Julie Kraulis

Oriunda de Toronto, Julie Kraulis é uma artista visual especializada no desenho de relógios. A sua crescente fama no meio relojoeiro granjeou-lhe reputados colecionadores e marcas de renome entre a sua clientela. Tem escolhido Portugal para viver durante os rigorosos invernos canadianos e aceitou partilhar com a Espiral do Tempo alguns dos seus segredos… 

Julie a desenhar o Datograph, da A. Lange & Söhne. © Julie Kraulis
| Foto: cortesia Julie Kraulis

Canadiana de nascimento, lituana de ascendência e portuguesa adotiva: pelo segundo ano consecutivo, Julie Kraulis trocou o duro inverno do seu país por um trimestre de temperaturas mais amenas em solo luso — a desenhar detalhadamente relógios e mecanismos, a sua atividade principal e aquela que lhe deu fama no mundo dos relógios. O seu trabalho tornou-se mais conhecido através da conta no Instagram, chamando a atenção de colecionadores e marcas consagradas que entretanto entraram para a sua lista de clientes.   As ilustrações a grafite podem exigir até cerca de 500 horas e 50 diferentes lápis, com um preço que vai dos 5.000 euros até algumas dezenas de milhar de euros. E Julie Kraulis não tem tido mãos a medir, sobretudo nos casos em que é preciso também desenhar o intrincado movimento de relógios dotados de calibres tão complexos como o Datograph, da A. Lange & Söhne, ou tão icónicos como o histórico Calibre 11, da TAG Heuer; a convite do departamento de património da TAG Heuer, desenhou mesmo o movimento do Monaco Pièce d’Art leiloado pela Phillips no passado mês de dezembro, no encerramento das comemorações dos 50 anos do famoso cronógrafo quadrilátero. Adequadamente, o primeiro relógio que a artista canadiana experimentou desenhar foi um… El Primero, da Zenith. O seu relógio preferido é aquele que rapidamente se tornou no ex-líbris da A. Lange & Söhne e que, no ano passado, completou o seu 25.˚ aniversário: o Lange 1 é também o seu único; nunca teve o hábito de usar relógio no pulso, mas adquiriu um em ouro rosa. E, porque é fã de ténis e de Rafael Nadal, espera poder um dia vir a desenhar o Richard Mille do campeoníssimo espanhol.  Essa foi uma das revelações feitas no âmbito de um convívio com os leitores da Espiral do Tempo; aqui ficam mais algumas na entrevista que nos concedeu.  

© Julie Kraulis
| Foto: cortesia Julie Kraulis

Quando sentiu que o gosto pelo desenho se tornaria numa profissão?
Desenhei durante toda a minha vida e saltitei entre os mais diversos tipos de suporte. Fui encorajada a brincar de maneira criativa desde a mais tenra idade e isso nota-se em praticamente tudo o que faço. Consegui o meu diploma em Ilustração e, se era um sonho para mim tornar-me profissional enquanto artista visual, ainda demorou algum tempo e diversos tipos de emprego até me dedicar cem por cento à arte. Sinto-me incrivelmente grata por poder viver o meu sonho. Houve muita esperança e dúvida, muita luta e sacrifício… mas não mudaria nada! Algo de mágico acontece quando eliminamos a cor e desenhamos a preto e branco, o desenho torna-se mais claro. O meu avô era arquiteto e desde pequena que me ficou o seu gosto pelos lápis Staedler, de preferência os Mars Lumograph, usados sobre a maravilhosa textura do papel Archer. 


Quis encontrar um tema diferente para focar a sua arte e subitamente os relógios tornaram-se no principal foco do seu trabalho e na fonte de rendimento. Como é que encara esse facto?
Comecei com os relógios muito por acaso, mas, de certo modo, sinto que foi o destino. Porque há tanta coisa apelativa à volta do tema: no plano abstrato, existe o conceito de tempo e a nossa própria relação com ele; depois há toda a parte visual e os aspetos tangíveis do 
design. Há mais do que motivos que me mantêm curiosa e interessada — acabei apenas de raspar a superfície e continuo a aprender. Tenho a certeza de que a minha série de ilustrações de relógios se vai moldar e adaptar de acordo com a inspiração que vou colhendo. Já estou a começar a pensar numa segunda fase, mais metafórica… 

Julie Kraulis 4
 | Foto: cortesia Julie Kraulis

O que é que a tem impressionado mais no universo relojoeiro?
Seguramente, a paixão, que é contagiante. Fiz grandes amigos na indústria relojoeira, pessoas sem as quais não consigo imaginar a minha vida. Não tinha sequer ideia que um tal mundo existia antes de ter tropeçado no assunto, e tenho adorado sentir essa paixão pela relojoaria um pouco por todo o mundo. Também adoro o facto de haver sempre um relógio para qualquer pessoa, não importando qual a sua origem ou quais os seus gostos específicos. E recordo a minha visita à manufatura da A. Lange & Söhne: foi poderosa a experiência de ver todas aquelas peças e todos os componentes serem fabricados e depois ganharem vida quando em conjunto. A parte do design também é marcante, desde os marcadores das horas até aos ponteiros. 

Quanto tempo em média é requerido para uma das suas ilustrações? Quais foram os seus trabalhos mais fáceis e mais difíceis?
Em média, os desenhos que tenho feito demoram entre 250 e 450 horas. Alguns dos detalhes aparentemente mais simples podem ser incrivelmente complicados, como o dégradé de uma simples luneta redonda. Cada exemplar apresenta os seus próprios desafios: a patina de um relógio vintage, a intrincada mecânica de um calibre ou um mostrador em meteorito a refletir a luz. Estou a aprender continuamente e a melhorar a minha técnica de desenho enquanto vou avançando — adoro lidar com novas texturas e detalhes distintos. O Cartier Tank que desenhei para a edição britânica da GQ terá sido o mais simples, mas foi divertido de fazer. O Datograph da Lange & Söhne tem um movimento muito bonito, mas o Rolex GMT-Master II com mostrador de meteorito que estou atualmente a desenhar é o relógio tecnicamente mais difícil com que já trabalhei. O trabalho começa com um estudo exaustivo sobre o relógio e a história do modelo em questão, de modo a poder eventualmente incorporar outros elementos relacionados com ele na ilustração — até porque a ideia não é a reprodução quase fotográfica. Gosto que haja relógios que estejam relacionados com mundos tão diferentes, desde o desporto à cultura. E também tem sido um desafio aprender a desenhar os diferentes materiais e texturas que lhes estão relacionados. 

© Julie Kraulis
| Foto: cortesia Julie Kraulis

Qual é a impressão geral que tem da indústria relojoeira? Tem havido uma tendência dominante do design neo-rétro e das reedições de modelos históricos… como tem visto essa supremacia do tradicional e convencional diante de relógios de forma e estilo mais moderno ou contemporâneo?
Uma das curiosidades com que sempre me debati foi a perceção do que é que faz com que um design se torne intemporal, seja em que área for. Fascina-me que objetos e estruturas concebidos há décadas continuem a capturar o imaginário das pessoas e originem tantos seguidores. É uma missão extremamente difícil desenhar algo que seja fresco e original, merecedor de um estatuto de culto. Talvez seja por isso que tem prevalecido essa tendência ou talvez porque há alguns relógios especiais que têm uma alma que nunca deixa de nos atrair… 

Qual foi o relógio mais impressionante que lhe passou pelas mãos e na sua relação com clientes ou marcas?
Há tantos relógios incríveis e já trabalhei com uma boa mão-cheia deles, mas, em muitos casos, não posso sequer mencioná-los devido a cláusulas de confidencialidade estabelecidas. O primeiro que desenhei para um cliente foi um Rolex 6200 Big Crown de um colecionador americano. Já colaborei com a TAG Heuer, ilustrando a capa do livro sobre o Autavia e o desenho do Calibre 11 que acompanhou o leilão do Monaco Piece d’Art e do qual foram feitas 60 serigrafias. Participei no evento Lost In Space organizado pela Omega na Tate Modern em Londres. Mas uma marca que para mim se destaca é a A. Lange & Söhne. Senti uma afinidade muito especial com ela desde o início, os seus relógios e nível de acabamento tanto interior como exterior sempre me atraíram; também acho muito marcantes a força e a sinergia da sua visão e identidade. 

© Julie Kraulis
| Foto: Julie Kraulis

Porque escolheu Portugal e o que a fez regressar para uma segunda temporada no nosso país?
Optei por Portugal por ser um país que nunca tinha visitado, e quis explorar novas paragens. Como a intenção era escapar ao hostil inverno canadiano, o meu critério prendia-se com um local quente, ensolarado e pitoresco… perto do oceano e com belas paisagens. Tenho gostado muito de descobrir as zonas costeiras mais selvagens, com vistas incríveis. Recentemente, explorei a costa e as praias acima do cabo da Roca, tal como as do Parque Nacional da Arrábida. Ainda não conheço propriamente a parte mais a norte e a zona sul de Portugal, mas estão na minha lista e vou visitar em breve o Porto. É um país muito pequeno na sua dimensão, mas de uma diversidade muito bonita, que varia de região para região. Também vou gostar de explorar algumas pequenas vilas de charme que me têm recomendado visitar, como Óbidos ou a Ericeira. Outra coisa que tenho de realçar é a luz de Lisboa; nunca encontrei uma luz tão única e fascinante! 

 Versão completa da entrevista publicada no número 70 da Espiral do Tempo.

 

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