A 23.ª edição do Grand Prix d’Horlogerie de Genève (GPGH 2023) teve por grande vencedor a Audemars Piguet e como protagonista o seu CEO cessante François-Henry Bennahmias — pelo relógio, pelo discurso e pelo… beijo. Mas as marcas de Val de Travers continuam a acumular galardões, Adam Clayton (dos U2) deu-nos uma entrevista exclusiva e há muitos outros destaques a assinalar.
O Grand Prix d’Horlogerie de Genève voltou a assumir-se como o principal evento do mundo da relojoaria pelo seu peso institucional, pela cerimónia, pelo simbolismo e mesmo pelo ecletismo. É evidente que há marcas incontornáveis no ecossistema relojoeiro que escolhem não participar por razões distintas que vão desde um eventual receio de não ganhar (várias deixaram de competir após falharem vitórias) até ao aparente desinteresse (algumas delas nunca se inscreveram), mas esse facto acaba por não retirar importância ao certame — e uma significativa parte dos protagonistas da indústria marcou presença entre os cerca de 1.300 espetadores que lotaram o Thèâtre du Léman, localizado na zona do Quai de Montblanc e que substituiu o Grand Théâtre como palco do evento desde 2015.
Obviamente que tão relevante acontecimento envolvendo tantas personalidades acaba sempre por gerar múltiplos focos de interesse e anedotas paralelas que complementam a lista de vencedores. Aqui ficam alguns apontamentos de reportagem entre a cerimónia propriamente dita e o jantar de gala que se lhe seguiu:
De Cinderelo a campeão dos campeões
O Code 11.59 foi lançado com grande pompa e circunstância pela Audemars Piguet em 2019, recebendo então duríssimas críticas na imprensa e no universo digital… gerando mesmo o cognome Code Cinderelo pelo facto de se ter transformado em abóbora à meia-noite (11.59 é uma referência às 23h59). Mas a histórica manufatura de Le Brassus soube ver o que estava mal, reviu pormenores estéticos e canalizou toda a sua competência técnica para dotar a linha de modelos extraordinariamente complexos. Como o Ultra-Complication Universelle RD#4, que acabou por recolher a Aiguille d’Or — ou seja, o Grand Prix, vencedor de todas as categorias. Menção de honra para a Piaget, a única marca a somar dois prémios este ano.
It´s a beautiful day…
É prática da organização do GPHG convidar uma estrela de outras paragens que seja reconhecidamente aficionado da relojoaria para integrar o júri. Como Gael Monfils, o carismático tenista francês que até foi jurado em dois anos consecutivos; Eric Singer, baterista dos Kiss; e Adam Clayton, baixista dos U2. Adam Clayton gostou tanto da experiência que, mesmo sem fazer parte do júri em 2023 e no meio da série de concertos do grupo em Las Vegas, quis voltar à cerimónia e concedeu uma pequena entrevista exclusiva à Espiral do Tempo, em parceria com a jornalista Elizabeth Doerr.
«Voltei porque quis apreciar calmamente a cerimónia por fora e reencontrar muitos dos amigos que fiz aqui. Gosto deste ambiente. Por vezes fala-se demasiado no custo de determinadas peças e não no muito trabalho que é necessário para as fazer», sublinhou. E acrescentou: «Os vencedores deste ano não foram propriamente as escolhas mais óbvias», aludindo à emergência de pequenas marcas independentes e a algumas surpresas na lista dos galardoados. O relógio escolhido pelo baixista dos U2 num ‘Beautiful Day’ (para relembrar um dos êxitos da banda) em Genebra concluído com uma bela soirée relojoeira? O excelente Streamliner Matrix Green da H. Moser & Cie., escolha que Edouard Meylan, patrão do grupo que integra também a Hautlence (que ganhou o galardão da Inovação com o Sphere Series 1) e a Precision Engineering, gostou de saber.
Val de Travers em grande
Se o Grand Prix foi para a Audemars Piguet (de Le Brassus, na Vallée de Joux), três marcas de Val de Travers voltaram a ser premiadas e tornaram essa região helvética na mais galardoada por metro quadrado. Ao vencer a categoria da Complicação Masculina com o novo World Timer com caixa de forma, o mestre Kari Voutilainen — que tem o seu quartel-geral instalado no topo do monte conhecido como Chapéu de Napoleão com vista sobre o vale — recolheu um décimo troféu no concurso.
Karl-Friedrich Scheufele recebeu o prémio de Cronometria para o Chronomètre SB 3SPC da Ferdinand Berthoud, marca que ‘reside’ na manufatura da irmã mais velha Chopard, localizada em Fleurier; juntas, já recolheram um total de dez estatuetas. Pascal Raffy recebeu o prémio Calendário e Astronomia pelo Récital 20 Astérium, o quarto galardão para a sua Bovet (localizada em Môtiers). E a Parmigiani Fleurier também contribui para a contabilidade com três troféus ganhos anteriormente!
Ósculo de despedida
No discurso de vitória, François-Henry Bennahmias emocionou-se e relembrou estar a seis semanas da ‘reforma’; recordou 29 anos ao serviço da Audemars Piguet e foi extremamente elogioso para com Ilaria Resta — a sua sucessora no cargo de CEO da manufatura de Le Brassus, que estava na assistência e que por sua vez também se emocionou. Mas o momento mais marcante da cerimónia acabou por não ter a ver diretamente com o concurso: para ‘premiar’ o comediante Edouard Baer por tantos anos de apresentação do GPHG, François-Henry Bennahmias deu-lhe um longo ósculo… na boca. Já se sabia que gostava de teatralidade e protagonismo, pelo que o tão falado beijo de despedida acaba por não ser tão surpreendente. E nem sequer escandalizou a esmagadora maioria dos espetadores presentes no Théâtre du Léman, que riram a bom rir.
Max visionário
Numa visita à MAD House na manhã do certame, Max Büsser — que, por ter ganho o Grand Prix com a MB&F em 2022, ficou automaticamente membro do júri em 2023 sem poder concorrer com qualquer modelo da sua marca — confessou-nos ter ficado agradavelmente surpreendido com a qualidade dos modelos de duas marcas candidatas nas categorias dos relógios mais acessíveis e que não têm constado das habituais pré-seleções do GPHG: a Raymond Weil e a Christopher Ward. O certo é que, na abertura dos envelopes, a Raymond Weil ganhou a categoria Challenge (preço até 2.000 euros) com o seu Millésime Small Seconds e a Christopher Ward tornou-se na primeira marca britânica galardoada ao impor-se na categoria Petite Aiguille (até 10.000 euros) com o C1 Bel Canto de repetidor acústico.
Para finalizar: para além de, na condição de vencedor em 2022, ter entregue o Grand Prix ao seu sucessor, Max Büsser foi também destacado por Arnaud Nicolas quando recebeu o prémio do Relógio Mecânico de Mesa pelo ‘automobilístico’ Time Fast II Chrome. A L’Épee tinha perdido a sua relevância até que, a partir de 2014, Max Büsser contactou a histórica marca para concretizar algumas das suas folias relojoeiras em forma de robots, animais marinhos ou naves espaciais. A partir desse ‘Toque de Midas’, nada mais foi o mesmo para a companhia fundada em 1839…
Foi de mota
O intenso trânsito de fim de tarde à entrada e saída de Genebra causa normalmente muitos problemas, mas esteve mesmo infernal no dia do GPHG — tanto que a Espiral do Tempo, saindo da manufatura Jaeger-LeCoultre, na Vallée de Joux, às 15h30, só conseguiu entrar no Théâtre du Léman quando já estava praticamente toda a gente lá dentro.
Também houve alguém nas mesmas circunstâncias, mas tratava-se de um dos protagonistas da noite e teve de recorrer a um incrível subterfúgio para poder estar presente: Pascal Raffy, o dono da Bovet, que até recebeu uma quarta estatueta do GPHG ao vencer a categoria de Calendário e Astronomia com o seu Récital 20 Astérium. Preso no tráfego e ainda longe de Genebra, telefonou para a conciergerie do Hotel La Réserve e perguntou qual a solução para o problema — o hotel enviou alguém com uma potente mota e foi sobre duas rodas que Pascal Raffy, mais habituado a Rolls Royce e carros de semelhante gabarito, chegou em cima da hora. A história foi contada pelo próprio Pascal Raffy, que foi o anfitrião da Espiral do Tempo na mesa do jantar de gala que se seguiu à cerimónia (as marcas mais relevantes normalmente reservam mesa e convidam os jornalistas mais representativos, líderes de opinião e os seus executivos de topo).
Outsiders muito In
A maior ovação da noite — uma emocionante standing ovation — nem foi para o vencedor do Grand Prix ou mesmo para o beijo de despedida de François-Henry Bennahmias. Foi para dois ‘velhos mestres’ de 80 anos: Vincent Calabrese e Svend Andersen, que nem são suíços mas que tanto fizeram pela indústria relojoeira helvética — não só pela sua genialidade intrínseca, mas também por terem fundado a Academie des Horlogers et Créateurs Indépendants (AHCI), que tanto contribuiu para o restabelecimento da relojoaria mecânica tradicional numa era em que o quartzo ainda asfixiava a indústria suíça e que lançou alguns dos maiores vultos da relojoaria contemporânea (de François-Paul Journe a Konstantin Chaykin, passando por George Daniels, Philippe Dufour, Franck Muller e Kari Voutilainen).
O dinamarquês Svend Andersen, muito conhecido pelas suas complicações eróticas, teve algumas dificuldades em concluir o discurso devido à emoção; o italiano Vincent Calabrese, autor do Golden Bridge da Corum, confessou mesmo ter-se perguntado várias vezes quando é que finalmente receberia um prémio no GPHG. Foi este ano, mas a a AHCI (fundada em 1985 e que atualmente inclui 34 membros e dois candidatos de 16 diferentes países) já tinha sido galardoada em 2010.
Justiça poética
No momento da fotografia oficial com os vencedores e os elementos do júri, viu-se uma curiosa troca de palavras entre François-Henry Bennahmias e Kristian Haagen. Numa apresentação da Audemars Piguet no antigo Salon International de la Haute Horlogerie em 2018, e num dos seus assomos de teatralidade, o CEO da manufatura de Le Brassus pegou no telemóvel do jornalista dinamarquês e atirou-o contra a parede do outro lado da sala, partindo-o — e Kristian Haagen ficou tão indignado que vendeu todos os seus relógios Audemars Piguet. O irónico da conversa antes da fotografia da praxe: o fotógrafo oficial, do alto do seu escadote, pediu aos membros do júri que fossem para trás, dando primazia aos galardoados e com François-Henry Bennahmias ao centro com o troféu. Mas, com a conversa, François-Henry Bennahmias e Kristian Haagen não ouviram a sugestão e acabou por ser o jornalista a ficar em primeiro plano na imagem…
Audácia sem beijo
O prémio da Audácia foi para o relógio de mesa Persée Azur da Maison Alcée, graças ao conceito de ‘faça você mesmo’ que proporciona ao comprador a montagem do modelo em questão. Alcée e Benoît Monfort foram receber em casal o galardão, com o marido a confessar o seu amor: «este galardão vem premiar o teu caráter, a tua visão e a tua audácia… amo-te!». Mas, ao contrário de outros casais galardoados no passado (Richard e Maria Habring, novamente nomeados este ano pelo Habring2 Chrono-Felix Top 2; Stefan e Eva Kudoke; Daniel e Maria Reintjes pela Christian van der Klaauw), não ouve qualquer beijo a marcar o projeto conjugal. O único ósculo deste ano aconteceria mais tarde, de maneira completamente inesperada, e entre dois amigos…
Nona sinfonia
A sister company Rolex — que é indubitavelmente a maior potência do universo relojoeiro — nunca participou no GPHG, mas a Tudor tem brilhado intensamente desde a renovação da marca em 2010: com o triunfo na categoria Desporto, ganhou um nono galardão na última dúzia de anos graças ao Pelagos de 39mm, muito apreciado pelos aficionados de relógios de mergulho de diâmetros mais contidos (como o são também os Black Bay de 39mm e 37mm). Alguém chegou mesmo a dizer, durante o jantar de gala e de maneira humorada, que «há três coisas inevitáveis na vida: os impostos, a morte e a Tudor ganhar um prémio no GPHG».
O nome mais bizarro
Paradoxo? O relógio vencedor do prémio da Complicação Feminina inclui o termo ‘Monsieur’ no nome: trata-se do Grand Soir Automate Etoile de Monsieur Dior, da Dior. Sabe-se que existe um movimento promovido por algumas protagonistas femininas (jornalistas, sobretudo) nos bastidores para abolir a catalogação de relógios ou linhas por género, mas não há dúvida de que a nomenclatura do modelo da maison francesa acaba por surpreender. Já agora: Lan Cittadini Cesi, diretora global de joalharia e relojoaria da Dior, foi autora de um dos melhores discursos da noite.
Tudo em família
Houve três especiais menções familiares nos vários discursos da noite: Elie Bernheim recordou naturalmente o seu avô (materno) Raymond Weil, fundador da marca com o mesmo nome que surpreendeu muito boa gente ao triunfar na categoria Challenge; Daniela Dufour, a jovem relojoeira que integrou o júri deste ano, disse ao pai (o lendário mestre Philippe Dufour, presente na assistência) que tinha o nó da sua gravata mal feito aquando da apresentação do seu prémio; e François-Henry Bennahmias mencionou Jasmine Audemars como sua ´mãe relojoeira’ no discurso final após receber o Grand Prix.
Nova geração
As jovens marcas Simon Brette (Revelação) e Peterman Bédat (Cronógrafo) saíram cada qual com um galardão e representam uma lufada de ar fresco na indústria, oferecendo uma nova interpretação da relojoaria clássica. O Chronomètre Artisans de Simon Brette — que chegou a trabalhar na MB&F — é um relógio de subscrição e não só alberga um mecanismo sofisticado como apresenta um notável mosaico decorativo Écailles de Dragon no mostrador; «é o relógio dos meus sonhos», confessou no seu discurso. Já o Chronographe Rattrapante Ref. 2941 idealizado pelos amigos Gaël Petermann e Florian Bédat, que depois de partilharem mesa na Escola de Relojoaria de Genebra fizeram um estágio juntos na A. Lange & Söhne e já tinham ganho anteriormente um troféu no GPHG, apresenta um conjunto de 339 componentes num notável calibre cronográfico de acionamento monupulsante.
Jogo de cadeiras
Diz-se insistentemente nos bastidores que Jean-Christophe Babin se vai reformar e que Fredéric Arnault, atual CEO da TAG Heuer, o vai substituir ao comando da Bulgari — e que Julien Tornare, atualmente responsável da Zenith, passará para a TAG Heuer. No possível jogo de cadeiras no polo relojoeiro do grupo LVMH liderado por Bernard Arnault resta saber quem assumirá os destinos da Zenith, a serem confirmados os rumores.
Contactado diretamente pela Espiral do Tempo para comentar a situação, Julien Tornare respondeu humoradamente: «Não acreditem em tudo o que se diz». De qualquer das formas, um dos fotógrafos oficiais do GPHG capturou um curioso momento de partilha entre Jean-Christophe Babin (que antes de ir para a Bulgari foi um excelente líder da TAG Heuer até ao início da década passada) e Fredéric Arnault. Por sua vez, o irmão Jean Arnault parece bem seguro à frente da relojoaria da Louis Vuitton — o lançamento do novo Tambour foi um estrondoso sucesso — e tem desenvolvido da melhor maneira o projeto La Fabrique du Temps, que envolve as marcas fundadas pelos mestres Daniel Roth e Gerald Genta.
Lisa dos galardoados
Lista completa dos prémios distribuídos na noite da cerimónia:
Grand Prix ‘Aiguille d’Or’: Audemars Piguet, Code 11.59 Ultra-Complication Universelle RD#4
Inovação: Hautlence, Sphere Series 1
Audácia: Maison Alcée, Persée Azur
Cronometria: Ferdinand Berthoud, Chronomètre FB 3SPC
Revelação: Simon Brette, Chronomètre Artisans
Senhora: Piaget, Hidden Treasures
Complicação Feminina: Dior Montres, Grand Soir Automate Etoile de Monsieur Dior
Complicação Masculina: Voutilainen, World Timer
Modelo Icónico: Ulysse Nardin, Freak One
Turbilhão: Laurent Ferrier, Grand Sport Tourbillon Pursuit
Calendário e Astronomia: Bovet 1822, Récital 20 Astérium
Cronógrafo: Petermann Bédat, Chronographe Rattrapante
Desportivo: Tudor, Pelagos 39
Joalharia: Bulgari, Serpenti Cleopatra
Artes Artesanais: Piaget, Altiplano Métiers d’Art Undulata
‘Petite Aiguille’: Christopher Ward London, C1 Bel Canto
Challenge: Raymond Weil, Millésime Automatic Small Seconds
Relógio de Mesa: L’Epée 1839, Time Fast II Chrome
Prémio Especial do Júri: Svend Andersen e Vincent Calabrese