Com deferência, leva-se melhor — muito melhor — a vida. Deferência, dedicação, preceito, tempo e cuidado. É assim que se é atendido na Luvaria Ulisses, uma celebração ao existir. São luvas, tão somente, pois são. Mas tanto mais. Tudo tanto mais. A última resistente.
Artigo originalmente publicado no número 77 da Espiral do Tempo (inverno 2021)
Segunda-feira. Entrevista marcada na loja, no número 87A da Rua do Carmo, estrategicamente localizada entre a Baixa e o Chiado, em Lisboa. Pontualmente, à nossa espera, está Carlos Carvalho, um dos atuais sócios de uma grande «sociedade familiar». De portas ainda fechadas ao público, enquanto a rua está a ser lavada e o comércio envolvente desta artéria aberta em 1904 começa a abrir lentamente, Carlos, funcionário da casa desde os idos anos 1974 — tinha então 16 anos —, recebe-nos num espaço de não mais que 4 m². O que a Ulisses tem em longevidade contrapõe-se à área de atendimento da loja, uma das mais pequenas do País.
Fundada em 1925 por Joaquim Rodrigues Simões, antigo vereador da Câmara Municipal de Lisboa, e entendedor das dinâmicas urbanas de então, pediu autorização ao Governo para construir lojas nesta parte da Muralha do Carmo, na altura pouco explorada. Um instinto que garantiu a esta casa uma localização ideal no epicentro de uma das colinas mais requisitadas pelo comércio, que começa no cruzamento da Rua Garrett com a Rua Nova do Almada e termina no Rossio.
O interior, de pendor império, mantém-se preservado desde a abertura, e tem a mão de Carlos de Alcântara Knotz, entalhador da extinta casa Barbosa & Costa. No exterior, a porta e montras seguem as linhas neoclássicas da fachada em cantaria, projetada pelo engenheiro Arthur Guilherme Rodrigues Cohen.
Décadas passaram, ser visto com luvas calçadas já não tem relevo social de outrora, mas o ritual na Ulisses — nome do mais astucioso guerreiro de toda a epopeia grega — mantém-se. Uma vez lá dentro, as mãos são atentamente observadas, tiram-se medidas. A luva é aberta dedo a dedo por uma pinça de madeira, amaciada com pó de talco, o cliente pousa o cotovelo numa almofada sempre presente ao balcão, e experimenta o par.
Neste processo, o único a manusear a peça é o funcionário, que vai fazendo alterações até chegar à perfeição. Depois, há que escolher a cor e os adornos desejados. O grande final é ter a mão escovada com um delicado pincel. Todos os ajustes necessários, a confeção das luvas em geral, acontece num espaço vizinho, uma oficina na Travessa do Almada, onde trabalha um oficial (cortador de peles) e uma costureira, num total de dez funcionários.
“Os clientes ficam encantados com todo o cerimonial, com a preparação e a diferença de corte.”
Carlos Carvalho
Para se ter uma ideia do preciosismo, existem sete tamanhos oficiais só para mulheres — do 6 e ¼ ao 7 e ¾ — para que a luva fique primorosamente ajustada à mão. O balcão dá para um minúsculo armazém, escondido por um majestoso reposteiro, onde estão meticulosamente guardados em pequenas gavetas dezenas de modelos — identificados por números (não por nomes), de diferentes cores e acabamentos, embora também possam ser encomendados exemplares exclusivos. O atendimento é de tal forma personalizado que as vendas online foram descartadas.
Muito pequena em dimensões, mas grande no negócio de venda — cerca de 12 mil pares saem da loja ao ano, aliado ao fabrico artesanal e personalizado —, o que já vai sendo muito raro em Portugal e no mundo, a Ulisses foi a primeira da Baixa Pombalina a ser classificada como loja histórica, e é a única diretamente ligada à moda de entre os nove estabelecimentos selecionados para a segunda edição do projeto intitulado «Lojas Com História».
Desde os anos 20 que todo o processo de fabricação se mantém inalterado. Tudo é artesanal, desde o corte da pele até à costura; rigorosamente nada mudou. Numa época em que as tendências de moda mudam tão rápida e implacavelmente, é reconfortante ver que algumas coisas resistiram ao teste do tempo. Mesmo depois de quase um século, todo o método de fabrico da Luvaria Ulisses — até as máquinas de costura tradicionais — continua igual, oferecendo luvas de alta qualidade feitas com padrões muito exigentes.
A conversa vai longa e começa a formar-se fila à porta; grande parte são estrangeiros. Aliás, segundo Carlos Carvalho, apenas 20% da clientela é nacional. O tempo médio de atendimento pode chegar a meia hora, ou mais. Em tempos de fast fashion, é um regozijo ainda haver quem receba assim, com requinte e dedicação.
Medidas que fujam ao padrão, como dedos muito compridos, ou pedidos especiais — a maioria prende-se com a conjugação de cores, são encaminhadas para a oficina, sem acréscimo de preço. É imprescindível também sublinhar que estas peças têm garantia vitalícia quanto às costuras, sempre que se descosam, independentemente dos anos que têm. É um adereço pensado para passar de geração em geração, com estima.
O bem cuidar
O material pode ser pelica (finíssima) de cabra ou de ovelha, couro de veado ou de pecari (animal que lembra um javali) e nobuck de vitela. Para o forro, as opções são seda, caxemira ou pele de coelho.
Por as peles serem muito macias, com acabamento natural, não é aconselhável que apanhem chuva. E devem ser conservadas protegidas da humidade e do sol. Tudo foi pensado, e, por conseguinte, cada par vem numa bolsa de cetim, oferta da casa. Caso as luvas fiquem molhadas, devem ser deixadas a arejar, e só depois guardadas, para assim garantir uma maior longevidade.
A maioria dos clientes são mulheres, tradicionalmente, mas também há muitos homens e, curiosamente, os jovens também estão a aderir ao uso de luvas. E, como a satisfação do freguês é primazia, tudo é possível dentro da oferta da casa: luvas sem dedos, para que se vejam as joias, canhões com orifícios para revelar o mostrador do relógio, dedos de cada cor. As maiores extravagâncias ficam reservadas habitualmente para o canhão, onde são colocados os apliques, com lacinhos, botões, rendas ou lantejoulas. Não há impossíveis.
Uma sociedade familiar
O fundador não deixou descendência direta, o negócio passou para as mãos dos sobrinhos. E, desde então, a sociedade tem-se mantido com a integração dos funcionários e familiares destes. Como é o caso de Carlos Carvalho, que aos 26 anos foi convidado para sócio, e agora até já tem os filhos a trabalhar lá.
Quantos de nós não terá já oferecido algo que gostaríamos muito de ter? E parece que nunca surge a oportunidade. Mimemo-nos. Eu, de certeza, que o irei fazer.
Veja a produção fotográfica realizada na Luvaria Ulisses e publicada no número 77 da Espiral do Tempo (inverno 2021).
LUVARIA ULISSES
Rua do Carmo 87-A, Lisboa | Horário: 2ª a sábado – 10h00 / 19h00
Preços: 54 € / 120 €