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Gatilhos de memória

Texto: Sandra Gonçalves

Memórias latentes, emoções disruptivas, um desagrado de rompante que se vai transfigurando, lentamente, num sentimento festivo de descoberta. Um perfume não tem de ser bonito. Importa, sim, que seja libertador, provocante e inesquecível. Esta é a assinatura do perfumista Miguel Matos, que conquistou, em 2019, o Art and Olfaction Award em Los Angeles, na categoria independente, com o perfume Young Hearts, que compôs para a marca italiana Bruno Acampora Profumi. É a primeira vez que um perfumista português ganha um prémio internacional de perfumaria artística.

No seu pequeno atelier, no segundo andar de um centro comercial praticamente desativado, recebeu-nos com todo o vagar do mundo, até porque, para este artista, o tempo é apenas uma pedra angular para que tudo o resto faça sentido. Saímos de lá com um presente: o conhecimento de um universo carregado de essências ambíguas. Estranhamente apaziguador.

Oficialmente, tornou-se perfumista em 2019. E antes disso?

O primeiro perfume com a minha assinatura saiu no mercado em dezembro de 2018. Mas, sim, considero que 2019 foi o primeiro ano. Comecei como jornalista, há 25 anos, sempre na área da cultura e da moda, e, a par disso, fazia curadoria de exposições; há 18 anos, fundei a revista Umbigo, juntamente com a Elsa Garcia. Simultaneamente, estava a trabalhar na Vogue, fiz parte da equipa fundadora. A escrita foi sempre o meu trabalho. Há oito anos, comecei a trabalhar num site americano, a Fragrantica, e fui convidado para ser o editor da edição portuguesa. A paixão pelo perfumismo, embora, à época, latente no ponto de vista de consumidor, transformou-se em profissão. Comecei a viajar muito, a conhecer os perfumistas e as marcas, mais de nicho do que comerciais.

Mas sem formação académica…

Com trabalho diário. Em oito anos, aprende-se muito sobre este mundo. No entanto, havia sempre algo que me faltava, que eu precisava de adquirir para transmitir emoção e mensagem, e que não sabia fazer. Comecei como autodidata, com resultados catastróficos, e muitas desistências pelo caminho. Até que, numa das minhas muitas tentativas, cheguei a qualquer coisa que me parecia entrar no âmbito do que queria fazer neste universo: explorar a perfumaria clássica francesa, vintage, do princípio do século até aos anos 80. Essa é a minha linha, os temas clássicos, que entraram em desuso, embora ainda subsistam em alguns espécimes raros. A perfumaria de nicho é uma área onde é possível resgatar temas menos comerciais, investir em ingredientes mais raros e, por conseguinte, mais caros. E onde também há margem para ousadia e maior criatividade. Quando alcancei uma ou duas composições que me agradavam, embora longe de estarem finalizadas, mostrei a perfumistas amigos, amizades que foram sendo construídas ao longo dos anos, e um deles, o mestre Christian Carbonnel, que tem um laboratório de família em Barcelona, percebeu que eu
tinha grande potencial e disponibilizou-me matérias-primas da mais alta qualidade. É que, até ali, estava a trabalhar com ingredientes de muito baixa qualidade, compradas sabe-se lá onde. E quando as matérias-primas são más, muito dificilmente o produto final será bom, por mais genial que se seja. Assim que comecei a trabalhar com a família Carbonnel, o trabalho evoluiu muito rapidamente. Pouco depois, convidou-me para ser o perfumista externo da casa. Nunca pensei que começaria a lançar tão rapidamente perfumes. O primeiro foi o Jungle Jezebel, pela marca inglesa Sarah Baker. Depois, foi o Rules of Attraction, e, este ano, saiu, pela mesma casa, o Far from the Madding Crowd.

É o Miguel que dá o nome aos perfumes?

No caso da Sarah Baker, não. Foi ela que deu o nome aos perfumes. Mas depende das marcas. Em 2019, recebi muitas encomendas, e saíram para o mercado vários perfumes meus com a chancela da marca turca Nishane, e também pela alemã Der Duft. Também trabalho para a marca romena Calaj, e tenho tido um enorme sucesso com eles, muito devido ao perfume Transilvânia. Depois, há a casa italiana Bruno Acampora Profumi, fundada nos anos 70, com uma coleção clássica, que considero ter dos melhores perfumes que já cheirei na minha vida. Sempre fui apaixonadíssimo pelos seus perfumes. É um negócio familiar de Nápoles, e todos os anos estamos juntos nas feiras de Milão e Florença, as principais feiras do mundo de perfumaria de nicho. No ano passado, convidaram pela primeira vez alguém fora da família para trabalhar com eles. Foi um sonho. Atualmente, sou o diretor criativo da marca e já lancei duas coleções: a Acampora 54 e a Tadema Collection. Estes perfumes tiveram grande sucesso, e a marca candidatou-se ao prémio Art and Olfaction Award 2020 (Los Angeles), na categoria independente, e, inesperadamente, fui nomeado com o Young Hearts, que ganhou. Trouxe-me uma felicidade imensa. Agora, estou a preparar-me para lançar um novo perfume.

E quais as repercussões de ganhar um prémio destes?

Primeiro, traz validação. Existe a perceção de que os perfumistas são uma espécie de mágicos, que fazem coisas inatingíveis, e não são. Depois, é comum pensar que para se ser perfumista, é necessário estudar sete anos no Grasse Institute of Perfumery (França). Em Portugal, existe a ideia de que um português não pode ser um grande perfumista, muito menos sendo um autodidata como eu. Fui a Grasse várias vezes, fiz workshops, mas não tenho formação académica.

Não se sentia reconhecido em Portugal…

Não acreditavam em mim, faziam pouco das minhas conquistas internacionais. Até porque há muito pouco conhecimento sobre marcas de nicho, e, portanto, nunca me deram grande valor. A perfumaria é como o mundo da moda: existe o pronto-a-vestir e a alta costura. Aqui, domina o prêt-à-porter. E as poucas boutiques de nicho que existem são casas pequenas, com produtos caros e distribuição reduzida. E, por isso, poucas pessoas conhecem ou têm acesso a estes perfumes. Por isso mesmo, o meu trabalho nunca teve muita difusão, porque trabalho para casas muito exclusivas. Com este prémio, ganhei notoriedade. No estrangeiro, já era bastante reconhecido, até mais do que acho que merecia. Embora não pareça, sou muito modesto. Já em Portugal, nunca ninguém quis saber muito do que eu fazia. Só agora, com a validação externa, com o prémio, é que as pessoas abriram os olhos. O perfume trouxe-me validação. Nem sequer tenho um perfume editado por uma marca portuguesa, e nenhum dos que assinei através de casas estrangeiras está representado cá. Isso é uma coisa que gostava muito, gostava de ter o meu trabalho disponível para um público perto de mim. Ainda não aconteceu, embora já possam ter acesso à minha marca no site miguelmatosperfumes.shopk.it/. Este prémio veio assegurar que o que faço tem qualidade. Se passei pelo crivo de um júri altamente qualificado e exigente, e sei que muitos nem sequer gostam de mim, agora tenho a certeza de que estou no caminho certo.

Tem uma linha feminina e masculina?

Não. Tudo o que faço é unissexo; não penso em géneros quando estou a criar. Não consigo. Porque também eu, enquanto consumidor, não faço distinção. Embora haja alguns que não consigo usar. Também gosto de fazer esse exercício, inventar perfumes contrários ao meu gosto pessoal, desde que sejam harmónicos, fortes, expressivos, emotivos. Acho isso muito interessante, obriga-me a sair do meu mundo e perceber outros.

Consegue esse afastamento? Perceber que não usaria um perfume, mas que há mercado para ele?

Sim. Isso vem do meu background como crítico de perfumes; já são muitos anos a avaliá-los. O que me diferencia dos outros perfumistas são oito anos de escrita diária sobre perfumes e sobre a história da perfumaria — dou muita importância ao passado, e isso deu-me um conhecimento que se reflete na minha produção artística, a que eu chamo de arte olfativa, e também o facto de estar muito distante das regras. Sei disso porque tenho vários amigos com formação académica na área e consigo fugir das regras e transgredi-las muito mais facilmente, porque não as conheço, ou não me sinto obrigado a seguir a norma. Não receio experimentar combinações que um académico se recusaria a fazer.

Recorda-se de alguma dessas combinações pouco convencionais?

Sim. Tenho fórmulas completamente estranhas. É o caso da fórmula do perfume Jungle Jezebel, um exemplo notório de como gosto de brincar com a alta e baixa cultura, bom e mau gosto. O Jungle Jezebel é uma homenagem à drag queen Divine, ícone do cinema underground norte-americano, que de bom gosto não tinha nada. No entanto, era uma artista magnífica e celebrada mundialmente. Imaginei um perfume que fosse o mais vulgar possível, de prostituta, de baixo nível, mas com ingredientes de alta qualidade, e depois com uma estrutura que remete para a perfumaria clássica francesa. Para isso, juntei banana, mais concretamente pastilha elástica de banana, imaginei uma personagem com padrões zebra e leopardo, com dourados Versace, com uma peruca loura, e batom rosa-choque a mastigar pastilha elástica. E ao mesmo tempo, divertida.

Como é que criou esse acorde de pastilha elástica com banana?

Não faço ideia. Melhor: na altura, não fazia ideia. Hoje em dia sei, mas foi dos meus primeiros perfumes, e, por casualidade, criei uma união de três ingredientes que se traduziu neste cheiro caraterístico, sem saber se iria resultar. Ou seja, foi um acaso, como muitas vezes acontece no meu processo de criação. O perfume, depois, vai mudando com a sua evolução. O cheiro a pastilha elástica é o primeiro impacto. De seguida, passa a floral, e, por fim, transforma-se em algo muito sujo e animal. É o perfume mais desafiante que criei, o mais difícil de todos.

[Miguel dá-me o perfume a cheirar] ...tem notas de ferrugem, será?

Tudo é possível. Tudo o que se sentir é válido. Mas o cheiro a ferrugem encontra-se mais no Transilvânia (Calaj), a par do cheiro a sangue. É um perfume artístico, mais à volta do conceito. Contém cereja preta, muito doce, muito forte, e notas de uma rosa metálica — que confere o odor a sangue, e também madeiras e cheiros animais à mistura. Muito na onda do Jungle Jezebel.

Tem uma assinatura vincadamente própria?

Descobri com a experiência que a minha assinatura passa pelas frutas, flores e notas animais, apesar de trabalhar várias combinações. Mas, sim, sinteticamente, é isto que define o meu estilo. Trato as frutas de uma forma muito diferente.

Notas animais?

Bastantes. Gosto de trabalhar com a civeta, com o castóreo (secreção oleosa anal do castor), o almíscar… mas utilizo sintéticos, que imitam muito bem o cheiro natural. Tudo o que uso é ‘cruelty-free’. Chamamos-lhes animálicos, mas não provêm necessária e diretamente do animal. Não uso inclusivamente o âmbar gris (vómito de baleia) na sua forma natural, até porque é excessivamente caro. Mas utilizo cera de abelhas. Tudo o resto é sintético.

E matérias vegetais?

Sim, claro. E muitas delas têm também um cheiro animal. Da minha marca, o Sailor Stories passa por uma mistura inusitada de ingredientes. É muito cítrico e marinho — o que se obtém através de algas. Aliás, sustenta-se numa combinação que, em abstrato não faz muito sentido: contém matérias aromáticas, como as quinolinas, que se traduzem no cheiro a couro e no aroma a mar. Juntar couro e mar, teoricamente, não faz muito sentido. Contudo, esta é a estrutura de base do perfume, algo que academicamente não se faria. Gosto de combinar coisas que não deviam estar juntas, como a terra e o mar. Depois, há perfumes que faço e que são puramente conceptuais, que não pretendo sequer que sejam ‘bonitos’, como o meu La Piscine, que remete que para um cheiro que adoro, a cloro de piscina — queria tê-lo na minha pele mesmo não indo à piscina. O La Piscine é uma combinação do cheiro do cloro de piscina com terra molhada. Para mim, é uma fotografia de um dia de verão, numa piscina rodeada de relva, depois de um dia inteiro a banhos, com a pele a cheirar a cloro, a protetor solar, com a relva a ser regada, um jardim… há tudo isso. Foi isso que quis criar. Curiosamente, quando o lancei, não esperava que vendesse. Mas está a ser um sucesso; as pessoas identificam-se com ele.

Cria, então, histórias com os perfumes?

É esse o objetivo. Nem sempre, mas quase sempre.

[Miguel, entretanto, afasta uma cortina preta e entra no laboratório.]
É aí que a magia acontece?

A perfumaria é, tecnicamente, uma arte muito rudimentar. Até porque não faço as extrações, trabalho com os extratos já recolhidos. O que crio no meu atelier são protótipos de fórmulas, que depois envio para um laboratório em Barcelona, para que possam ser repetidos e reproduzidos industrialmente. De seguida, reencaminham-me o produto deles para que eu o ateste e veja se está conforme o meu desejo. Caso aprove, está pronto para ser produzido em larga escala. Portanto, tudo
o que é mais técnico, que envolva maquinaria e tecnologia, peço ao laboratório de Barcelona para fazer.

Cheiros de vida, da infância?

O La Piscine é um desses; é extremamente elaborado. Mas tenho um ingrediente que combina terra molhada com beterraba, e que provém de uma substância química, a geosmina, que é libertada por bactérias e detetada quando chove. Dei muitos workshops, a que chamei «Vintage PerfumeSniffing», em que juntava uma coleção muito grande de perfumes vintage e contava histórias do mundo e da cultura à volta de um perfume. E com os meus também já posso contar algumas coisas.Assinei um perfume inspirado no Milagre das Rosas, da Rainha Santa Isabel, que cheira a rosas e a pão, mas também a leite, sândalo, incenso, canela. Para mim, é o cheiro da bondade e da santidade.Tudo começou porque andava obcecado pela Rainha Santa Isabel; ao longo da vida dela, há pelo menos três ou quatro episódios que falam de cheiros, e um deles, o mais marcante para mim, foi a transformação do pão em rosas. Achava que isso podia dar um perfume. Até que um dia, estava na Madeira — vou à Madeira várias vezes ao ano, fico triste quando não estou lá, não sei bem explicar—, no Museu de Arte Sacra do Funchal, e vejo uma escultura da Rainha Santa Isabel. E, de imediato, a fórmula surgiu-me à frente dos olhos. Voltei ao continente, corri para o atelier, e, à primeira tentativa, consegui o que pretendia, o que é praticamente impossível. Estou tão contente com o resultado que, em 2021, provavelmente em julho, vou ter uma exposição no Museu de ArteSacra do Funchal com o perfume Miracle of Roses, em colaboração com um pintor e uma joalheira.Vão trasladar a escultura para uma capela restaurada, e ali estará uma exposição dedicada ao Milagre das Rosas, com curadoria e uma peça artística minha.

Já que falou de exposições, é possível encomendar-lhe uma instalação olfativa?

É algo que já faço e pretendo continuar a fazer. Em 2017 — recordo-me porque tinha 40 anos e apanhei papeira —, fui comissário da exposição Pôr o Corpo a Pensar, na Casa da Cerca — Centro de Arte Contemporânea, em Almada. Desafiei sete artistas olfativos da perfumaria de autor a criarem cheiros inspirados no livro homónimo da filósofa Maria João Ceitil. Instalação artística essa que depois esteve no Institute for Art and Olfaction, em Los Angeles, com mais três perfumistas. Estas intervenções com criação olfativa já existem lá fora há muito tempo. Infelizmente, em Portugal é que é quase zero. No entanto, este ano fui convidado pelo João Pedro Vale & Nuno Alexandre Ferreira para criar uma instalação olfativa nos Açores, no âmbito do Festival Walk&Talk. Encomendaram-me um cheiro a ‘fim de festa’, que foi instalado numa rua de Ponta Delgada, em que quisemos evocar o odor do xixi, o vinho, cerveja, vómito, tabaco… tudo. O cheiro que fica depois de uma festa bem gozada. Tenho feito também várias colaborações com a atriz Mónica Calle, tendo a última sido em Rosa Crucificação, patente no clube Mise em Scène e no Teatro São Luiz, em Lisboa, em que para ambas as apresentações criei três fragâncias para ela usar, bem como o público, durante a peça. Já em 2018, tinha colaborado com a Mónica Calle em Ensaio para uma Cartografia. Vinte atrizes subiram ao palco do Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa). Era uma peça muito violenta, de teatro físico e dança, e, depois de uma hora de um trabalho físico muito extenuante, estavam todas transpiradas. Consegui extrair o cheiro do corpo delas e tenho-os aqui num frasquinho. Portanto, tem havido esta interação.

Pegando nessa última performance, deduz-se então que cada pessoa tem um cheiro…

Sim! Embora não necessariamente percetível. Depende dos banhos que se tome. [risos]

Tem nariz para cheirar as pessoas?

Já me aconteceu alguém passar na rua e achar muito interessante, e até pode ser um cheiro mau, mas, quando ultrapassa esse estágio, pode suscitar-me curiosidade. Não tem de ser necessariamente bom. Já me aconteceu sentir um cheiro a transpiração muito mau, mas comecei a tentar decompô-lo no cérebro, as suas notas, e pensar: «Isto até pode ser mau, mas já é um perfume!»

Numa perspetiva mais técnica, os perfumes têm uma estrutura de pirâmide?

Têm, e são várias as vezes em que tento fugir à regra. Mas a minha forma de compor é essa, apesar de existirem outras estruturas. Mas sigo essa, embora não canonicamente.

E porque é que à intermédia se chama «de coração»?

As notas de coração são a assinatura de um perfumista. Melhor: a mensagem do perfume está nas notas de coração. As de topo servem para dar projeção e frescura à fragância, e as de base conferem-lhe durabilidade. Na verdade, todas elas juntas são uma assinatura. Não sei até que pontoo que estou a dizer é certo. De um ponto de vista ainda mais técnico, distingo as diferentes fases pela velocidade de evaporação das moléculas. Há algumas que se volatilizam em menos de cinco minutos; essas são as notas de topo. Depois, há uma duração média, as de coração, e aquelas que podem perdurar muitas horas, que são as notas de fundo. No conjunto, tudo isto carateriza a temporalidade do perfume, tal sucede como a música ou os filmes; é uma arte que se desenvolve no tempo. Tem andamentos, compassos, acordes. A linguagem é exatamente como a música, com diferentes momentos ao longo da sua evolução. Isso tem que ver com o comportamento de cada molécula. Por exemplo, um perfume cítrico, com notas de lima e bergamota, muito naturalmente perderá essas caraterísticas após quatro horas. Passará a emanar outra coisa distinta. Mas, sim, pode-se dizer que as «de coração» são a mensagem do perfume, sem os adornos.

Parece uma composição musical. Imagina bandas sonoras quando está a criar?

Há músicas que me fazem fazer perfumes, mas, quando estou a compor, não tenho absolutamente nada na cabeça. Nem sequer sei quanto tempo permaneci sentado a criar. Durante a quarentena, tive a perfeita noção disso. Levei todos os ingredientes para casa, porque o atelier teve de ser fechado, e apercebi-me de que consegui ficar sentado o dia inteiro na cozinha sem falar com ninguém. [risos] Quando me sento com os ingredientes à frente, preciso de um despertador, perco a noção do tempo.E, muitas vezes, nem sequer sei o que estou a fazer. Vou por uma associação de ideias, ou, frequentemente, são os ingredientes que falam comigo. Vou apontando os passos, tenho de ser muito metódico nisso, mas o processo é muito irracional. Chega até ser recorrente abandonar um perfume para voltar a ele mais tarde, dando-lhe tempo para criar as suas reações; um processo que pode levar desde horas, a semanas, dependendo dos ingredientes. Requer paciência e avaliação permanentes.

Um perfume tem anatomia?[pausa]

Um perfume até pode ter um corpo. E há perfumes sem nenhum corpo. E ambos estão certos. Mas se um perfume tem anatomia… podia imediatamente dizer que sim, mas é difícil de explicar, porque um perfume tem partes como um corpo, um esqueleto… a carne, os ossos, o cabelo;
há uma estrutura e há adornos. E, na presença de um perfume, avalia-se toda essa estrutura. Depois, há um comportamento, que corresponde à forma como esse corpo se mexe, flui, evolui no tempo e também à mensagem que exprime através desses movimentos. É poético. Utilizo muitas formas de arte para explicar a perfumaria, até porque acho que é mais uma forma de expressão como as outras.

E como é que ‘limpa’ o nariz de tantos odores diferentes?[risos]

À janela. Não há nada melhor do que ar puro. Sim, fala-se do café; é verdade. Mas eu não uso café. Para mim, não há nada melhor do que sair do laboratório, andar, dar uma volta, respirar, ir para junto do rio (Tejo), e voltar para o atelier.

Idealmente, quais as partes privilegiadas do corpo para colocar perfume?

Eu aconselho [risos] que se coloque perfume em todo o lado, exceto nas mucosas, nos olhos e na boca. Mas os melhores pontos… bem, eu não sei. Tradicionalmente, diz-se que é nas zonas mais quentes do corpo: pulsos, interior dos cotovelos, joelhos, decote, atrás das orelhas… para dar mais projeção. Uma coisa é certa: os perfumes à base de álcool nunca devem ser esfregados. Nunca! Dou como exemplo um LP a tocar no gira-discos a 33 rotações. Ao esfregar os pulsos, estamos a tocá-lo a 45 rotações; estamos a acelerar o perfume, a criar calor e a aumentar a velocidade de evaporação, e um perfume é criado a pensar numa determinada evolução. No momento em que aquecemos o perfume, as notas mais voláteis evaporam e perdeu-se o primeiro minuto da música. E as moléculas mais voláteis estão lá para ajudar a subir as mais pesadas. Portanto, ao esfregar, está-se a destruir a estrutura.

Consegue atribuir sentimentos aos perfumes?

Um perfume sem sentimento não tem vida, mesmo que não o consigamos identificar. Quando crio um perfume, do ponto de vista artístico, estou a tentar meter num frasco uma emoção. Às vezes, consigo; outras vezes, não. Muitas vezes, confesso, fico-me só pela beleza.

E há algum ingrediente com que se identifique intrinsecamente?

Ingredientes que, por si só, me dizem algo de muito pessoal, definitivamente, sim. Um deles, isolado, é horroroso. Até o tenho tatuado. É este que faz falta na perfumaria contemporânea: aciveta. É acre e oleosa, conhecida como almíscar. Tem um cheiro poderoso, fecal, animal, com fundo de amónia. No topo dos meus ingredientes preferidos, está o musgo de carvalho. Também gosto muito do cheiro a banana, coloco banana em quase tudo. Dependendo da dose, até pode passar despercebido, mas é de uma utilidade extrema. E verniz das unhas, adoro o cheiro. O mesmo se passa com o couro, é parte essencial de mim. Há um outro que é maravilhoso, o gálbano, uma resina de goma aromática, um cheiro verde. Há tanta coisa… os narcisos, as tuberosas, a flor de laranjeira, o frangipâni — uma das coisas mais extraordinárias que a natureza criou.

Se tivesse de atribuir uma essência ao tempo…[risos]

O tempo não é um ingrediente com expressividade. É uma matéria-prima que se usa num perfume para fazer com que o todo faça sentido. O tempo corresponde a um conjunto de ingredientes que, por si só, não têm um valor estético, mas são como pedras angulares para que tudo
faça sentido. Não tem complexidade, mas é o que faz as matérias-primas fluírem. Muito como o musk (almíscar), uma coisa que passa, que sozinho não tem significado. Apenas serve como base para o que lá pomos. É como ver as horas passar; o significado prende-se com o que fazemos nessas horas.

O tempo a passar não lhe causa ansiedade, já se percebeu…

Nenhuma. Se estiver a contemplar uma paisagem que amo, se estiver no Funchal, a observar o ilhéu do Gorgulho, consigo estar um dia inteiro a olhar para aquele rochedo sem sequer me aperceber. Nem sequer me sinto escravo das horas. Toda a minha vida trabalhei de acordo com o meu ritmo, dentro do possível, nunca tive um horário… melhor, existe o tempo em que as coisas têm de ser feitas, mas sou eu que faço a gestão. Como o tempo é utilizado, depende da minha inspiração.

O seu primeiro perfume, lembra-se de qual foi?[risos]

De supermercado. Venho de uma família muito humilde e, à época, não tínhamos dinheiro para comprar perfumes bons. O Old Spice, o Brut, Agua Brava… Lembrei-me: o meu primeiro perfume deve ter sido o Denim Original. Não que eu gostasse, mas era o que a minha família me oferecia no Natal. E iam-se acumulando num armário. Ah, e claro, o Vert Sauvage. Mas do primeiro, desses que me davam, não guardo grandes memórias. Lembro-me do Kenzo pour Homme, do Tuscany, da Aramis, e do Bleu Marine, da Pierre Cardin. Esses foram os primeiros perfumes decentes que tive. Não sei qual foi o primeiro, mas sei que, a dada altura, tinha esses três. Aos 18 anos, quando fui para a faculdade, usava coisas que ninguém com menos de 50 anos usaria, como o Obsession, da Calvin Klein, o Habit Rouge, da Guerlain… só gostava de perfumes extremamente pesados. Tanto que o Habit Rouge cheira-me a comboio da CP, de inverno, às oito horas da manhã, e a vida miserável de acordar às cinco da manhã para ir para as aulas. Mas continuo a achá-lo magnífico. É muito específico. Como o Lou Lou, da Cacharel, que me evoca a discoteca Alcântara-Mar com a minha melhor amiga. Ela com uma camisa branca aos folhos, toda vomitada. Os cheiros são um gatilho de memórias.

E uma pergunta ‘chapa cinco’: quem é que gostaria de ver a usar um perfume seu?

[risos] O que dizem os teus olhos? [mais risos] Bem, eu sei que a Donatella Versace usa um perfume meu. Tenho muito orgulho nisso. Há várias pessoas e marcas com quem gostava de trabalhar, como por exemplo a Schiaparelli. Adoro todo o universo da marca italiana e estão a fazê-la renascer de uma forma magnífica. Mas uma pessoa… adoraria fazer um perfume para a Sónia Tavares (dos The Gift). Tenho até esse projeto, de fazer uma homenagem à banda com um perfume com a minha assinatura. Vejo-a como uma flor, mas não uma de primavera. É uma mistura de velho com novo, clássico e moderno, tal como a linha da minha perfumaria, com uma estrutura clássica tocada por instrumentos novos e, às vezes, com distorções e partes eletrónicas e desconstruídas. Mas depois há a beleza da sua voz, que é uma voz estranha, mas que me transmite sensações clássicas. Um perfume para a Sónia Tavares seria como uma flor distorcida, um perfume antigo coma disrupção daquilo que é novo.

Como é que lhe chamaria?

Não faço ideia. Não faço mesmo. Mas em 2019 lancei o perfume Burnt Flower, inspirado na Diamanda Galás, uma das minhas cantoras preferidas, baseado na tuberosa, uma flor considerada
muito erótica, exuberante, carnal, opulenta, tradicionalmente com conotações ligadas ao erotismo. Eo que fiz foi queimar a tuberosa, destruir toda a sua beleza, e reduzi-la a cinzas. É uma tuberosa que já não vive, que deixou de ser sensual, que foi torturada e desfeita por tudo o que é mau na vida. No entanto, essa tuberosa consegue ser bela, mesmo em cinzas, consegue ter força e sobreviver, e transformar o que é negativo em vida. É como vejo a Diamanda Galás.

Miguel Matos

Loja online: https://miguelmatosperfumes.shopk.it/

Destaques:

No seu atelier, um frasco de Acampora 54, um convite à dança inspirado no famoso salão de baileStudio 54, no coração da vida noturna de Nova Iorque durante os anos 70. Um perfume em homenagem ao dono da marca italiana Bruno Acampora Profumi, que era frequentador da casa.

«Muitos dos meus perfumes recriam episódios da minha adolescência. Recordo-me das saídas à noite com a melhor amiga, dos perfumes que ela usava.»

«Todos os dias uso um perfume diferente, depende da disposição com que acordo; ou vou ao encontro do humor ou tento contrariá-lo. Não me imagino a usar sempre o mesmo perfume. Cada dia pede um cheiro diferente.»

«Os compradores dos meus perfumes são gente doida com dinheiro para gastar.»

«Guardo frasquinhos com cheiro a erva cortada, um grito de ajuda do reino vegetal.»

«Um perfume para a Sónia Tavares (dos The Gift) seria como uma flor distorcida, um perfume antigo com a disrupção daquilo que é novo.»

«O Habit Rouge, da Guerlain, cheira-me a comboio da CP, de inverno, às oito da manhã, e a vida miserável de acordar às cinco da manhã para ir para as aulas. Mas continuo a achá-lo magnífico. É muito específico.»

««Um perfume sem sentimento não tem vida, mesmo que não o consigamos identificar.»

«Os perfumes à base de álcool nunca devem ser esfregados. Nunca! Dou como exemplo um LP a tocar no gira-discos a 33 rotações. Ao esfregar os pulsos, estamos a tocá-lo a 45 rotações; estamos a acelerar o perfume.»