O sonho americano

O mercado americano é um dos mais apetecíveis para a indústria relojoeira. Os números dizem tudo. Mas, neste momento, este mercado está a alterar-se. A chegada das vendas on-line, as guerras comerciais, a luta entre marcas e retalhistas, e a compra de distribuidores americanos por grandes empresas europeias estão a mudar as regras do jogo cartas do jogo. Ainda assim, todos acreditam que o mercado vai continuar a crescer.

Imagem acima: Fundada em 2011, a Shinola produz internamente relógios e produtos em pele numa fábrica em Detroit. © DR

Tempo é dinheiro. Em poucos países, a ética de trabalho protestante ficou tão gravada na memória e nas atividades diárias como ficou nos Estados Unidos. Os relógios serviram para unificar o tempo, para que os comboios conquistassem as planícies que ficavam entre o Atlântico e o Pacífico. O nascimento desta nação também se fez ao ritmo dos ponteiros dos relógios. O sonho americano fez-se de horas certas. Não admira que, entre o século XIX e as primeiras décadas do século XX, a produção relojoeira fosse pujante nos EUA, utilizando métodos que viriam a ser, depois, popularizados por Henry Ford. A partir de 1850, a indústria relojoeira desenvolveu-se e empresas como a Elgin, Waltham e Hamilton criaram relógios que ajudaram a aumentar a fiabilidade dos horários do transporte ferroviário. Esta era de ouro durou até 1929 e até ao colapso da bolsa, quando os relógios se tornaram produtos de luxo que nem todos podiam adquirir. As empresas que não passaram a produzir relógios de pulso não sobreviveram. E, após a Segunda Guerra Mundial, a consolidação e a concorrência da indústria suíça, que produzia relógios mais finos e elegantes, garantiu o fim desta era. Os consumidores americanos viraram-se para os relógios importados da Suíça.
Os números não enganam. O mercado americano é, hoje, um dos mais importantes para a indústria suíça. Segundo os dados de maio de 2019 da Fédération de l’industrie horlogère suisse, no agregado do ano, os EUA são o mercado importador mais determinante, logo após Hong Kong. Até esse mês, tinham sido exportados, para os EUA, 954,2 milhões de francos suíços em relógios, mais 7,1% do que num período idêntico em 2018, e mais 17,7% comparando com 2017. Ou seja, os Estados Unidos são um mercado estável, sempre a crescer, sobretudo depois da queda de vendas entre 2015 e 2016. Em 2018, o total de vendas suíças para o mercado dos EUA correspondeu a 2.216 milhões de francos suíços (em 2015, ano de ouro, fora de 2.359 milhões de francos). Estes números cheios de luz estão, no entanto, sujeitos a ameaças nubladas. A política agressiva de tarifas aduaneiras e as ‘guerras comerciais’ (a que, em breve, se juntará o mercado cambial, e que são centrais na política da administração Trump), a força dos Apple Watches, o crescimento de um ‘mercado secundário’ de compras e vendas devido à Internet, e também a degradada relação entre marcas suíças e retalhistas americanos são sinais inquietantes. Porém, assiste-se a um gradual ressurgimento da indústria norte-americana, como mostra o nascimento de novas e atrativas marcas e o reforço de algumas das mais históricas. Embora não se reflitam, ainda, no número de exportações suíças para um mercado maduro, essas marcas poderão vir a causar problemas a prazo.

A Hamilton lançou o modelo Ventura em 1957, fazendo história por ser o primeiro relógio a bateria elétrica. Em cima, a mais recente encarnação deste modelo, é uma homenagem fiel ao design original. © Hamilton
A Hamilton lançou o modelo Ventura em 1957, fazendo história por ser o primeiro relógio a bateria elétrica. Em cima, a mais recente encarnação deste modelo, é uma homenagem fiel ao design original. © Hamilton

Um dos grandes desafios que se pode colocar à indústria suíça é o Apple Watch. Efetivamente, nos EUA, este relógio conquistou o mercado abaixo dos 500 dólares, mas isso não afetou as vendas dos relógios mecânicos tradicionais. Pelo contrário, este setor recuperou bem e, em 2018 e 2019, voltou a ter resultados muito sólidos. Com mais de dois mil milhões de francos suíços de exportações para os EUA em 2018, as vendas dos relógios mecânicos tradicionais aproximaram-se dos grandes resultados de 2015. Ou seja, se a Apple parece estar a ganhar relativamente ao ‘volume’, as marcas suíças continuam a dominar relativamente ao ‘valor’. No meio de tudo isto, muitos se interrogam sobre o espaço que resta para as grandes marcas americanas mais ligadas à moda, como o grupo Fossil, a Timex e a Movado. O Grupo Fossil tem apostado em modelos ‘inteligentes’ nas marcas Fossil, Armani, Diesel e Michael Kors. Mas as dificuldades têm sido evidentes, como mostra a quebra do seu valor bolsista. A Apple tem corroído o seu segmento. Mas um acordo de venda de tecnologias de conexão estabelecido entre o Grupo e a Google, em janeiro, poderá, no entanto, alterar estas perceções, abrindo novas perspetivas de negócio.
Há ainda outro dado: a guerra entre os retalhistas e as marcas suíças. A luta pelo controlo da distribuição e das vendas on-line é especialmente visível nos EUA. A Richard Mille abriu uma boutique em Nova Iorque, reputada como a maior em todo o mundo. A Audemars Piguet diz querer abandonar as vendas em lojas multimarcas em pouco mais de três anos. Muitas cadeias de distribuição europeias têm também adquirido retalhistas americanos, dando ainda mais força à Europa nesta luta. Mas o mercado on-line ainda não se sedimentou. E os Estados Unidos têm sido pioneiros na criação de um mercado de vendas secundário, para o qual os principais operadores querem agora atrair as grandes marcas. Ao mesmo tempo, todos se veem obrigados a encarar o fecho de centenas de lojas de centros comerciais da Macy’s ou da Kmart, grandes operadores nesta área. Algumas cadeias entraram em processo de liquidação. Segundo o The Observer, cerca de metade dos centros comerciais existentes nos EUA poderão encerrar até 2023. Aqui, abre-se um paradoxo: diz-se que o comércio on-line está a liquidar o dos velhos postos de venda. Mas, segundo o Departamento de Comércio dos EUA, o comércio on-line representa apenas 452 mil milhões dos 5 mil milhões de dólares que os americanos gastaram nas lojas, em 2017. Segundo a Bloomberg, a verdade é mais profunda: muitas das grandes cadeias estão a ser sufocadas por uma dívida impagável. E daí estarem a desaparecer. Ou seja, há demasiadas cadeias de centros comerciais nos EUA. Não é só o comércio on-line que as está a destruir. Contudo, assiste-se a um reforço das posições das empresas europeias no mercado de venda americano. Grandes retalhistas europeus (da suíça Bucherer à alemã Wempe) têm adquirido muitas empresas americanas, na expetativa de um crescimento ainda maior de vendas.

The Runwell Automatic 45 mm, um relógio mecânico de corda automática equipado com o Calibre Sellita SW200-1. © DR
The Runwell Automatic 45 mm, um relógio mecânico de corda automática equipado com o Calibre Sellita SW200-1. © DR

Outras mutações no mercado americano têm que ver com o surgimento, nos últimos anos, de mais marcas próprias. A ‘velha’ RGM Watch Company, criada em 1992, foi o estímulo para uma vaga de ‘independentes’ no meio de uma discussão sobre a lógica do american made, já que muitos relógios eram apenas montados nos EUA. Marcas como a Vortic, Keaton Myrick, Weiss, Niall e Kobold (ou a já citada RGM) emergiram. Juntando-se às consagradas Timex, Hamilton ou Shinola, que têm uma lógica de produção diferente. Ou seja, o grande mercado americano continua a ser extremamente apetitoso para a indústria relojoeira — mesmo enviando sinais um pouco contraditórios sobre o seu futuro. Tal como Bruce Springsteen buscava a rota do sonho americano em Born to Run, a indústria relojoeira procura agora garantir a sua conquista.

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