Calendários: janela para a mecânica celeste

O calendário dá-nos uma perspetiva temporal e cronológica sem a qual estaríamos verdadeiramente perdidos nas brumas do tempo. Com ele, podemos olhar para o passado, mas também para o futuro e beneficiar de um ponto de referência que nos permite, efetivamente, medir o tempo numa escala mais alargada.

Imagem acima: A Referência 57260 da Vacheron Constantin é um relógio de bolso com 57 complicações, inclusive o calendário hebreu.

Até prova em contrário, cabe à Teoria do Big Bang (…obrigado, Lamaître e Hubble) responder a uma das mais velhas perguntas do homem: quando começou o tempo?

Segundo o sofisticado modelo cosmológico que parametriza o fenómeno, o Lambda-CDM, a seminal explosão terá ocorrido há cerca de 13.787 milhões de anos, estimando-se haver neste cálculo uma margem de erro de, mais ou menos, 20 milhões de anos. Um fator que levantaria graves problemas na inscrição de uma qualquer data num bilhete-postal, não fosse a contagem dos dias um fenómeno relativamente recente na história do Homem.

Secção do calendário hieróglifo no templo Kom Ombo no Egito, que mostra a transição do décimo segundo mês para o primeiro. ©DR
Secção do calendário hieróglifo no templo Kom Ombo no Egito, que mostra a transição do décimo segundo mês para o primeiro. ©DR

Há pouco mais de cinco mil anos, tentamos criar uma referência para o início dos tempos, incorrendo na vã tentativa de acertar, com exatidão, o calendário com as estações e até mesmo com o próprio relógio. Ao longo deste período, diversas civilizações decidiram estabelecer, por sua conta e risco, o ano um — aquele em que tudo começou e antes do qual não havia nada, tomando como referência o movimento aparente do Sol, da Lua e das estrelas no firmamento.

Este ponto de partida nunca esteve em conformidade com a ideia de que, por exemplo, o ano 2020 corresponderá ao ano 1398, 1440, ou 1736, caso tomemos como referência o calendário persa, muçulmano ou copta. No caso do calendário hebreu, 2020 corresponderá ao ano 5779, que se iniciou a 7 de outubro de 3761 a.C., o dia em que o mundo foi criado. Aliás, a data mais antiga conhecida é a do ano 4236 a.C., um marco que assinala a fundação do calendário egípcio e que, diga-se, cria alguns constrangimentos relativamente à crença hebraica.

Sugestão de leitura: O livro 'Le 30 février Et autres curiosités de la mesure du temps' de Olivier Marchon, pega na recheada história da medição do tempo e faz uma recolha de curiosidades e de pequenas histórias com piada, quase anedotas, que nos mostram como algo que, hoje em dia, é visto como óbvio, rigoroso e evidente afinal está muito longe de ser perfeito, universal e imutável. ©DR
Sugestão de leitura: O livro ‘Le 30 février Et autres curiosités de la mesure du temps‘ de Olivier Marchon, pega na recheada história da medição do tempo e faz uma recolha de curiosidades e de pequenas histórias com piada, quase anedotas, que nos mostram como algo que, hoje em dia, é visto como óbvio, rigoroso e evidente afinal está muito longe de ser perfeito, universal e imutável. ©DR

Mas, ao deixar para trás a questão do momento exato em que se passou a contar a passagem dos dias, deparamo-nos com um outro ponto de discórdia: a duração de um ano.

Os antigos egípcios, pioneiros nestas questões, definiam o período do ciclo solar (e ainda ninguém sabia o que era uma órbita) como tendo uma duração de 365 dias e 1/4.

Já o antigo ano chinês (ou ano lunar) durava 354 dias, sendo necessário acrescentar, aqui e ali, alguns dias de forma a mantê-lo alinhado com as estações do ano, não fosse a primavera entrar pelo outono adentro. Uma fórmula adotada também pelos gregos e judeus de maneira a manter o seu ano de 365 dias devidamente na linha.

Papa Gregório XIII, o responsável pela introdução do calendário atual (calendário gregoriano) pela bula Inter gravissimas, assinada a 24 de fevereiro de 1582, reformando o antigo calendário juliano. ©DR
Papa Gregório XIII, o responsável pela introdução do calendário atual (calendário gregoriano) pela bula Inter gravissimas, assinada a 24 de fevereiro de 1582, reformando o antigo calendário juliano. ©DR

Deve-se, no entanto, aos romanos a elaboração de um calendário mais sofisticado que, ao longo dos séculos, deu origem ao sistema adotado hoje de forma quase universal. Inicialmente com uma curiosa duração de 304 dias, o calendário romano evolui por volta de 700 a.C. para 355 dias — um número que se mantinha desfasado do ciclo solar e que requereu a intervenção de um imperador para pôr um pouco mais de ordem no sistema. Ao impor um ano com 365 dias e 1/4, a 1 de janeiro do ano 46 a.C., Gaius Julius Caesar empreendeu a reforma de um calendário cuja discrepância acumulava já 80 dias em relação ao ano solar. O ano 45 a.C. acabou, assim, por se prolongar ao longo de 445 dias, ficando para a história como o «ano da confusão». Mas nada é eterno e, passados seis séculos, seria a vez de um Papa se manifestar e dar origem a uma nova era: a do calendário gregoriano.

Dos 365 dias e 1/4 do calendário juliano, passa-se para 365 dias, cinco horas, 48 minutos e 20 segundos. Uma precisão acrescida, imposta desta vez não por um imperador, mas por um Papa, corria o ano do Senhor 1582. É que, apesar dos enormes benefícios do alinhamento da contagem dos dias com as estações do ano, implementado por Júlio César, ao longo dos 628 anos entretanto decorridos, as ‘pequenas’ imperfeições do sistema (um erro de cálculo de 11 minutos no ano solar resultava num erro de um dia a cada 128 anos) obrigaram o Papa Gregório XIII a adotar medidas ainda mais extremas.

Calendário juliano que indicava para cada mês, o signo do zodíaco, a luz do sol e o trabalho agrícola do momento, Alemanha, c. 1400. ©DR
Calendário juliano que indicava para cada mês, o signo do zodíaco, a luz do sol e o trabalho agrícola do momento, Alemanha, c. 1400. ©DR

Em vez de o ano se ver dilatado em 80 dias, como acontecera seis séculos antes, desta vez foi necessário fazer ‘desaparecer’ dez dias inteiros. Para tal, foi emitida a bula papal Inter gravissimas que, milagrosamente, transformou o dia 5 de outubro de 1582 no dia 14 de outubro desse ano. Uma correção que resolveu de um só golpe o desfasamento acumulado em relação à data inicial do equinócio da primavera.

A medida seria aplicada em Portugal sem que os portugueses fossem tidos ou achados, já que coube a Felipe II de Espanha (na altura, também Felipe I de Portugal) a tarefa de promulgar a lei que assina, em Lisboa, a 20 de setembro de 1582. A implementação quase simultânea deste calendário nos vastos territórios ultramarinos de Portugal e Espanha do século XVI e a influência que a sua adoção provocou nas nações vizinhas podem avançar como uma explicação para o sucesso quase universal assumido pelo calendário gregoriano, a partir desse momento.

A H. Moser & Cie lançou recentemente o Pioneer Perpetual Calendar MD que apresenta um novo movimento de manufatura. O Calibre HMC 808 de corda manual oferece uma reserva de corda que dura pelo menos 7 dias graça a dois tambores de corda. © H. Moser & Cie
A H. Moser & Cie lançou recentemente o Pioneer Perpetual Calendar MD que apresenta um novo movimento de manufatura. O Calibre HMC 808 de corda manual oferece uma reserva de corda que dura pelo menos 7 dias graça a dois tambores de corda. © H. Moser & Cie

A maioria dos países católicos adota a recomendação da bula papal entre 1582 e 1584, seguindo-se a Alemanha protestante entre 1700 e 1775. A Grã-Bretanha e as suas colónias americanas apenas cedem em 1752, tendo sido, nessa altura, necessário que o monarca Jorge II fizesse desaparecer 11 dias do calendário. Ao dia 2 de setembro de 1752 do calendário juliano, sucedia-se, assim, o dia 14 de setembro do mesmo ano, mas agora do calendário gregoriano. Uma questão tema que seria usada de forma habilidosa pela oposição parlamentar na campanha eleitoral desse ano.

Segue-se o Japão, em 1873, e a Rússia, em 1918, em resultado de um decreto assinado pela mão de Vladimir Lenine. Mesmo assim, e até aos dias de hoje, a Igreja Ortodoxa insiste em rejeitar o calendário gregoriano, tendo votado, pela última vez em 1971, para desconsiderar o desfasamento acumulado desde 1582 em relação ao ano solar: de duas horas, 59 minutos e 12 segundos.

E apesar do seu sucesso e adoção quase universal, a medida instituída pela bula papal está longe de ser uma solução perfeita. No ano 4909, terá de ser feita uma correção de um dia completo para colocar novamente tudo em ordem, provando que o calendário foi sempre uma dor de cabeça, tanto para os astrónomos como para o poder eclesiástico ou político. E, no entanto, ele é um dos elementos de grande fascínio representados sobre o mostrador de um clássico medidor do tempo em que o problema dos meses de duração variável representa um desafio para a arte e o engenho do relojoeiro: simples, anual, perpétuo ou secular?

O Laureato Perpetual Calendar da Girard-Perregaux, lançado no SIHH 2019, está equipado com um movimento especialmente criado para servir este modelo — o novo Calibre GP01800-0033. © Girard-Perregaux
O Laureato Perpetual Calendar da Girard-Perregaux, lançado no SIHH 2019, está equipado com um movimento especialmente criado para servir este modelo — o novo Calibre GP01800-0033. © Girard-Perregaux

O calendário dos relógios mecânicos que usamos no pulso rege-se por um conjunto de regras que replicam, na medida do possível, o calendário gregoriano: um calendário solar de 365 dias, dividido em 12 meses com 30 e 31 dias — à exceção de fevereiro, que termina apenas ao fim de 28 dias. A adoção cíclica de um ano bissexto adiciona um dia suplementar a fevereiro, dando-lhe 29 dias de duração a cada quatro anos.

No que respeita ao mecanismo do relógio, a teoria é simples: um órgão regulador a oscilar a uma determinada frequência impulsiona um conjunto de rodas dentadas interligadas (trem de engrenagens) e associadas a ponteiros de segundos (uma rotação a cada 60 segundos), minutos (uma rotação a cada 60 minutos) e horas (uma rotação a cada 12 horas). Ao fim de 24 horas é acionada a roda do calendário que salta progressivamente para o dígito seguinte, por volta da meia-noite, para indicar o dia do mês correto.

À esquerda: Andersen Genève Perpetuel Secular Calender “20th Anniversary” Blue Gold Dial | À direita: Rolex Day-Date 40
À esquerda: Andersen Genève Perpetuel Secular Calender “20th Anniversary” Blue Gold Dial | À direita: Rolex Day-Date 40

A partir daqui, separa-se o trigo do joio, e um calendário simples — ou mesmo misto como o Day-Date proposto pela Rolex —necessitará de ser avançado cinco vezes por ano para corrigir a indicação dos meses com menos de 31 dias. Já a versão com calendário anual, como o novo Patek Philippe Ref. 5905R-001, apenas terá de ter em consideração os anos bissextos, necessitando de uma correção a cada mês de fevereiro, ao longo de três anos, saltando do dia 28 diretamente para o dia 1 de março. Este é um problema que as fascinantes versões com calendário perpétuo resolvem ao incorporarem uma roda suplementar programada para fazer avançar o disco da data em fevereiro. Sendo o quarto ano deste ciclo o ano bissexto, a indicação de data dispensa a correção e a roda programada não intervém no funcionamento do mecanismo. Uma funcionalidade que, no caso do recente e superlativo Jaeger-LeCoultre Master Grande Tradition Gyrotourbillon Westminster Perpétuel é quase eclipsada pelas restantes complicações, mas que traduz, na perfeição, a necessidade de acrescentar um dia extra ao calendário a cada quatro anos, de maneira a compensar o facto de um ano com 365 dias ser mais curto do que o ano tropical em quase seis horas.

E, finalmente, chegamos ao pináculo da complicação clássica do calendário (exclui-se desta abordagem a indicação de datas religiosas como a Páscoa no Calibre 89 da Patek Philippe, ou o calendário hebreu no Vacheron Constantin Ref. 57260), o ponto mais alto de complexidade passível de ser alcançado, atualmente, por um relógio mecânico: o calendário perpétuo secular.

À esquerda: Laurent Ferrier Galet Annual Calendar School Piece Opaline White | À direita: Patek Philippe 5905R Flyback Chronograph Annual Calendar
À esquerda: Laurent Ferrier Galet Annual Calendar School Piece Opaline White | À direita: Patek Philippe 5905R Flyback Chronograph Annual Calendar

Quando o Papa Gregório XIII decidiu corrigir o calendário juliano, em 1582, definiu que cada quarto ano seria um ano bissexto, ou intercalar, de 366 dias, em vez dos habituais 365. Isto se considerarmos a exceção dada aos anos seculares que deverão ser corrigidos de 29 para 28 dias. Neste caso, os anos 2100, 2200, 2300 e 2400 serão anos seculares e os relógios capazes de considerar esta exceção atuam sobre a roda do calendário a cada 100 anos. O excecional Calendário Perpétuo Secular da Andersen Genève é um dos raríssimos exemplares de pulso capaz desta façanha, apesar de a mesma apenas poder vir a ser observada daqui a 81 anos.

É, pois, por de mais evidente que este é um assunto capaz de seduzir um público capaz de reconhecer na complexidade das coisas e dos temas um encanto muito particular. Um encanto que se reconhece na relojoaria mecânica, apesar de a mecânica celeste que lhe dá expressão se reger por um conjunto de regras bastante distintas. Assim, e da próxima vez que puxar a coroa do seu relógio para a segunda posição, lembre-se da fascinante evolução do calendário e vai ver que vai ser difícil não esboçar um sorriso de satisfação.

Outras leituras