Relógios e cinema: horas certas em Hollywood

Em Hollywood, brilham, há muitas décadas, os relógios. Os atores não dispensam de os ostentar, como elementos de distinção ou de utilidade, nos seus pulsos. Essa ligação ajuda-nos, também, a perceber como é que o quartzo chegou a ameaçar a hegemonia dos relógios mecânicos, ou porque é que alguns modelos se tornaram ícones valiosos. No mundo da Sétima Arte, há um capítulo muito especial ‘realizado’ pelas artes relojoeiras.

Imagem acima:
De cima para baixo:
1. Sean Connery, enquanto James Bond, usou um Rolex Submariner em Dr. No (1962).
2. Ryan Gosling interpreta Neil Armstrong em First Man (2018), no qual usa um Omega Speedmaster.
3. No filme Blood Diamond (2006), Leonardo DiCaprio usa um Breitling Chrono Avenger.

Numa das grandes cenas de Regresso ao Futuro, Doc Brown amaldiçoa Marty McFly por este estar atrasado. Olha para o relógio de torre, depois para o relógio que tem no pulso esquerdo, a seguir para o relógio de bolso e, finalmente, para o relógio do pulso direito. Irrita-se. O tempo é tudo em Regresso ao Futuro, e as emoções variam por causa dele. Quase todos os personagens do filme passam a vida a olhar para os seus relógios para ver que horas são. No início, Marty tem um relógio, mas guia-se sobretudo pela larga coleção dos que Doc tem — e todos eles indicam que ainda não são oito da manhã. Contudo, quando olha para o seu relógio apercebe-se de que os outros estão 25 minutos atrasados. Corre-se, durante o filme, contra o tempo. Todos os relógios que vemos servem para percebermos que horas são. Compreende-se: este é um filme sobre o tempo e sobre a sua conquista, sobre a relação do mundo da ficção com a realidade e sobre a relação de Hollywood com o mundo da relojoaria.

O filme traz-nos muitos motivos para refletir sobre o mundo da relojoaria. Enquanto tenta driblar as leis do tempo, Marty tem, no pulso, um Casio CA53-W — um símbolo perfeito da década de 1980. Nessa altura, os relógios de quartzo pareciam estar a tornar os relógios mecânicos rapidamente obsoletos. Baratos, os primeiros tornaram-se uma moda nos Estados Unidos. A popularidade do quartzo começara durante a guerra do Vietname, quando os soldados americanos encontravam relógios Seiko a preços sedutores nas lojas BX, existentes nas bases militares, ou no Japão e na Tailândia, onde iam quando estavam de folga. Não é por acaso que Martin Sheen, que interpreta o capitão Ben Willard, que procura Kurtz (Marlon Brando) em Apocalypse Now, usa um Seiko 6105 — um favorito dos soldados americanos dessa altura. Contudo, quando estes soldados regressaram aos EUA, perceberam que não havia baterias para manter esses relógios a funcionar. Às importações de baterias, sucederam-se as de relógios de quartzo, o que expandiu o mercado. E à boleia da Seiko, a Casio criou o seu próprio mundo. O relógio de Marty permite-nos ler melhor a grande guerrilha entre modelos de relógios caraterística dessa época de transição.

A crise do quartzo tornou-se evidente no filme Live and Let Die (de 1973), quando James Bond, junto à sua Bond Girl, vê que horas são, pressionando um botão que ilumina o seu Hamilton Pulsar. Este Pulsar foi o primeiro relógio a integrar um dispositivo digital eletrónico. E tornou-se um sucesso. O então presidente Gerald Ford utilizou um e a Casio, especialista em calculadoras, percebeu o mercado criado pelo interesse dos soldados regressados do Vietname e entrou no jogo, avançando com relógios extremamente baratos. Muita da guerra entre o mundo dos relógios mecânicos e os de quartzo fez-se, defronte dos nossos olhos, na Sétima Arte.

Em Live and Let Die, James Bond (Roger Moore) clica no botão do Hamilton Pulsar P2 2900 LED para mostrar as horas. (Imagens com direitos reservados; Live and Let Die 1973)
Em Live and Let Die, James Bond (Roger Moore) clica no botão do Hamilton Pulsar P2 2900 LED para mostrar as horas. (Imagens com direitos reservados; Live and Let Die 1973)

As aventuras de James Bond/007 são um excelente exemplo desta relação de amor entre os relógios e o cinema. A primeira novela sobre 007, escrita por Ian Fleming, foi Casino Royale. Aqui, o agente é, desde logo, caraterizado pelo seu bom gosto, dos automóveis às roupas. Já o seu relógio só é identificado na segunda novela, Live and Let Die, de 1954: Bond usa um Rolex, o que não admira, já que Fleming tinha um Rolex Explorer Ref. 1016.

Esta paixão pelos Rolex reflete-se no primeiro filme da série, em que Sean Connery ostenta um Rolex Submariner enquanto persegue o misterioso Dr. No, que dá nome ao filme. No segundo filme, From Russia With Love, Bond mantém-se fiel à Rolex, com um Submariner Ref. 6538, que não está, ainda, equipado com uma nenhuma das invenções de Q. A mesma referência é usada em Goldfinger, embora Pussy Galore utilize um Rolex GMT Master, Ref. 6542. Curiosamente, em Thunderball, Bond tem um Rolex Submariner e um Breitling Top Time modificado. Nos anos seguintes a forte ligação à Rolex manteve-se — em Her Majesty’s Secret Service, com George Lazenby, ou Live and Let Die, com Roger Moore. E é neste último filme que se inicia a era de ligação aos relógios digitais: em Live and Let Die Moore usa o Pulsar da Hamilton e em The Spy Who Loved Me tem um Rolex GMT Master, mas também um Seiko 0674 LC. Em Moonraker (de 1979) Bond tem um Seiko M354 Memory Bank Calendar, em For Your Eyes Only tem um Seiko 7549-7009 e um Seiko H357 Duo Display e, em Octopussy, um Seiko TV Watch. Em 1985, com A View to a Kill, Bond ainda está rendido ao digital: tem três Seiko, incluindo um Diver’s 150M, mas volta a usar um relógio Rolex. A chegada de Timothy Dalton ao papel de 007 trouxe um TAG Heuer Professional Night-Dive Ref. 980.031, em The Living Daylights. Logo a seguir, em License to Kill, usa um Rolex Submariner. Em 1995 há uma nova mudança, em GoldenEye, com Pierce Brosnan: Bond usa um Omega Seamaster Professional 300M. Outras referências do Seamaster surgem em Tomorrow Never Dies, The World Is Not Enough e Die Another Day. Na primeira apresentação de Daniel Craig como 007, em Casino Royale, o ator tem ao seu dispor um Omega Seamaster Diver 300M (Ref. 2220.80) e um Seamaster Planet Ocean (Ref. 2900.50.91). Para resistir a grandes pressões, em Quantum of Solace, Craig usa um Omega Seamaster Planet Ocean 600M (Ref. 2201.50) e em Skyfall tem vários, incluindo um Seamaster Planet Ocean 600M com caixa de titânio. Já em Spectre, Craig tem um Omega Seamaster 300 Spectre e um Omega Seamaster Aqua Terra, na sequência de abertura.

A Jaeger-LeCoultre chegou a lançar uma edição especial do Reverso, o seu relógio de duas caras, no âmbito do filme The Dark Knight Rises. © Jaeger-LeCoultre
A Jaeger-LeCoultre chegou a lançar uma edição especial do Reverso, o seu relógio de duas caras, no âmbito do filme The Dark Knight Rises | © Jaeger-LeCoultre

Mas não deixa de ser curioso pensarmos que, em 1990, Warren Beatty dirigiu e interpretou o filme Dick Tracy, baseado no popular comics da década de 30. O realizador recupera o detetive criado por Chester Gould que, nesses tempos da Grande Depressão económica e social, falava através de um relógio que funcionava como rádio — o que se tornou numa imagem icónica de Tracy. Esta foi, no universo da ficção e da banda desenhada, uma das primeiras visões do que viria a ser, tantas décadas depois, o smartwatch.

Também Batman, vindo do mundo da banda desenhada, tem uma forte ligação ao mundo dos relógios e, desde logo, à Jaeger-LeCoultre. Val Kilmer usa um Reverso em Batman Forever, de 1995, que serve para ilustrar, de forma metafórica, a dupla personalidade do ‘homem-morcego’. Depois, na trilogia que interpretou, Christian Bale solidificou essa relação. A Jaeger-LeCoultre criou mesmo uma edição especial do Grande Reverso Ultra Thin Tribute to 1931, com o símbolo de Batman em negro, para Bale usar em The Dark Night Rises. Quebrando essa tradição, Ben Affleck usa um Breguet Tradition Fusee Tourbillon 7047PT em platina, em Batman vs. Superman, de 2016.

Este ano, o filme Apocalypse Now celebra quatro décadas e um dos seus ‘símbolos relojoeiros’ vai ser leiloado pela Philipps a 10 de dezembro deste ano. Em causa está o Rolex GMT-Master sem luneta que Marlon Brando usou no filme enquanto coronel Walter E. Kurtz. © Mary Ellen Mark
Este ano, o filme Apocalypse Now celebra quatro décadas e um dos seus ‘símbolos relojoeiros’ vai ser leiloado pela Philipps a 10 de dezembro deste ano. Em causa está o Rolex GMT-Master sem luneta que Marlon Brando usou no filme enquanto coronel Walter E. Kurtz | © Mary Ellen Mark

Esta ligação, fomentada por Hollywood, nunca acaba. Tom Hanks usa um Omega Speedmaster em Apollo 13, o que não é um acaso. O relógio salvou a vida de todos a bordo da falhada missão lunar, a 20 de julho de 1969, e na qual o filme se baseia. Hanks usa um Speedmaster, recriando a incompleta viagem de Jim Lovell a bordo da Apollo 13, durante o acidente que levou a abortar a descida para a Lua. A história tornou-se lendária: o relógio que era usado por Jack Swigert quando a nave perdeu potência, e foi usado para cronometrar o curto espaço de tempo disponível para fazer ajustamentos e trazer a nave de volta à Terra. O Speedmaster foi visto de novo no ano passado no filme First Man, quando Ryan Gosling fez o papel de Neil Armstrong. Outro relógio clássico que surgiu no cinema foi o Rolex GMT Master usado pelo coronel Kurtz (Marlon Brando) em Apocalypse Now, que reapareceu recentemente e que irá a leilão em dezembro. Clássico é, também, o TAG Heuer Monaco usado por Steve McQueen no filme Le Mans, em 1971.

Em The Expendables, de 2010, Sylvester Stallone usa um Panerai PAM 332. Esta era a sequência lógica depois do que acontecera em 1995, quando Stallone comprou um Luminor em Roma para usar no filme Daylight e colocou a Panerai no mapa do cinema. Desde então, Stallone tornou-se um colecionador de relógios Panerai. No segundo filme da série, de 2012, quer Stallone quer Jason Statham usam um Panerai PAM 382 Luminor Submersible 1950 3 Days Automatic de 47 mm. Já no terceiro filme da saga, Stallone usa um Richard Mille RM 032. Em Diamantes de Sangue, de 2006, e apesar do ator estar associado à TAG Heuer, Leonardo DiCaprio usa um Breitling Chrono Avenger, com 44 mm de diâmetro. Em Argo, de 2012, Ben Affleck usa um Rolex Deepsea Sea-Dweller, e em Homem-Aranha, de 2017, Robert Downey Jr. mostra um Urwerk UR-110 RG. Importa salientar que Downey Jr. é um grande fã de relógios, tendo na sua coleção vários relógios, desde um Jaeger-LeCoultre AMVOX3 Tourbillon GMT (usado em Iron Man 2), a um Omega Speedmaster Moon Professional, um Rolex GMT Master II ‘Ghost’ e a um Bell & Ross BR 01-94 Titanium Orange. Se seguirmos filmes ainda mais recentes, notaremos como Tom Hardy usa um Omega CK2129 em Dunkirk, cuja ação se passa em maio de 1940 (e recorde-se que a Omega forneceu mais de 110 mil relógios aos soldados da Grã-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo o modelo usado por Hardy). Em Men in Black, Will Smith e Tommy Lee Jones mostram os seus Hamilton Ventura XXL, um relógio muito reverenciado por Elvis Presley. Também a Oris tem alguns dos seus modelos presentes em filmes como Parque Jurássico 3, 8MM ou Magnólia.

Em 2019 Keira Knightley, tornou-se o rosto do novo Chanel J12. © Chanel
Em 2019 Keira Knightley, tornou-se o rosto do novo Chanel J12 | © Chanel

Mas um dos atores que mais simbolismo transmitiu do universo relojoeiro para Hollywood foi Charlie Chaplin (Charlot). Em The Pawnshop, de 1916, Charlot é um empregado de uma loja de penhores e, numa das cenas, desmonta um relógio de alarme, para desespero do dono. Não deixa de ser curioso a sua relação com a tecnologia. Para Modern Times, Chaplin inspirou-se no seu olhar sobre a miséria que a Grande Depressão deixara na Europa, mas também numa conversa com Mahatma Gandhi em que este adversário da tecnologia defende que esta afasta as pessoas do trabalho e arruína vidas. Mas, em Modern Times, Charlot fez também o que se considerou ser o primeiro ‘ballet mecânico’, num momento fascinante que nos conduz ao mundo da relojoaria e da ligação entre as peças que fazem avançar o tempo. Ao longo da sua pouco comum carreira, Chaplin foi proprietário de dois relógios pouco habituais: um Rolex Oyster para canhotos e um IWC pink gold. O primeiro foi vendido por 51.250 dólares, num leilão em 2013, e o segundo foi também vendido. A Jaeger-LeCoultre tornou-se parceira do mundo de Charlot, apoiando um museu dedicado à sua obra — o Chaplin’s World, em Manoir de Ban —, onde se retratam os seus últimos 25 anos de vida do ator, passados na Suíça. Em 1953, quando foi viver para a Suíça, as autoridades do Cantão ofereceram-lhe um Jaeger-LeCoultre Memovox com uma caixa de ouro onde se lia: «Hommage du gouvernement Vaudois à Charlie Chaplin – 6 Octobre 1953».

Nos velhos tempos, antes do product placement ser uma prática lucrativa, eram, muitas vezes, os atores que decidiam que relógios usar. Com o tempo, os acordos que os estabelecem como embaixadores de marcas, as estreias de filmes e as cerimónias de atribuições de prémios (a que se junta a publicidade) fizeram desta uma ligação muito profissional. Muitos atores até se tornaram grandes colecionadores. Brad Pitt, que foi embaixador da Rolex e ficou associado à Breitlig depois de 2018, é conhecido por ter vários relógios modernos e vintage de marcas como a Patek Philippe, a Rolex, a Cartier e a A. Lange & Söhne, e também de marcas independentes, como a Red Monkey Designs e a Terra Cielo Mare. Se Daniel Craig tem uma vasta coleção de modelos Omega e Rolex, já Bradley Cooper prefere a IWC, tendo vários modelos Portuguese; tal como Chris Evans (em Capitão América), embaixador da marca. Hugh Jackman tornou-se embaixador da Montblanc, mas tem vários Girard-Perregaux. Matt Damon marcou presença na cerimónia dos Óscares de 2016 com um Van Cleef & Arpels Astronomie Poétique Midnight Planétarium, mas usa frequentemente TAG Heuer. Já John Travolta tornou-se embaixador da Breitling, em 2005, surgindo com relógios da marca desde então. Leonardo DiCaprio tornou-se uma das caras da TAG Heuer, aparecendo, desde então, com modelos da marca suíça. Charlize Theron usa também Breiling, depois de, durante anos, ter estado ligada à Raymond Weil.

Bo Derek com o primeiro TAG Heuer Aquaracer feminino no filme 10. (Imagem com direitos reservados; 10 1979)
Bo Derek com o primeiro TAG Heuer Aquaracer feminino no filme 10.
(Imagem com direitos reservados; 10 1979)

A Rolex, por sua vez, tem desenvolvido uma forte relação com a Sétima Arte, seja com atores e realizadores, seja com Hollywood, através de acordos de longa duração. Em 2017, a marca tornou-se proud sponsor dos Óscares, além de ser o ‘relógio exclusivo’ da Academy of Motion Picture Arts and Sciences, bem como se tornou founding supporter do futuro Academy Museum of Motion Pictures, que pretende preservar a história do cinema. A Rolex patrocinava, já desde 2016, o Salão Verde da cerimónia dos Óscares, onde costuma estar uma estátua gigante da imagem que representa os prémios. Nas paredes, entre decorações referentes ao cinema (e que mudam todos os anos) costumam estar vários relógios Rolex, para que os apresentadores não possam dizer que estão atrasados. Além disso, a marca tem apostado em ações concertadas com personalidades ligadas ao mundo do cinema, como aconteceu em 2012, quando um relógio experimental — o Rolex Deepsea Challenge — desceu ao ponto mais profundo dos oceanos, na fossa das Marianas, no oceano Pacífico, com o realizador e explorador James Cameron. À prova de água até 12 mil metros de profundidade, o relógio resistiu a mais de 12 toneladas de pressão. Até um Sea-Dweller com mostrador azul degradé foi lançado no âmbito desta parceria.

Compreende-se o desafio: o cinema é uma fábrica de sonhos e já várias vezes tentou ler o futuro. Regresso ao início: Marty McFly, ao ver um filme com Ronald Reagan, e conversando com um jovem Doc, insinua que o ator será, em 1985, o presidente dos Estados Unidos. Ao que Doc responde: «E quem será o vice-presidente? Jerry Lewis?» A história não termina aqui. Em 1986, Ronald Reagan, ao fazer o seu discurso sobre o estado da Nação recordou Doc Brown, lembrando que o céu, e não a rua, era o limite. «Nunca houve uma época mais excitante para se estar vivo, um tempo de assombro e de façanhas heroicas». Como diziam no filme Regresso ao Futuro: «Para onde vamos, não precisamos de estradas.» Era assim que Reagan via a América. Realidade e ficção juntavam-se à volta do tiquetaque das horas. Porque Hollywood nunca deixou de procurar saber as horas certas nos mais emblemáticos relógios.

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