Elvira Fortunato

EdT36 — Elvira Fortunato é portuguesa e ganhou 2,25 milhões de euros. Não lhe saiu o Euromilhões nem protagonizou uma transferência futebolística. Foi, antes, o resultado da atribuição da maior bolsa jamais concedida a um investigador português. Há quem a considere uma espécie de Cristiano Ronaldo da eletrónica ou quem a ache mentora de uma revolução. A verdade é que Elvira Fortunato se tornou um caso sério de popularidade na comunidade científica internacional com o seu trabalho na área da eletrónica invisível. Mas não só. Ainda por cima, utiliza materiais comuns, amigos do ambiente, de baixo custo, 100 vezes mais rápidos e que fornecem melhores resoluções. Melhor é impossível — por sinal, um conceito inadmissível no ‘seu’ laboratório.

Texto originalmente publicado no número 36 da Espiral do Tempo.

Há quem julgue que fez história e há quem compare a importância do seu trabalho à invenção do transístor. Sente-se uma espécie de celebridade?
Eu sou, acima de tudo, uma pessoa perfeitamente comum. Tenho tido alguma visibilidade por causa dos prémios que recebi, mas isso é fruto de um trabalho árduo, desenvolvido ao longo de um percurso profissional de 20 anos, sempre a remar contra a maré, defrontando muitas tempestades. Mas ainda bem, porque conseguimos! Não me considero uma celebridade; acho que faço, ou tento fazer, o meu melhor.

Porque ninguém vai para investigador como quem vai participar numa telenovela ou num reality show, à espera de ser famoso, para ‘ser conhecido’…
Pois não. O que eu quero é que o meu trabalho seja conhecido e reconhecido, e divulgar aos mais novos um Portugal de excelência, em especial na área da investigação científica. Normalmente este tipo de trabalho tem uma cara por trás, e essa, neste momento, sou eu. Mas somos uma equipa grande, somos 40 pessoas, todas a trabalhar para um Portugal melhor, para um mundo melhor, e felizes por aquilo que fazemos.

O que a motiva? Qual é a satisfação que encontra na investigação?
Descobrir coisas novas, estar sempre no topo da montanha, no fio da navalha. Trabalhamos na área dos materiais, fazemos coisas novas em duas vertentes: por um lado, usamos materiais perfeitamente convencionais para aplicações não convencionais, ou seja, em vez de utilizarmos os tijolos para fazer paredes, utilizamo-los como semicondutores para fabricar transístores — coisa que, se disséssemos desta forma há uns anos atrás, seria razão para sermos crucificados. Por outro lado, pretendemos otimizar materiais baratos, amigos do ambiente, dando-lhes outras aplicações, tendo já percebido que esses materiais, nessas outras aplicações, se revelam excelentes quando explorados os seus potenciais à nano escala. Aliás, estou muito contente porque ainda ontem recebi mais um prémio, inglês desta vez, o Gold Mercury Sustainability Awards 2010  na categoria de personalidade do ano, pelas boas práticas ambientais e contribuição para um desenvolvimento sustentável, inerentes ao trabalho que temos vindo a desenvolver, nomeadamente a eletrónica transparente e eletrónica descartável.

Previa este seu sucesso em menina? Era daquelas crianças que via moscas ao microscópio, desmontava relógios ou torradeiras, abria televisões…?
Não. Quer dizer, eu sempre fui muito curiosa, mas não ao ponto de desmontar as coisas, além dos legos que tinha, como qualquer criança. O que eu sempre quis, desde pequenina, foi ser engenheira, o que consegui. É essa a minha formação. O fascínio pela investigação, a sério, só aconteceu na universidade, quando tive contacto com laboratórios de investigação onde a máxima era o gozo de ver e fazer coisas novas, numa área que me fascinava: a dos novos materiais e dispositivos. Aí, definitivamente, pensei para comigo: é isto que eu quero, fazer coisas que a sociedade possa utilizar e, se possível, revolucionando o que existia. Fui boa aluna e, por mérito, ingressei na carreira académica. Como para qualquer docente universitário que se preze, a investigação científica é parte integrante da sua profissão.

A educação em Portugal, como está?
Não a vejo muito mal. Quando se diz que há problemas no ensino, eu não culpo só os alunos. Isto não é um ataque, mas temos de ver que, como em qualquer profissão, se o professor for bom e se se responsabilizar pelos alunos, conseguirá transformar pedras brutas em diamantes. Eu não sei se todos os professores têm esta capacidade, mas deveriam. Costuma dizer-se que ‘um filho é o espelho dos pais’, um indivíduo reflete a educação que os pais lhe deram. Os nossos genes já vêm ‘programados’, é verdade, mas é a educação que nos molda e que faz o polimento. Um diamante, quando é encontrado, não brilha… por isso, o professor deve saber usar as ferramentas (e são muitas!) que permitam a aproximação ao potencial que existe em cada um de seus alunos.

E a investigação? Eu tenho a ideia de que, depressões à parte, nunca Portugal teve tanta e tão competente gente.
Sem dúvida. Mas também porque partimos de um patamar baixíssimo e estas coisas demoram gerações. Até ao 25 de abril, a investigação praticamente não existia em Portugal. A maior parte dos professores tiveram de ir doutorar-se, na década de 70/80, ao estrangeiro. Os laboratórios universitários não tinham as condições para se fazer doutoramento; faltavam-lhes as infraestruturas e os equipamentos específicos.
Neste momento podemos dizer que foi feita uma aposta muito dirigida na área da investigação científica e, como é normal, os resultados começam a aparecer. Mal de nós se não existissem. A investigação, assim como a educação, são fundamentais se quisermos ser um país desenvolvido, criador e gerador de riqueza.

Elvira Fortunato
© Espiral do Tempo / Kenton Thatcher

Relativamente a esta geração de que se fala. Há só uma geração de jovens? Não é redutor considerar os que se manifestam como representantes desta geração?
É capaz, é capaz. E os que estão ‘à rasca’ não têm de estar ‘à rasca’. As pessoas têm é de se mexer, têm de se esforçar. Face à conjuntura em que vivemos, temos de trabalhar mais, temos de procurar mais, bater a mais portas e, acima de tudo, não podemos ficar à espera que tudo nos seja dado. Eu acho também que a geração atual está um bocadinho mal habituada. Isto é, tudo o que tiveram foi muito fácil e há uma espécie de cultura do facilitismo. Temos de saber criar exemplos de trabalho… mas também aceitar que a sociedade mudou e muito! Não mais se pode crer num emprego para a vida! Insistir nestes termos é hipotecar, matar mesmo, o futuro de Portugal.

Sabendo minimamente como funciona o Estado português, que precisa de pedir licença a um pé para mexer o outro, espanta a Elvira conseguir este sucesso em Portugal. Como é que venceu a inércia e ter hoje o melhor laboratório europeu nesta área e um dos melhores do mundo?
Ao longo dos anos temos tido apoio do Estado, mas era impossível ter chegado onde chegámos só com esse apoio. Mas isso até foi e é bom, pois a nossa prova foi com o mundo competitivo, interno e externo a Portugal, o que nos aguçou a capacidade de lutar e acreditar no que fazíamos, no que pretendíamos, e no que ainda pretendemos fazer! Em Portugal estamos muito habituados a que o Estado nos tem de dar tudo, e andamos todos à procura de subsídios, as pessoas, as empresas, todos. Como nós não tínhamos o apoio de que precisávamos, nem aceitamos bajular o poder para fazer aquilo que queremos, tivemos que procurar outras fontes de financiamento, sempre numa base competitiva. E a verdade é  temos tido bastante sucesso com projetos europeus e internacionais.

A necessidade aguça o engenho?
Diz-se que há crise, mas nós vivemos em crise há muito tempo. Nunca ninguém nos deu nada. Tudo o que construímos foi por mérito. Os apoios conseguidos foram verbas competitivas que, face à nossa qualidade e ao nosso percurso científico, conseguimos ganhar. Depois vieram as colaborações internacionais e, às tantas, isto é uma bola de neve… Mas acima de tudo, o que alcançámos foi sempre com muito trabalho e trabalho em equipa, em que todos davam e dão o máximo, por gosto.

É o que falta a Portugal, espírito de equipa?
Se calhar. Temos de vestir a camisola. Aqui somos quase como uma família: as pessoas dão-se bem umas com as outras, não há divergências de fundo e todos trabalhamos para uma mesma causa. Todos sabem que o sucesso deles é o sucesso da equipa e vice versa. Olhe, é um bocado o espírito japonês por um lado e o americano por outro. Não vemos só o todo, mas acima de tudo, a parte que constitui o todo.

A sua investigação é aplicada. Tem como objetivo a otimização, a rentabilização, a conversão da investigação em produto. Tem havido adesão do setor privado aos seus projetos?
Isso da otimização está muito nos meus genes de engenheira, embora nem tudo o que fazemos possa ser usado pela indústria. Mas como fazemos uma investigação muito dirigida à aplicação, de facto, acabamos por ter excelentes relações com a indústria. Daí termos várias patentes (60, neste momento), sendo uma internacional, com a Samsung, por exemplo.

E com as indústrias portuguesas?
Também temos algumas relações, mas temos mais com empresas estrangeiras. Na área do papel, onde há empresas com peso e dimensão em Portugal, não despertámos o interesse de nenhuma e acabámos por desenvolver um projeto com uma empresa papeleira brasileira, a Suzano e iniciar outro com uma empresa alemã (Felix & Scholler), explorando áreas diferentes para a utilização daquilo que designamos por papel eletrónico.

É uma questão de atitude ou de poder financeiro?
É uma questão de atitude. Aqui, em Portugal, é mais difícil, às vezes, uma empresa grande apostar numa ideia inovadora que uma empresa mais pequena. Por vezes, as pessoas responsáveis pela área da inovação nessas grandes empresas não são muito inovadoras.

No entanto, trabalha, a nível internacional, com a Fuji, a Fiat, a Samsung, a LG, a Saint Gobain, a HP, a Ferrari, e a IBM diz que o seu trabalho com a eletrónica transparente é revolucionário.
Como lhe disse, transformar tijolos em materiais semicondutores, em transístores que podem pôr aquela televisão a funcionar, à temperatura ambiente, é uma revolução que vai decerto mudar a médio prazo as nossas vidas.

A base do seu trabalho, nesta área, são os óxidos, nomeadamente o óxido de zinco. Ou seja, o principal componente do Halibut que usamos nas assaduras dos bebés, por exemplo..
Sim, que também é um dos ingredientes presente nos protetores solares e em outros produtos de cosmética.

Nunca foi tão verdade a frase do Lavoisier, pois não? «Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma».
É verdade, é verdade.

Veio para esta faculdade na era do Spectrum. Não havia telemóveis nem computadores portáteis. A Elvira ainda é jovem: como é que vê o ritmo da evolução tecnológica, sobretudo estando no âmago de alguma dela?
Não sei como será no futuro, mas eu sinto que sou extremamente sortuda. Vivi numa época que, de repente, passou do papel para os computadores. Acho que vivi num tempo maravilhoso, porque parti do nada para o tudo. E a Internet foi fundamental, claro, relativamente à comunicação e à informação. Está tudo na ponta dos dedos e à velocidade da luz. Há uma possibilidade de partilha de informação incrível, e isso é muito importante. No futuro, espero que todos possamos imprimir o nosso telemóvel e que o papel eletrónico seja a base da eletrónica descartável e conformável!

Ainda se lembra da Almada onde cresceu? A Almada dos anos 70 e 80.
Lembro, lembro.

E ela ainda existe?
A zona onde eu morava não. Eu morava no Pragal, que era uma zona de quintas. Até ao Almada Forum, só havia quintas. A minha mãe ia buscar o leite a uma vacaria. Como é natural nada disto existe. Contudo não está tudo perdido, temos nessa área de quintas o parque da Paz que é um ex-líbris da cidade de Almada.

Assusta-a a voracidade tecnológica em que vivemos?
Não, não. Na nossa área, o que pretendemos é ter uma sociedade melhor, proporcionar uma vida melhor e contribuir para um ambiente melhor. Queremos fazer coisas boas, coisas positivas para a sociedade. Sou otimista, não perco o meu tempo com a parte mais negativa das coisas, embora saiba que ela existe.

Os transístores transparentes eram ficção científica há 10 anos.
Até há menos.

Sente-se a construir o futuro?
Ajudei e ajudo. Nessa área, posso dizer que ajudei a construir o futuro.

Elvira Fortunato
© Espiral do Tempo / Kenton Thatcher

E isso vai ser mais percetível daqui a cinco ou dez anos?
Sim. Acho mesmo que já começa a ser percetível o trabalho que continuo a realizar. Foi com imensa satisfação que tomei conhecimento que o ERC elegeu o meu trabalho ‘Invisível’ como um dos dez mais marcantes em todas as áreas em que o ERC já concedeu bolsas (são já umas boas centenas, desde 2007), merecendo para esse efeito destaque e relevância na página do ERC.
Para além disso, é gratificante ver-se nesse mesmo site, escrito pelos responsáveis do ERC que já fizeram uma primeira avaliação do projeto que coordeno: «não é preciso ir aos EUA ou Japão para se ver o que de melhor se faz em eletrónica transparente, e o responsável por isso é uma cientista e um laboratório português». Isso enche-me de orgulho e de um orgulho especial, o de gostar de ser portuguesa…

Portugal tem noção disso?
Acho que vai tendo. A comunicação social tem feito uma boa cobertura, a internet tem muita informação sobre o que eu e o laboratório vamos fazendo. Para além disso, tenho ido a muitas escolas em todo o país para que se possa estimular, motivar e fazer acreditar às gerações futuras que apostar em Portugal vale a pena. Estes são os exemplos, as boas referências que devemos dar a quem nos sucede nesta caminhada que queremos que seja relevante para as gerações vindouras. Temos que pensar que o Portugal que queremos e amamos vai para além das nossas vidas. Deviamos pensar não naquilo que podemos e devemos desfrutar enquanto «por cá andamos», mas o que deixamos para além daquilo que consumimos…

Aqui há uns anos, o papel era considerado um produto em vias de extinção. As pessoas iam deixar de ler livros, tudo seria feito num computador. Não só isso não aconteceu como, agora, a Elvira encontrou um novo uso para o papel. Já não apenas como suporte da tinta, mas com novas funcionalidades?
Sim. O papel é um componente de eletrónica, hoje em dia, é um dos ingredientes do transístor. É um material de eletrónica. Demos-lhe uma vida completamente diferente, usando a mesma matéria-prima, o mesmo processo de fabrico, a mesma tecnologia. É papel e é um componente eletrónico.

Outros cientistas portugueses, para obterem sucesso, emigraram. Esta questão pôs-se ou põe-se?
Não. Acredito que em algumas áreas, onde o conhecimento ou as infraestruturas ainda não estão bem consolidadas, seja necessário ir para fora. Apoio de forma incondicional a ida lá para fora, mas gostaria muito que esses investigadores regressassem a Portugal e trouxessem esse conhecimento para dentro de portas. Reconheço também, por motivos vários, que nem sempre é possível. Nós no nosso caso concreto fizemos uma aposta em Portugal, conseguimos construir uma infraestrutura laboratorial competitiva em qualquer parte do mundo. Ora se eu tenho aqui as melhores condições para fazer investigação, ainda por cima gosto muito do meu País, tenho aqui a minha família, tenho um excelente clima, uma excelente gastronomia, um excelente ambiente de trabalho, o mar aqui ao lado, não faz muito sentido sair daqui… apesar de saber que o esforço que fazemos é muito maior, em tudo! As aquisições são morosas, o reconhecimento é mais difícil, encontrar massa crítica é dificílimo!

Há a ideia de que os cérebros portugueses fogem para o estrangeiro…
Eu acho que é muito bom sair quando se veem horizontes turvos internos (por falta de meios, fundamentalmente) ou quando se pretende otimizar o que sabemos junto de equipas com elevada massa critica e reconhecimento científico internacional. Contudo acho que este fato é muito amplificado pela comunicação social, que acha que só saiem os bons… Eu também estou nas bolsas de estudo e faço avaliações, e não há assim tantos cérebros a sair como se diz! Esta forma de ver as coisas tem de mudar e temos de ter mais orgulho e confiança naquilo que fazemos!
Por outro lado devemos ver que há também excelentes investigadores a virem trabalhar para Portugal. A Fundação Champallimaud, por exemplo, está a atrair alguns dos melhores investigadores na área das neurociências, e isto não é uma coisa menor. Além disso, num mundo globalizado é inevitável que haja esta circulação de pessoas e conhecimento. Isto é o comum e não a exceção, pelo que haver portugueses a fazerem parte desta família global de investigadores, deve ser considerado como normal! Como já disse, o que esperamos é que o balanço final seja positivo: os excelentes regressem e contribuam para criarmos um Portugal melhor.

Tem noção de todas as possibilidades de desenvolvimento que o seu trabalho pode proporcionar?
Não.

Professora Elvira, espero que esteja a estudar um processo para fazer do nosso Sporting campeão!
Eu ando um bocadinho desiludida… vamos ver. Agora houve eleições e espero que, com a mudança, o clube se motive mais. Costumo ir ao estádio, mas…. Eu visto a camisola da investigação científica e no futebol nem sempre se veste a camisola, há outros interesses ….Contudo, sou uma leoa feroz, que nunca aceita a derrota como fatal! Aliás, nem aos alfinetes, gosto de perder…

Há lugar para a ideia de Deus no admirável mundo novo que está a ajudar a construir?
Eu sou católica. São coisas perfeitamente compagináveis. Mais, permite-me ver o mundo para além da minha simples existência terrena e pretender criar exemplos que perdurem e que sejam usados por outros. Isto é muito importante quando se pretende ajudar a criar um mundo novo… ET_simb

Outras leituras