Olá, Brexit! Até já, Hong Kong.

EdT57 — O Brexit quer tirar o Reino Unido da Europa e colocar Londres num meridiano horário e político muito diferente do de Bruxelas. As consequências deste momento de horas incertas estão a ser boas para a indústria relojoeira suíça. Londres, por razões diferentes, atrai hoje mais turistas chineses do que há um ano.

 

Crónica originalmente publicada no número 57 da Espiral do Tempo

Por um lado, o Brexit fez com que a Libra esterlina perdesse valor e tornasse muito mais atrativos os preços dos produtos que ali se compram. Por outro, os atentados de Paris fizeram com que o turismo com mais poder aquisitivo se virasse para o outro lado do canal da Mancha. O que a França perdeu, o Reino Unido ganhou. E, com isso, a indústria relojoeira, que, depois de muitos sinais de abrandamento, volta a ver o horizonte com mais luz.

Londres assiste, por estes dias, a uma das contradições típicas da globalização: se os banqueiros britânicos começam a fazer as malas para deixarem a City e para se instalarem numa das cidades que continuarão a fazer parte da União Europeia, em sentido inverso, chegam os turistas chineses. Segundo os últimos dados divulgados, o consumo dos chineses na capital inglesa subiu uns astronómicos 300% nos últimos meses. De outubro a dezembro deste ano, as reservas já feitas de viagens de avião da China para Londres crescerão 24% em comparação a igual período de 2015. O que é que isto tem a ver com a saúde da indústria relojoeira? Muito. O cliente chinês tem sido um motor muito potente do aumento do consumo da alta-relojoaria. Sobretudo fora de portas, porque os resultados do maior mercado mundial, Hong Kong (hoje região administrativa especial da China, tal como Macau), são preocupantes. As vendas de relógios em Hong Kong recuaram perto de 40% (no caso, 39,6%, a mais forte contração desde há 20 meses) em setembro. Isto segundo os dados da Federação da Indústria Relojoeira Suíça (FH). No conjunto, as exportações para todo o mundo baixaram 5,7%, relativamente ao valor de há um ano. O recuo na antiga colónia britânica é o mais significativo e permite que o mercado americano volte à liderança, o que sucede pela segunda vez este ano. Em setembro, os EUA foram o mercado líder para as exportações suíças, crescendo +4,7%, não admirando a crescente atenção que desperta em muitas marcas. O Japão surge na terceira posição, com um crescimento de 8,9%, depois de uma forte queda em agosto. Espetacular é a progressão no Reino Unido. O Brexit teve um efeito de atração. Em agosto, as exportações para esse mercado cresceram 23%, e, em setembro, a subida foi de 32,4%, para um valor de 120,6 milhões de francos.

A queda da Libra tornou muito atrativa a compra de produtos de preço apreciável nas ruas de Londres. A notícia foi, claro, muito bem recebida na Suíça, onde a valorização do Franco suíço desde há um ano causou preocupações na indústria relojoeira. E traz esperança, porque têm de ser ligadas ao aquecimento do próprio mercado chinês continental, depois das quedas severas que foram consequência da política anticorrupção do presidente Xi Jinping e ao arrefecimento das vendas em Hong Kong. O banco Credit Suisse veio confirmar estas boas notícias, após os resultados conhecidos do terceiro trimestre de 2016 para a economia suíça: existem sinais positivos para a indústria relojoeira, embora esta seja uma notícia  pior para as empresas subcontratantes do setor. Os resultados dos últimos meses mostram que ainda não há estabilização nem um claro sentido do mercado para o futuro próximo. Mas há mercados que estão novamente a mexer. Dado curioso: por preço, foi no segmento de relógios entre os 200 e os 3000 francos que se verificaram as maiores subidas nas exportações. O grande problema do setor, diz a FH, é o mercado de Hong Kong, cujo declínio continua a ser extremamente visível. As quedas de setembro são preocupantes.

Numa entrevista recente ao jornal suíço Le Temps, François-Henry Bennahmias, o líder da Audemars Piguet, dizia: «Alguns viram as suas marcas crescer muito. Alguns apostaram muito na China. Outros ainda não fizeram os esforços suficientes no mercado americano – um dos grandes erros da relojoaria em geral. Penso que a razão da crise relojoeira não é económica: as pessoas não têm menos dinheiro. (…) Tome-se como exemplo a distribuição: há demasiados pontos de venda no mundo. Se comparar a alta-relojoaria às três estrelas Michelin, o que se vê hoje é aberrante. Como se, de repente, houvesse 1000 três estrelas Michelin». E acrescentava: «A relojoaria suíça de topo de gama (mais de 7.000 francos) produziu entre 500 e 600 mil relógios no ano passado. Face a isto, temos 40 milhões de clientes potenciais a quem oferecer esses relógios. Só há uma questão: como encontrar os clientes? Porque os muito ricos não vão às boutiques». Palavras que servem para realinhar o debate, já que os dados continuam a ser preocupantes.

As exportações atingiram, no fim do primeiro semestre de 2016, o mais baixo valor desde 2011. A erosão de vendas na Ásia continua forte, e mesmo o sol que brilha no mercado britânico não compensa tudo. É um recuo iniciado há 14 meses que ainda não parou, segundo a consultora Deloitte. Trata-se de uma situação inédita desde a recessão global de 2009. De acordo com o estudo da consultora, as exportações no primeiro semestre atingiram 9,5 mil milhões de francos, comparados com os 10,2 mil milhões de francos no primeiro semestre de 2015. Ainda assim, os responsáveis da indústria contactados pela Deloitte estão otimistas. E dizem ir apostar no mercado americano, especialmente com a abertura de novas boutiques. Há também outro sinal de esperança para a indústria: a Índia, cuja estrutura fiscal vai ser simplificada em 2018, o que deverá favorecer o investimento no enorme país. Não deixa de ser interessante notar que, relativamente ao otimismo dos industriais do setor, há uma queda de expetativas sobre a venda de relógios a turistas em solo suíço. E mercados como o francês, alemão e belga (em consequência dos atentados terroristas) são vistos como mais frágeis. Mas as expetativas sobre o futuro desenvolvimento do mercado chinês mantêm-se. A classe média na China continua a alargar-se, e o número de clientes para os relógios suíços cresce em consonância, mesmo que Hong Kong já não seja a ‘loja’ perfeita. Seja como for, há quem veja nestas mutações do mercado o início de uma próxima fase de consolidação de marcas e de algumas falências de quem é mais frágil. Como aconteceu no passado. ET_simb

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