Nick Uricchio: shape and surf

O que têm em comum a construção de pranchas de surf e a relojoaria mecânica? Entre outras coisas, a inevitabilidade do trabalho manual e o tempo, longo, de aprendizagem do metiér. Ficámos a sabê-lo com um velho lobo do mar, reconhecido como um dos melhores shapers mundiais, pioneiro do surf em Portugal, criador da marca Semente, apaixonado pelo nosso país, pelos portugueses e pelo mar português – o amigo americano Nick Uricchio. Ah, e exportador de pranchas de surf para a Suíça… É obra, convenhamos!

Nasceu naquela que é considerada a capital mundial das empresas de seguros, Hartford, Connecticut, EUA. Vir para Portugal em 1979 para se dedicar ao surf não parece a atitude mais lógica para quem tem essa origem.
(risos) Portugal tem segurança que chegue, mas, sim, foi um salto, não para o abismo, mas para uma coisa incerta. Eu procurava essa insegurança no sentido da liberdade, e Portugal era um país para descobrir a muitos níveis. Mesmo em relação ao surf era tudo novo. E eu também só vivi no Connecticut até aos dez anos. Depois, mudei-me para a Califórnia.

Nick Uricchio
Shape – forma; Shaper – aquele que dá forma (termo usado no mundo do surf para aqueles que desenham e constroem as pranchas). © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

O que é que o seduziu e fez ficar em Portugal?
Portugal era muito diferente. Toda a gente deixava a chave na porta, as pessoas eram, e são, supersimpáticas. Eu cheguei à gringo, com a mochila às costas. Andava a viajar pela Europa num Interrail e a última paragem que fiz foi em Portugal. As pessoas foram superquentes. Convidavam-me para casa delas, para jantar, para ficar. E encontrei surfistas, a primeira geração dos surfistas de cá. Tive muita sorte, foi uma altura fantástica. Acho que há muitas coisas na vida que têm que ver com sorte e eu tive a sorte, não de encontrar mas de cair em Portugal naquela altura.

Muitas coisas mudaram em Portugal desde que chegou. O que é que não mudou?
A comida, a hospitalidade das pessoas, o facto de, a nível político e de segurança, estarmos num país hipertranquilo — isso são coisas que não mudaram, que continuam iguais.

Nick Uricchio
Nick Uricchio na sua oficina em Ribamar. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo 

E o mar, mudou?
O mar continua como naquela altura, só que temos mais gente e isso tem um lado negativo e outro positivo. Positivo para o lado do negócio, negativo para o lado do lifestyle. O mar está igual, mas há zonas que mudaram. Quando eu cheguei, Carcavelos era uma das melhores praias. Havia lá uma onda que levantava junto ao forte da Torre e que era uma onda incrível. Mudou, penso, por fatores estruturais com as alterações nos pontões, com a Marina. Mas aqui nesta zona atlântica continua na mesma. A costa brava continua em grande.

E na produção de pranchas, o que mudou?
Mudou muita coisa. Há mais materiais, os blocos que usávamos antigamente eram muito diferentes. Hoje em dia, são muito superiores os acabamento dos blocos e as técnicas de acabamento das pranchas. Tudo é muito diferente. Na altura, era tudo manual, enquanto hoje, para o shape, ou seja, para o corte da prancha, já toda a gente usa programas de computador e máquinas para cortar os blocos.

Nick Uricchio
Vários nomes do surf mundial que usam pranchas Semente fazem questão de deixar a sua dedicatória como sinal de amizade e respeito pelo trabalho de Nick Uricchio. Nas folhas arquivadas que vemos ao centro está toda a informação das pranchas criadas pelo americano. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo 

Como é feita a aprendizagem de um shaper? Aprende-se em livros, na Internet?
Na Internet, pode-se ver qual é a filosofia por detrás do shape, como é que se faz, mais ou menos, mas tens de praticar, de fazer pranchas.

É, portanto, um saber transmitido oralmente?
Aprende-se com os outros, sim, e a bater com a cabeça contra a parede. Para melhorar, são precisos muitos anos de tentativa e erro. E, dantes, era tudo feito à mão. Hoje, o design da prancha faz-se no computador, mas devido ao conhecimento que adquiri pelo tempo todo que trabalhei à mão, já sei o que é que eu quero ver no computador. Eu e todos os que fizeram pranchas dessa forma. Eu fiz pranchas à mão durante 25 anos e uso o computador e a máquina para cortar há 14 anos. Nós que fizemos este percurso tiramos melhor proveito da tecnologia. Mas, hoje, um rapaz pode comprar um programa, comprar um pre-shape feito por outro tipo qualquer e fazer o resto. Agora, se depois me perguntares porque é a que a prancha não trabalha, eu explicar-te-ei porquê. Aí é que está a chave desses anos todos de trabalho manual.

Nick Uricchio
Apesar de, atualmente, grande parte do trabalho de base de um prancha ser feito industrialmente ainda são a experiência e as mãos do shaper que ditam a forma da qual resulta a fluidez final. © Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Sendo o surf uma atividade com tantas referências à ecologia e à limpeza dos oceanos, os produtos de surf estão mais ecológicos?
Há muita consciência de que há muitos produtos tóxicos envolvidos na produção de uma prancha. Há mais desenvolvimento, há produtos mais amigos do ambiente. Está a haver uma mudança, mas os blocos alternativos que têm sido feitos são blocos muito amarelos, coisa que ninguém compra. A indústria ainda não deu a volta para o lado ecológico. Sempre foi uma contradição nossa. Temos a relação com o mar, mas até os próprios fatos são feitos de materiais pouco amigos do ambiente.

Leia a entrevista completa no número 63 da Espiral do Tempo (edição de verão 2018), já nas bancas.

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