Dubai Watch Week 2021: as primeiras ilações

Concluída a quinta edição da Dubai Watch Week, há vários rescaldos para fazer e muitos relógios para mostrar — mas, sobretudo, há várias ilações a retirar de uma autêntica cimeira que reforçou o já de si estratosférico estatuto do evento relojoeiro do Médio Oriente. Aqui fica o testemunho na primeira pessoa.

O melhor… de sempre?

Desde a minha primeira visita ao evento, em 2016, achei logo que a Dubai Watch Week tinha conseguido encontrar um formato completamente distinto do que se então se via nos principais certames relojoeiros (nomeadamente Baselworld e SIHH) e que o seu potencial de crescimento era tremendo. Utilizei então uma comparação que não me canso de repetir, até porque ainda não consegui encontrar uma melhor (e talvez nem haja): referi que me senti como na Grécia Antiga, vendo François-Paul Journe e Philippe Dufour em amena cavaqueira como se fossem Sócrates e Platão a debater filosofia na Ágora. Ao passar da zona das galerias do Dubai International Financial Center para a praça do The Gate (uma Ágora!) em 2017, o evento ganhou em projeção e versatilidade — e desde então não me canso de repetir que é mesmo o melhor evento relojoeiro do mundo.

Dubai Watch Week 2021
Imagens marcantes, do exterior ao interior | © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

Mas… tenho de me corrigir, na sequência de um post feito pelo meu distinto colega James Dowling (aka @misterrolex, a grande sumidade mundial na temática Rolex) antes mesmo da edição deste ano e em que ele dizia que “a Dubai Watch Week é o melhor evento relojoeiro de sempre”. Ele anda nestas andanças da imprensa especializada há muito tempo (desde os anos 80, uma década antes de mim) e sabe do que fala; a palavra ‘sempre’ surpreendeu-me porque eu próprio nunca a tinha utilizado… mas só pude concordar — e a edição deste ano voltou a confirmar esse estatuto, que já tinha sido reforçado com a atribuição do Prémio Especial do Júri no Grand Prix d’Horlogerie de Genève. Voltou a ser possível ver grandes mestres relojoeiros a conversar com os seus pares, mas também com CEOs ou grandes colecionadores e participar nos muitos fóruns ou masterclasses incluídos numa agenda riquíssima. Jean-Frederic Dufour, tal como na edição anterior, voltou a aparecer e logo circularam imagens do CEO da Rolex a falar com o jovem mestre Rexhep Rexhepi da Akrivia ou a cumprimentar Ricardo Guadalupe da Hublot com comentários do género “a Dubai Watch Week é isto” ou “isto só se vê na Dubai Watch Week”. E é verdade.

Átrio de entrada do Dubai Watch Week 2021
Entrada do hall de exibição, com a alta-relojoaria independente em destaque | © DWW

Em qualquer outro evento, raramente os CEOs saem do seu espaço, mal têm tempo para sair de um calendário apertado de reuniões com clientes, parceiros ou imprensa. Durante a Dubai Watch Week têm disponibilidade para trocar impressões e até participar nas festas de outras marcas! Outro aspeto marcante é o nível de conhecimento, decorrente da qualidade dos convidados e participantes: não há novatos ou aprendizes, só mesmo doutores e catedráticos; qualquer conversa ao almoço com os parceiros da mesa, à beira de um stand ou nos corredores é sempre de uma enorme elevação. E a escala humana que permite essa convivência direta é fundamental para manter o sentimento de excelência, mas considero que o recorde de afluência deste ano (16.000 visitantes) coloca a Dubai Watch Week no limite e na eventualidade de perder essa dimensão ideal.

A omnipresente estrutura do The Gate e Antonio Calce com Will.I.Am | © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

A força dos independentes

O mais paradoxal relativamente à Dubai Watch Week é o facto de um evento tão cultural ser pensado e organizado por uma empresa familiar de raiz comercial — a Seddiqi & Sons, a maior companhia de distribuição do médio oriente e responsável pela grande maioria das boutiques de marcas no gigantesco Dubai Mall. Mas, antes de serem ‘vendedores’, os elementos da família Seddiqi são sobretudo enormes aficionados da relojoaria e apreciadores/apoiantes das marcas independentes de média e alta relojoaria — e os chamados independentes estão decididamente em alta desde há já uns anos, como se tem constatado nos galardões do Grand Prix d’Horlogerie de Genève, nos leilões e sobretudo nas duas mais recentes edições do Only Watch.

Apresentações do Dubai Watch Week 2021
A sessão inaugural do Horology Forum abordou a ‘lei do mais forte’ na relojoaria | © DWW

Essa paixão dos Seddiqi pela relojoaria independente, bem patente na pessoa de Hind Seddiqi, diretora do evento, e do seu primo Mohammed Seddiqi, tem sido a catalisadora do certame e vai seguramente trazer-lhes benefícios futuros numa fase em que os grupos de luxo estão a assumir a própria distribuição em todos os quadrantes geográficos, cortando com os distribuidores tradicionais. Do grupo Richemont, apenas uma marca — a Montblanc — esteve presente, exibindo na área comum de exposição; do grupo LVMH só faltou a Zenith, mas estiveram presentes a TAG Heuer, a Hublot e a Bulgari. Entre as quase 60 marcas oficialmente participantes no evento (porque houve muita gente de muitas marcas grandes e pequenas a cirandar por lá), a Rolex, a Audemars Piguet, a Tudor, a Hublot e a Chopard tiveram espaços próprios. Mas os grandes colecionadores e conhecedores estavam era sobretudo nos stands da F.P. Journe, da De Bethune, da MB&F, da Urwerk, da Akrivia, da Czapek, da Konstantin Chaykin…

Hind Seddiqi, diretora do evento Dubai Watch Week 2021
Hind Seddiqi, diretora do evento, e Mohammed Seddiqi nas boas vindas à imprensa especializada | © DWW

Micromarcas a crescer

Outro fenómeno que a Dubai Watch Week reforçou foi o da eclosão das chamadas micromarcas, outro fenómeno que já se vem sentindo há algum tempo. Passou a haver determinadas marcas com preços à volta dos 300, 400 ou 500 euros que são olhadas com respeito e que convivem muito bem com manufaturas de elite cujo primeiro preço ultrapassa a centena de milhar de euros. E isso foi constatável no pulso de grandes colecionadores e de jornalistas especializados presentes no evento — conhecedores que não têm qualquer problema em usar um exemplar da Baltic ou da Furlan Marri (que até ganhou o Prémio Revelação no Grand Prix d’Horlogerie de Genève), sem esquecer marcas como a Studio Underd0g ou mesmo a Isotope do português José Mendes Miranda.

Apresentações do Dubai Watch Week 2021
Andrea Furlan e Hamad Al Marri, a joint venture helvético-árabe que originou a Furlan Marri | © DWW

As micromarcas que apresentam qualidade, originalidade e bom gosto são encaradas como um exercício iniciático que atrai novos aficionados que ainda não estão dispostos a pagar muito por um bom relógio ou mesmo uma porta para a grande relojoaria; por outro lado, há muitos insiders a comprar exemplares dessas marcas simplesmente porque são cool e baratos. Essa fórmula mista tem sido uma combinação de sucesso que está a fazer com que as micromarcas ganhem pedigree e se tornem mais relevantes enquanto rampa de lançamento para outros preços. E as edições especiais da Baltic ou da Furlan Marri para o médio oriente são excelentes.

Da escrita à sétima arte

Em breve, a alta relojoaria e a arte relojoeira vão chegar a um público mais vasto através de dois canais diferentes — graças a um filme/documentário que está já feito e que teve um screening de 25 minutos durante a Dubai Watch Week, e a um livro que relata a sobrevivência de relojoeiros nos campos de concentração nazis. O livro baseia-se em dezenas de horas de entrevistas históricas e contou com o apoio do meu amigo e historiador Michael Clerizo, que à mesa do pequeno almoço me contou que os nazis deixavam viver os relojoeiros judeus porque… eles eram necessários para ajustar e reparar relógios. O filme também conta com a participação crucial de um amigo de longa data, Ian Skellern (co-fundador do site Quill & Pad), que teve a ideia inicial e a viu materializar-se numa produção de alto gabarito com um budget de vários milhões de euros.

Os produtores do documentário ‘Making Time’, com Ian Skellern e Hind Seddiqi em destaque | © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

O documentário ‘Making Time’ aborda várias personalidades — Philippe Dufour, Max Busser, Aldis Hodge, Ludovic Ballouard — e confesso ter ficado extremamente emocionado aquando da previsão do testemunho de três delas. Especialmente no de Aldis Hodge, o ator afroamericano que é também relojoeiro e designer de relógios: quando se vê o miúdo que o representa enquanto criança numa cama a desenhar relógios com a voz da mãe a recordar esses tempos em que ele já exprimia a sua vocação tive um sério baque; mas também senti muito passagens dos testemunhos do mestre Ludovic Ballouard, que incluiram imagens do seu pedido de casamento à primeira mulher que depois seria vítima de cancro, e de Max Busser, que confessou que os seus pais nunca reconheciam valor em qualquer coisa que fizesse.

Dubai Watch Week 2021
Miki Eleta e os seus extraordinários relógios de mesa | © DWW

Tanto Max como Ludovic, que estiveram na Dubai Watch Week, me revelaram depois terem ‘quebrado’ emocionalmente durante as filmagens. Aldis, através de mensagem (desta vez não veio por estar em filmagens, mas participou num debate via zoom), também me confessou ter sido uma experiência muito marcante. Mas talvez a frase mais sintomática seja mesmo a que Ian Skellern me disse: “Miguel, ainda não viste nada. Vais-te passar quando vires o filme todo”. Tenho a certeza de que sim, e como eu todos aqueles que irão ver o documentário — sejam eles conhecedores ou gente que não percebe nada de relojoaria. ‘Making Time’ vai colocar a relojoaria mecânica nos píncaros, elevando ainda mais o excelente momento que está a atravessar.

Apresentações do Dubai Watch Week 2021
Sessão do Horology Forum com Nick Foulkes no papel de moderador | © DWW

Colaborações e cápsulas

Sempre houve edições limitadas — mas o conceito cresceu a partir da década de 90 e atualmente está no auge. Há edições limitadas por todo o lado e há marcas que até assentam a sua produção maioritariamente em edições limitadas, sendo que talvez o melhor exemplo disso mesmo seja a Hublot — que, na Dubai Watch Week, desvelou talvez uma das suas melhores tiragens exclusivas de sempre: um relógio dedicado ao Dubai em que a caixa apresenta um acabamento que dá a ideia do cimento (das construções mirabolantes e dos arranha-céus) e o mostrador contempla areia (do deserto) ensanduichada entre duas placas de vidro de safira. Sempre se estrearam edições limitadas na Dubai Watch Week, mas o 50º aniversário do Dubai foi, naturalmente, motivo para que as marcas aderentes reforçassem a tendência.

MB&F X Bulgari Legacy Machine Flying T 'Allegra no Dubai Watch Week 2021
MB&F X Bulgari Legacy Machine Flying T ‘Allegra’ e o stand da Rolex | © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

O conceito das colaborações também está em alta. Preconizado por Maximilian Büsser com a linha Opus na Harry Winston e depois aplicado na sua marca MB&F (Max Büsser & Friends, o nome diz tudo), esse conceito cooperativo tem ganho cada vez maior relevância e voltou a estar bem patente na Dubai Watch Week, com — e tinha de começar por ele… — Max Büsser a apresentar o seu novo LM FlyingT Allegra sempre ao lado de Fabrizio Buonamassa, o designer da Bulgari que contribuiu para a nova versão (limitada a 40 exemplares divididos por duas variantes) ultrajoalheira do LM FlyingT que Max dedicou à sua mulher e filhas.

Le Régulateur Louis Erard x seconde/seconde/
Le Régulateur Louis Erard x seconde/seconde/ | © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

Quem também tem cavalgado de maneira excelente a onda das colaborações é a Louis Erard, sob a batuta do astuto Manuel Emch. A mais recente prende-se com uma versão do seu modelo Regulador interpretada pelo designer parisiense que está por trás da marca ‘modificadora’ seconde/seconde/, passando o nome Erard para Error numa inspiração muito computadorizada. A Louis Erard já fez anteriormente uma colaboração com o mestre Vianney Halter e duas muito celebradas com Alain Silberstein, o designer relojoeiro que era uma vedeta na década de 90 e que viu a sua marca original falir… quatro vezes; Alain Silberstein esteve na Dubai Watch Week e recordámos ambos uma edição especial de dez exemplares com mostrador azulejo que fez para Portugal no final dos anos 90: é tão rara e desejada que não há sequer imagens no Google nem aparece qualquer exemplar em leilões! Os modelos da mais recente colaboração de Alain Silberstein com a Louis Erard são tão cobiçados que já surgem em leilões ou vendidos no mercado secundário por um preço bem acima da etiqueta de venda!

Dubai Watch Week 2021
Numa das muitas masterclasses | © DWW

O futuro das feiras

Com a pandemia a regressar de maneira ameaçadora, volta-se a debater o futuro das feiras presenciais. E, nesse contexto, o valor da Dubai Watch Week sobressai cada vez mais, destacando-se como um evento diferenciado de grande relevância na exaltação dos valores relojoeiros. Essa diferença relativamente aos outros certames sempre foi notória e palpável: Baselworld e o Salon International de la Haute Horlogerie (SIHH) eram claramente as maiores feiras devido à sua representatividade e afluência, mas assentes sobretudo na força das marcas presentes e no seu sentido comercial; entretanto, Baselworld morreu e o Watches & Wonders evoluiu para um novo conceito que ainda não foi devidamente testado porque a edição de estreia teve de ser digital devido à pandemia. O SalonQP promovia várias palestras e tinha um belo enquadramento londrino na Saatchi Gallery, mas não sobreviveu — tal como o Salon Belles Montres, em Paris, não sobreviveu à crise, à falta de um local adequado e à indefinição do seu conceito enquanto exibição. Restam o Salon Internacional de Alta Relojeria (SIAR), no México, e o WatchTime, em Nova Iorque. É pouco…

Kevin O’Leary (o Mr. Wonderful de Shark Tank) no Dubai Watch Week
Kevin ‘Mr. Wonderful’ O’Leary mostra-nos o seu F.P. Journe Chronomètre à Résonance… com correia vermelha, claro! | © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

De qualquer forma, a Dubai Watch Week ganha a todos os salões congéneres em peso cultural e acessibilidade. A sua grande força não reside na exibição das marcas e dos seus produtos, mas na agenda cultural e no peso institucional decorrente da presença de tantos protagonistas. Nos cinco dias do evento houve uma dezena de debates que foram desde o colecionismo às criptomoedas e NFTs, com individualidades do calibre de Kevin O’Leary (o Mr. Wonderful de Shark Tank) e Will.I.Am (o génio criativo por parte dos Black Eyed Peas e muitos outros projetos). Paralelamente, houve classes relojoeiras ministradas por mestres e por manufaturas; várias marcas presentes tiveram os seus responsáveis a fazerem a apresentação dos valores por trás de cada uma e a desvelarem alguns modelos novos ou modelos dedicados ao universo árabe.

Antonio Calce, CEO da Greubel Forsey e Will.I.Am na Dubai Watch Week
Antonio Calce, CEO da Greubel Forsey e Will.I.Am | © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

Como sempre tem sucedido, houve uma exaltação dos valores da relojoaria. E só através da comunicação mais adequada e do esclarecimento mais correto é que as novas gerações poderão ser evangelizadas e aderir à paixão relojoeira. Nesse sentido, o papel dos comunicadores é fundamental: é com uma boa transmissão da fé e da crença relojoeira se conquistam novos públicos. Nos restantes eventos relojoeiros discute-se sobretudo o produto, as novidades; na Dubai Watch Week voltaram a discutir-se ideias e soluções, mas também ética e tradição. No Dubai, esse oásis no deserto onde os arranha-céus crescem como cogumelos e o dinheiro fala mais alto em cada esquina, há mesmo um evento relojoeiro que faz parecer os outros meras feiras comerciais. E por isso é o melhor. De sempre.

Apresentações do Dubai Watch Week 2021
| © DWW

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