Boca do Lobo: design com atitude

 Uma imensa notoriedade adveio de terem colocado 31 peças de design, decoração ou mobiliário no filme As Cinquenta Sombras de Grey, seis das quais da marca Boca do Lobo; as restantes, das outras marcas do Grupo. A entrada no nicho dos móveis / cofres para relógios despertou a nossa curiosidade, pelo que fomos à Covet House, um espaço sobranceiro ao Douro, em Gondomar, onde estão expostas as peças produzidas pela empresa, e conversámos com Ricardo Magalhães, um dos fundadores da Menina Design, e Marco Costa, diretor criativo da Boca do Lobo, uma das marcas do grupo. 

© Boca do Lobo
Cofre para relógios e valores ‘Diamond Safe’, com assinatura Boca do Lobo e disponível na Torres Joalherios. © Boca do Lobo

Espiral do Tempo (EdT) — De onde vem, por parte dos fundadores da Menina Design, esta necessidade de fazer de forma diferente, expressa tão intensamente na marca Boca do Lobo? Houve algum indício, na vossa origem ou na vossa formação, de que viessem a construir o vosso futuro profissional criando coisas diferentes? 
Ricardo Magalhães (RM) — Não. Eu sou designer de interiores e o Amândio (Pereira), o outro fundador do grupo, é designer de produto. Já nos conhecíamos há muito tempo, desde a escola preparatória, estivemos juntos na escola secundária e, depois, na universidade. Através de um professor, fomos desafiados a constuir um projeto para uma clínica, uma coisa que nada tem a ver com a atividade principal do Grupo hoje. Foi um projeto que, pelo passa-palavra, nos permitiu angariar novos projetos em que percebemos que, para crescermos e avançarmos no domínio da nossa atividade, teríamos de fazer projetos de tipo ‘chave na mão’.

Só assim podíamos sentir o projeto ganhar forma e podíamos ganhar vocabulário, experiência, maturidade e dominar as ferramentas como não dominávamos até aí. Só o que tínhamos aprendido na faculdade não nos permitia ter esse domínio do negócio. Fizemos outros projetos e percebemos que quando desenvolvíamos um trabalho — um produto, uma obra, uma peça — com que queríamos marcar o nosso cunho, tínhamos uma grande dificuldade em representá-lo, porque, na altura, o setor do mobiliário não aceitava o lado inovador, não estava disponível para sair do seu espaço de conforto. Quando apresentávamos um projeto arrojado, ouvíamos sempre um não, havia sempre barreiras. E isso criou-nos algum desconforto. Numa superfície de pladur, podíamos desafiar na forma, mas percebemos que só marcaríamos a diferença com o mobiliário, com o envolvimento, com a estética, com a dinâmica e com o layout do projeto. O que poderia humanizar esse espaço era, justamente, o mobiliário, a iluminação, os acessórios. Estes é que trariam o conforto, o lado habitável.

© Espiral do Tempo / Susana Gasalho
Ricardo Magalhães, sócio fundador da Menina Design, junto a um aparador ‘Mondrian’. © Espiral do Tempo / Susana Gasalho

EdT  Mas poderiam fazê-lo de uma forma não arrojada. Porque é que, não havendo a aceitação das vossas ideias, vocês insistiram?
RM — Durante esse período, verificámos que, na área da produção de mobiliário, o setor tinha capacidade, tinha conhecimento e tinha knowhow. Por outro lado, quando íamos a feiras internacionais, percebíamos que as marcas, sobretudo as italianas, a grande referência, não acrescentavam nada. Afirmavam-se pela marca. Tinham qualidade, mas era uma qualidade fácil de replicar, e, por isso, as marcas italianas foram tão copiadas ou mesmo vulgarizadas. A exceção eram as marcas que tinham o seu cunho, o elemento diferenciador.

Ora, em Portugal, havia a capacidade produtiva, havia a flexibilidade, havia uma história, mas, numa feira internacional, não víamos nada que fosse nosso. O setor nacional de mobiliário não tinha nenhuma visibilidade nas feiras internacionais, nem aqui perto na de Valência, que era, na altura, uma feira de referência. Aí percebemos que podíamos afirmar-nos com uma marca que provocasse, que desafiasse. A primeira apresentação que fizemos foi em Londres, e foi aí que se deu o clique. Percebemos qual o caminho, porque apresentámos uma proposta mais arrojada e outra mais conservadora, e a aceitação do público recaiu claramente na mais arrojada.

© Espiral do Tempo / Susana Gasalho
Aparador assinado Menina Design. © Espiral do Tempo / Susana Gasalho

EdT  Nenhum dos fundadores é formado em gestão, e até já vi o Ricardo fazer gáudio disso. Como é que dois criativos tornam um projeto destes num sucesso em tão pouco tempo, sem que nenhum tenha formação nessa área?
RM— Nós passámos por todas as fases, por diferentes atividades durante o nosso percurso. Quando fazíamos projetos de interiores, tínhamos de fazer gestão de orçamentos, de equipas internas e também a coordenação de equipas externas. Ora nessa altura, a diferença entre o sucesso e o risco de não cumprir era tremendamente pouca. Por isso, tínhamos de ser rigorosos. Ganhámos uma grande bagagem no que respeita ao rigor, embora não tanto na gestão de um ‘negócio’. Posso-lhe dizer que só temos um departamento de contabilidade interna há três anos, e a empresa tem 14 anos. Foi uma forma de nos disciplinarmos e, não menos importante, foi uma forma de tentar que a nossa criatividade não fosse condicionada por uma análise fria dos números. Há sempre coisas positivas e negativas nestas escolhas, mas o lado mais positivo foi exigir de mim e do Amândio o domínio de mais essas ferramentas. Somos ambos designers, mas somos duas pessoas complementares. Eu estou mais à vontade na área criativa e de estratégia, ele é mais operacional, está mais no terreno. Somos complementares. Mesmo na gestão das nossas equipas, olhamos para as nossas marcas como micronegócios e criámos lideranças de três a quatro elementos, com uma base que é sempre de um diretor criativo, alguém dedicado ao marketing e à gestão, e o líder de vendas.

EdT  Como é que hoje olham para trás e para as vossas ambições e decisões iniciais? Ainda é cedo para um balanço definitivo, mas, se 14 anos podem ser pouco, também pode ser um longo caminho.
(risos) RM — Pois, até porque nós vivemos as coisas de uma forma muito intensa. Sabemos onde ambicionamos estar em 2020, ou em 2030, mas vamos trabalhando ano a ano. Hoje, a sociedade muda de uma forma constante. Há muitos fatores, e preferimos estar mais focados a trabalhar a estrutura, tornando-a mais flexível, mais capaz de se ajustar ao mercado, do que estar focados nos números. Quando se trabalha muito com uma base de comunicação e design, se pensarmos mais na estrutura, estaremos mais próximos dos sucessos e das metas que pretendemos.

EdT  Pode-se dizer que partiram com quatro apostas primárias: o design, a criação de uma marca, comunicação e internacionalização?
RM — Sim. A internacionalização foi sempre o nosso foco. Quando pensámos na nossa reinterpretação do conceito de mobiliário e na aposta numa marca, percebemos que a internacionalização teria de ser o nosso foco. A relação com o mercado nacional seria natural. A comunicação e o design são o nosso core business. Em relação à produção, inicialmente pensávamos que se limitaria a ser a área onde pretendíamos fazer a nossa prototipagem, onde pudéssemos testar coisas, um espaço que fosse mais um atelier e não tanto uma unidade industrial. O tempo forçou-nos a olhar para a produção de uma forma diferente porque entrámos noutro patamar, e tivemos de nos ‘segurar’ muito mais. Sabíamos que podíamos fazer outsourcing nalgumas das nossas marcas, mas noutras não tanto — e a marca Boca do Lobo é um bom exemplo de uma marca que exige uma dedicação e uma atenção, pelo grau de dificuldade que temos na execução das obras que representa, que é diferente do grau de dificuldade na execução de outros produtos. Hoje temos unidade de produção em todas as áreas, o que nos permite responder muito melhor perante a procura, permite-nos atacar novos mercados, novas áreas de negócio. Há cinco anos, isto era impensável, e, concluindo a sua pergunta de há pouco, se poderíamos pensar que estaríamos neste ponto, a resposta é não. Na questão da produção, foi onde nós tivemos uma grande mudança de pensamento e de ambição. Fomos forçados a isso pela dinâmica do negócio.

© Espiral do Tempo / Susana Gasalho
Espelho veneziano. © Espiral do Tempo / Susana Gasalho

EdT  Apesar dessa aposta na internacionalização, escolheram para esta marca um nome em português.
RM — É um indício do que foi a nossa motivação inicial, da nossa criatividade e personalidade. Quando nos sentíamos desiludidos, frustrados por chegar lá fora e não ver nada português, achámos que era importante para o País que tivéssemos esse papel e conseguíssemos alavancar alguma mudança na afirmação do design português. Hoje, é com muito agrado e alguma vaidade que vemos em feiras internacionais quem se sentiu motivado por nós. Mais de 50 expositores portugueses em Paris, muitos deles enquanto marca, cerca de 40 em Milão. Ora, o período que eu falava não foi há muito tempo, foi há dez anos. Isto com um período de crise pelo meio, com a intensidade daquele que atravessámos.

EdT  Poder-se dizer que este projeto, pelos valores, pelo saber, pelos materiais, pela técnica, pelo design, só poderia ter nascido em Portugal, ou poderia ter nascido noutro lado, mas não exatamente igual por causa de pormenores de tradição nacional que vocês incorporamcomo o azulejo, a talha etc.?
RM — Na essência, sim, só poderia ter nascido cá. O Marco, por exemplo, integrou-se bem, porque isto já fazia parte do seu ADN. Ele é de Aveiro e o nosso fornecedor de azulejos é seu vizinho. Não consigo imaginar se haveria outro país que nos permitisse afirmarmo-nos desta forma. Não penso muito nisso, mas nós estamos atentos ao que nos rodeia em Portugal, para percebermos o que podemos potenciar. Nós vamos a uma fundição e vemos uns puxadores que para eles é lixo, no sentido em que é uma coisa gasta, que, de tão vista, já não conseguem olhar para ela de uma forma que não seja depreciativa. Mas, se eu puser o puxador de que eles estão fartos ao alto, já lhe dou uma perspetiva diferente. Estamos muito atentos aos detalhes e àquilo que podemos transformar para trazer valor acrescentado.

EdT  Que conjunto de artes juntam nos vossos produtos? 
RM — Ui: carpintaria, marcenaria, talha, vidro, marqueteria, latão, cerâmica… Só a nossa primeira peça com mais projeção tinha 12 fornecedores. Quem a queira copiar vai coçar a cabeça. Só no vidro, trabalhamos em três áreas.

EdT — Mas não estão esses saberes a desaparecer? 
RM — Estão. Temos contacto com as poucas associações que ainda dão formação nessa área. Dou-lhe o exemplo, na área da marcenaria e da metalomecânica é mais reduzida a formação que a procura. Há muita procura, mas os jovens não querem. Só lhes interessa a área de programação de CNC. Hoje, o nosso marceneiro mais novo terá uns 35 anos e vem de Famalicão todos os dias. Relativamente à produção, na marcenaria, a nossa média de idades é de uns 50 anos. Temos a disponibilidade para formar, mas não há quem queira ser formado. Do lado da computação, sim, mas do lado da manualidade não há, e, em áreas como a da fundição ou a do vidro, que é um caso gritante, as pessoas  com que possamos querer trabalhar estão na reforma ou quase na reforma. Isso causa-nos desconforto, porque, dentro de um curto espaço de tempo, poderemos vir a não ter capacidade de resposta em Portugal.

Marco Costa (MC) – Mas é uma questão de formação portuguesa. Se formos à Alemanha, vemos muitas pessoas na casa dos 30 anos a fazer vidro. Na cerâmica, as pessoas que a trabalham cá são pessoas já com alguma idade, mas temos um parceiro nosso estrangeiro que tem muitas pessoas novas a trabalhar, com técnicas inovadoras. Por exemplo, as cadeiras em couro, que são uma peça que fazia sentido a Boca do Lobo explorar, não conseguimos quem as faça. Para trabalhar o espelho veneziano, andámos cerca de um ano atrás da pessoa.

RM — O que faz com que estejamos mais atentos ao que se passa lá fora. No vidro, temos um parceiro checo com muitos trabalhadores com 30 anos. É uma pena a nossa estratégia educacional e cultural. E até tínhamos a Marinha Grande ou Leiria como centros de desenvolvimento na área do vidro.

EdT  Qual é o papel da emoção neste vosso projeto? Sente-se a vossa paixão pela criação e pelos objetos, na vontade de provocar emoções nos clientes, ou na forma como comunicam.
RM — Sim, há. E tem que ver com o que o Marco dizia há pouco. Na BL, a primeira premissa da maioria dos clientes é comprar por impulso. Ou me identifico ou não, e o nosso objetivo é conceber a peça como uma peça de arte. É possível comunicar com diferentes linguagens, para que cada peça tenha o seu protagonismo dentro de casa, por forma a que o cliente consiga olhar com paixão para a peça, sentindo que há uma história, que há uma memória, que pode ser de uma viagem, um momento cultural ou de uma relação familiar. Ou seja, gostávamos de que essas peças, como a relojoaria, também fossem heranças que passassem de geração para geração. Acho que esse é o nosso grande desafio. Mais do que emocionar o comprador, gostávamos que a peça fizesse parte da sua história, da dos seus filhos e que os netos as pudessem herdar. Acho que era um orgulho e acho que havemos de lá chegar (risos). Como o livro sobre relógios que temos, da Assouline, que é nosso parceiro. Gostamos de perceber a história de um relógio, ou de uma marca, e perceber o que aconteceu nas diferentes gerações, as mudanças de linguagem, de estilo.

EdT  Por isso fizeram móveis para guardar relógios?
(risos) RM — Também. É o desafio mais recente, na área dos cofres e dos relógios, sim. Tentámos interpretar todos os espaços de uma casa, os do homem e os da mulher. Não queremos criações segmentadas, mas abrangentes. E estamos sempre atentos a onde podemos trazer alguma da nossa irreverência.

MC – Além de o nosso ser um produto único, facilmente identificável. O nosso cliente final está à procura de coisas únicas, e nós fazemos muitas vezes peças à medida. Foi daqui que nasceu esta proposta dos cofres e dos móveis para guardar relógios. Um cliente veio ter connosco e lançou-nos um desafio específico, fora da nossa zona de conforto. Percebemos que existia esta falta de oferta no mercado e lançámos o produto.

© Espiral do Tempo / Susana Gasalho
Recantos da Closet House onde estão expostos vários produtos da Menina Design. © Espiral do Tempo / Susana Gasalho

ET  A relação com Hollywood é todo um mundo que se abre?
RM — É. Temos várias propostas, mas não é o nosso core business. A relação que possamos ter com esses palcos faz parte da nossa estratégia de comunicação. É algo apetecível e que nos pode vir a abrir outros horizontes. É importante orgulhamo-nos, mas não nos tira o foco. É mais um degrau, embora também seja um premiar do nosso trajeto.

EdT  Até que ponto as vossas peças, que são propositadamente arrojadas, podem ser inseridas em espaços que não tenham sido concebidos para receber tal arrojo?
MC — Com a experiência, vamos percebendo essa problemática. Eu acredito que a marca Boca do Lobo não está pensada para um público específico. Conseguimos detetar algumas tendências, mas temos surpresas com peças que estão ‘destinadas’ a um mercado e que, de repente, é a Suécia ou a Dinamarca que compram esse produto — que não tem nada a ver com o que achamos do design desses p países se ela encaixa na forma de estar, na filosofia de vida  verdade s mais peças mais recentes de encontrar um produto nosso. na. Temos clientes nossos, decoradores e designers de interiores, que criaram, com produtos nossos, um espaço contemporâneo e depois um clássico. E temos o cliente final, que nos segue na Internet, que aparece na feira e que pretende um produto nosso. Não é tanto o ‘preciso de um aparador’, de algo funcional. O que ele quer é uma peça Boca do Lobo.

RM — Como num relógio, compram não tanto por necessidade, mas por impulso. Daí a proposta Boca do Lobo ser intemporal, e, por isso, continuamos a vender todas as peças da coleção. Depende um pouco da comunicação, porque, se calhar, comunicamos menos as peças mais antigas e comunicamos mais as peças recentes — daí as peças mais antigas poderem vender menos hoje. Mas a verdade é que todos os anos vendemos as mesmas peças.

EdT — Uma peça vossa na casa do atual presidente dos EUA, na Trump Tower, seria mais um objetivo ou um desafio? Uma peça vossa encaixava lá?
(Risos) RM — Não, não é um objetivo, embora estejamos perto, porque temos escritórios em Washington. Não é tanto se a peça encaixa na casa, é se ela encaixa na forma de estar, na filosofia de vida de quem compra a peça — e aí não temos limites. Se pegar numa peça e me perguntar se eu gostaria de a ter, eu diria ‘claro que sim’, para qualquer peça eu encontraria enquadramento. Se pegássemos nas peças todas da marca e tivéssemos de pôr tudo numa casa, creio que seria mais forte do que a casa dele, em opulência ou exuberância. Se me pergunta se eu conseguiria viver numa casa assim, eu digo que não. São peças fortes que absorvem muita personalidade, são muito intensas e é difícil abstrairmo-nos desse peso. Isto, com a minha maneira de estar e de como eu gosto da casa.

MC – Se a casa do Trump é o que é, nós temos um cliente em Hong Kong cuja casa é uma coisa absurda.

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