Mais uma ‘Crónica dos Bons Malandros’

Um bom relógio sempre foi um objeto muito cobiçado pelos amigos do alheio. E ainda o é. Mas, em Portugal, parece que os tempos são outros…

Em Portugal, vivemos tempos seguros para usar relógio. Em traços gerais, os meliantes têm outras preocupações que não o arejamento dos nossos pulsos e observo, também, que foram perdendo maneiras.

Senão vejamos: até meio da minha adolescência, as pessoas com a minha idade ainda não tinham telemóvel. Era um objeto ainda exclusivo de adultos que achavam racional furar o tablier de um automóvel para ter um kit ‘mãos livres’ com a nitidez do altifalante da Estação de São Bento.

Já no meu caso, à saída da escola, havia um conjunto ocasional de abutres interessados em proporcionar-me, gratuitamente, um kit ‘pulsos livres’. A abordagem consistia no ‘guna’, como chamamos no Porto, aproximar-se da criança indefesa e perguntar, com um objeto cortante a adornar uma das mãos: «Tens horas, ó mano?». Era, portanto, uma questão para cuidada reflexão, em vez do seco e imperativo «Passa para cá o telemóvel», que lhe veio a suceder.

O Zeitwerk da A. Lange & Söhne em passeio tranquilo na agitada Ribeira | © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

Foi talvez aí que aprendi a pensar sob pressão, neste caso, a pressão que ele me fez no braço antes que eu me pirasse como uma gazela assustada.
Noto, com bastante tristeza, que o meu imortal Nokia 5110 continua na minha gaveta (entretanto cresci e corria depressa), mas o resplandecente Swatch Irony que a minha mãe me ofereceu pelos meus 13 anos fez com que aquele cavalheiro nunca mais chegasse atrasado a nenhum compromisso.

Pena, porque se eu estivesse munido de ambos, acho que lhe ganhava o ‘pedra/papel/tesoura’, e o serviço de neurologia do Santo António, um pontualíssimo doente.

A verdade é que, desde o aparecimento das tecnologias pessoais, tenho amigos que ficaram sem telemóveis, computadores e tablets. Mas o relógio deixou de ser um objeto de cobiça por excelência por parte do ladrão de rua lusitano e nunca, em Portugal, me senti ameaçado por ostentar um bom relógio no pulso, em nenhuma circunstância.

Obviamente, o mesmo não se aplica em países com baixos índices de segurança ou em cidades que têm grupos especializados em furto de relógios, caso que motivou, até, um conhecido jornalista nórdico a criar um — muito parodiado — dispositivo que impede que um relógio seja furtado por um talentoso ladrão, sem que o seu dono dê conta.

Portanto o meu conselho é: evite cidades perigosas e evite, talvez, o elétrico 28 de Lisboa, e tenha sempre consigo um telemóvel. Ele vai continuar a ser o salvador de muitos relógios.

NOTA | Título evocativo do livro Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal

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