito de Saint-Germain, assinado em janeiro de 1562 por Catarina de Médici, rainha de França, dava agora uma proteção limitada aos protestantes que habitavam o reino. Os membros da Igreja Reformada Francesa, ou huguenotes, como passaram a ser conhecidos a partir de 1560, acabariam por não beneficiar deste tratado, já que, por uma mera questão administrativa, este apenas viria a ser registado depois do Massacre de Vassy, a 1 de março de 1562. Este evento daria início a uma sucessão de guerras religiosas em solo francês, que se arrastariam até perto do final do século XVI.

Interior da Ourde Kerk, o mais antigo edifício de Amesterdão, mas que, depois da reforma de 1578, se tornou, até aos dias de hoje, numa igreja Calvinista. Pintura de Emanuel de Witte
Interior da Ourde Kerk, o mais antigo edifício de Amesterdão, mas que, depois da reforma de 1578, se tornou, até aos dias de hoje, numa igreja Calvinista. Pintura de Emanuel de Witte

Calvino morre em 1564, aos 54 anos de idade, sem que com isso Genebra deixasse de continuar a seguir a sua doutrina e a receber vaga após vaga de refugiados protestantes. Em 1572, Genebra é praticamente invadida por huguenotes que se refugiam na cidade em consequência do massacre da noite de São Bartolomeu, ordenado por Carlos IX, que ceifa a vida a milhares de protestantes na cidade de Paris e nos arredores. O terror infligido por estes acontecimentos leva a que uma parte importante da população abandone o país, levando consigo uma parcela substancial das artes e do conhecimento.

Uma nova tentativa de refrear os ânimos surge com a assinatura do Édito de Nantes a 13 de abril de 1598, pela pena de Henrique IV de França. O novo documento garante aos huguenotes franceses direitos substanciais numa tentativa de unidade civil que viria a abrir um caminho de secularismo e de tolerância. Entretanto, Genebra, que acumulava já uma forte tradição na constituição de guildas, ou corporações de ofício, desde a Idade Média, vê os relojoeiros genebrinos e franceses unirem-se, em 1601, numa única entidade regulada pela primeira Ordonnance et Règlement sur L’État des Orologiers.

Mas, passados 87 anos sobre a assinatura do Édito de Nantes, dá-se novamente uma reviravolta. A assinatura de um novo Édito de Fontainebleau, conhecido como a revogação do Édito de Nantes, por Luís XIV de França, em 1685, inverte novamente a sorte dos huguenotes que, desta vez, veem as suas igrejas destruídas e as suas escolas fechadas.

Édito de Fontainebleau
Édito de Fontainebleau

Esta seria a gota de água num longo processo de discriminação e perseguição que acabaria por levar a que perto de 900.000 huguenotes deixassem França, ao longo das duas décadas seguintes, rumo a cidades e a países mais tolerantes. A Suíça recebe, assim, a sua segunda vaga de refugiados religiosos que, sem quaisquer bens ou dinheiro, levavam consigo, mais uma vez, o conhecimento de diversas artes. França ficou seriamente desprovida de artesãos de grande qualidade, particularmente na relojoaria e nas artes decorativas associadas. Genebra e Londres, reconhecidamente as grandes capitais mundiais da relojoaria neste período, seriam as mais beneficiadas por este verdadeiro êxodo.

Em 1760, a cidade de Genebra contava já com mais de 600 mestres relojoeiros entre os seus 20.000 habitantes. Relojoeiros, ourives, pintores sobre esmalte e gravadores trabalhavam em conjunto para criarem peças excecionais destinadas em especial ao mercado chinês. O Império Otomano era um outro destino importante, levando mesmo à criação de uma colónia de relojoeiros genebrinos em Gálata, um distrito de Constantinopla reservado aos ocidentais. Entre estes colonos, encontrava-se Isaac Rousseau, o pai do filósofo Jean-Jaques Rousseau, que usufruía do título de relojoeiro ao serviço do Sultão.

Muro dos Reformadores em Genebra.

Finalmente, a 7 de novembro de 1787, Luís XVI assinava o Édito de Versalhes, também conhecido como o Édito de Tolerância. Este tratado viria a ser registado no parlamento francês a 29 de janeiro de 1788, dando finalmente por terminado o período de intolerância religiosa que assolou a Europa ao longo de mais de um quarto de milénio. Em Genebra, nada mudaria – a cidade manter-se-ia até hoje como o centro mundial da alta-relojoaria, manifestando-se, ano após ano, através de uma criatividade inédita e deslumbrante no badalado campo dos Métiers d’Art. Um estatuto que, em última instância, se pode agradecer aos ímpetos puritanistas de Calvino e à tolerância religiosa adotada pelos governos de Genebra. ET_simb

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