Para aguçar o apetite: no número 74 da edição de primavera da Espiral do Tempo, já nas bancas, pode ler uma reportagem dedicada ao Musée international d’horlogerie, uma casa mágica onde se guarda a história do tempo e da relojoaria. E não poderia localizar-se noutra cidade. La Chaux-de-Fonds foi, ao longo dos últimos séculos, a alma e o coração da indústria relojoeira suíça. O Museu aqui residente é um guia essencial para entendermos as razões por que a relojoaria se tornou central na vida das sociedades e dos seres humanos. Aqui deixamos uma parte da reportagem.
Contar o tempo foi sempre uma obsessão humana, desde os tempos mais remotos da história. Muitas formas foram utilizadas para fazê-lo, mas os relógios tornaram-se o seu referente perfeito. Ao longo dos séculos, evoluíram e tornaram-se, também, obras de arte. Criadores talentosos e visionários aliaram a estética à arte da precisão, deram-lhe valor e alteraram atitudes, dogmas e formas de organização social. Relojoeiros e peças notáveis marcaram épocas e tornaram-se parte da história. É ela que, num lugar cheio de magia chamado Musée international d’horlogerie, nos é transmitida de forma simples, mas erudita. Entrar neste Museu é como abrir a porta de uma caverna repleta de tesouros únicos. Não temos de seguir a Estrela Polar para conhecer a sua localização. Ela não poderia ser noutro local.
A cidade de La Chaux-de-Fonds, nas montanhas sinuosas do Jura, na Suíça, é conhecida como o paraíso do fabrico de relógios. Ali, em tempos remotos, aqueles que trabalhavam no campo sentavam-se junto às janelas, para que a luz os ajudasse, nos frios e inóspitos invernos, a construir relógios, outra forma de ganharem o sustento. Por aqui, diz-se, ironicamente, que a neve é uma forma de vista, já que existem «duas estações: o último inverno e este inverno». Karl Marx encontrou nesta localidade inspiração crucial para as teorias que expôs em O Capital: «Toda a vila de Chaux-de-Fonds é uma fábrica de relógios, um modelo da divisão do trabalho.» Foi ali que personagens incríveis fizeram história da criação e do fabrico de relógios. Era uma localidade que parecia um relógio: metade da sua população chegou a trabalhar na indústria relojoeira. Não admira, pois, que lá esteja instalado o Musée international d’horlogerie (MIH), uma forma de recordar uma longa e imemorial história, e de venerar os seus criadores e as suas obras. É o local certo para a sua existência. La Chaux-de-Fonds fica a apenas dez quilómetros da fronteira entre a Suíça e a França, ou seja, é, desde sempre, um local atraente para os movimentos de ideias e de pessoas. Fundada em 1656, a localidade foi parcialmente destruída por um fogo em 1794. Nessa altura, um novo planeamento urbano foi proposto e desenvolvido por um engenheiro local, Charles-Henri Junod, para adaptar as habitações e as vias de circulação à sua principal indústria, na altura, quase totalmente feita nas casas de cada trabalhador independente, que se especializava numa única peça. Ruas mais largas (que também permitiam retirar, com mais facilidade, a neve) e casas com grandes janelas, cuja disposição privilegiava o aproveitamento da luz, tornou-se a fórmula perfeita para que os relojoeiros trabalhassem em melhores condições.
Há, assim, quem diga que La Chaux-de-Fonds foi construída como se fosse um tabuleiro de xadrez, adaptada especificamente à indústria relojoeira. Nela, descobre-se a evolução dos tempos. Quando hoje se percorrem as suas ruas, descobrem-se mansões com as caraterísticas de art nouveau, onde viviam no passado as famílias mais abastadas, junto às casas dos trabalhadores. E, para onde quer que se olhe, encontram-se as amplas janelas das fábricas e oficinas onde se produziam relógios. Em La Chaux-de-Fonds, criara-se uma verdadeira cidade industrial, onde a sistematização da produção permitia também que a indústria suíça combatesse a forte concorrência americana da altura. A criação de fábricas de relógios revelou-se, então, uma necessidade para fazer face à forma de produção debaixo de um único teto utilizada pelos fabricantes norte-americanos, que os suíços tinham visto, com justificado receio, na Feira Mundial de Filadélfia, em 1876. O resultado foi positivo: no início do século XX, metade dos relógios vendidos em todo o mundo vinham de La Chaux-de-Fonds, que, na altura, já tinha 40 mil habitantes. A riqueza afluía e isso refletia-se nas habitações: ali continua preservada a Villa Fallet, um exemplo de art nouveau, desenhada em 1906 por um dos filhos mais conhecidos da localidade, o arquiteto Le Corbusier (cujo verdadeiro nome era Charles Edouard-Jeanneret-Gris), quando este tinha apenas 18 anos. Nascido de uma família de relojoeiros, foi para a escola de arte local com apenas 13 anos. Aprendeu relojoaria, mas esta apenas despertou o seu interesse pela arquitetura. A importância da luz, tão importante para os relojoeiros concretizarem o seu minucioso trabalho em pequenas peças, acabaria por deixar marcas muito vincadas na sua futura atividade. A Villa Turke, feita em 1916, a pedido de um rico empresário
de relógios, é puro Le Corbusier e genuíno La Chaux-de-Fonds: cheia de luz.
É a luz e alguma influência de Le Corbusier e do conceito urbanístico da localidade que orientaram o edifício do Musée international d’horlogerie. O Museu tem um ar moderno, subterrâneo. A sua construção foi terminada em 1974, e, desde então, é a casa de uma das mais famosas coleções de relógios e de objetos com eles relacionados, que acompanha a história da relação da arte da relojoaria com o tempo. Não é por acaso que, quando se entra no edifício, está gravada no cimento a frase que sintetiza tudo: «Le Homme et le Temps».
Recuemos um pouco no tempo: em 1865, a Escola de Relojoaria de La Chaux-de-Fonds tomou consciência da necessidade de criar uma coleção de relógios antigos, até para preservar a memória da atividade local. Isso levou, em 1902, à abertura de um pequeno museu na Escola, que foi alargado em 1907, 1952 e 1967. Anos mais tarde, a administração do museu decidiu propor ao município da cidade a criação de uma fundação com a finalidade de construir um novo edifício. Inaugurado em 1974 com o nome Musée international d’horlogerie, caraterizar-se-ia pela conceção e utilização de técnicas avant-garde da arquitetura e da museologia. Realizada entre 1972 e 1974, a obra de Pierre Zoelly e de Georges-J. Haefeli serve o objetivo da sua construção. A estrutura de betão compensa o declive do local, permitindo a criação de três níveis que correspondem às principais zonas do Museu – a sala reservada às exibições temporárias, a destinada às peças antigas, e a sala dedicada às técnicas de fabrico e de decoração e às peças do século XX. A presença da luz natural foi uma das preocupações e, por isso, o Museu abre-se para o exterior pelos largos vidros da entrada, e pela galeria dedicada à astronomia e aos ateliers de restauração. Tudo dentro de um equilíbrio elegante, sóbrio e poético, como se fosse uma peça relojoeira.
Este é o local onde é impossível esquecer a importância do tempo, das questões que levanta e das respostas que os relojoeiros lhes deram. Perto de 5000 objetos, incluindo 2700 relógios de pulso e 700 relógios de parede, estão ali disponíveis para se ver e compreender a forma como se foi contando o tempo. De relógios tão finos como uma moeda a caixas esmaltadas que albergam magníficas obras de tecnologia refinada, tudo aqui pode ser descoberto. Percorrendo as diferentes zonas de exposição percebe-se como é que a indústria suíça sobreviveu a todas as crises, incluindo a do quartzo, quando milhares de residentes acabaram por perder o seu emprego ligado à relojoaria: há um amor profundo pelos relógios e pelo que significam.
Leia mais no número 74 da Espiral do Tempo, já nas bancas, e que pode também ser adquirido através do nosso site.