Uma linha imaginária: a propósito do 325º aniversário de John Harrison

Edição impressa | No início do século XVIII, a procura de uma solução para achar a longitude sobre o mar levou John Harrison a construir o relógio mais importante da História, impulsionando a relojoaria para um patamar de precisão nunca antes alcançado. Hoje, a propósito da celebração dos 325 anos do nascimento do ‘simples carpinteiro’ britânico, recuperamos um artigo que nos relembra a sua importância e a saga que permitiu tornar mais seguras as viagens marítimas.

Imagem em destaque: H4, de John Harrison © National Maritime Museum

Artigo originalmente publicado no número  47 da edição impressa da Espiral do Tempo (Verão 2014)

Saber onde estamos no globo tornou-se, hoje, uma tarefa que é executada de forma quase inconsciente, tal é a facilidade com que acedemos a uma tecnologia que levou séculos a apurar e compilar nas suas noções mais básicas. Basta aceder a uma aplicação qualquer num denominado smartphone para não só sabermos onde estamos, mas também para onde vamos, o trajeto que teremos de percorrer e de quanto tempo necessitaremos para lá chegar. A posição exata onde nos encontramos sobre a esfera terrestre é-nos assim oferecida de bandeja e de forma instantânea num mapa digital mediante recurso ao sinal emitido por um certo número de satélites em órbita geoestacionária, 35.786 quilómetros acima das nossas cabeças.

O moderno GPS veio, assim, revolucionar a navegação em terra, no ar e, muito particularmente no mar, onde, até há pouco mais de 230 anos, a vastidão desprovida de pontos de referência dos oceanos era o maior desafio que um navegante enfrentava, em busca de uma rota segura, rumo ao seu destino. A navegação por estimativa, tendo como únicos recursos a bússola para determinar o Norte, o astrolábio ou a balestilha para calcular a latitude e a barquinha (corda cheia de nós) para calcular a velocidade aproximada do navio sobre a água, foi, durante séculos, o único meio de navegação disponível em alto mar. A longitude, coordenada que fixa um determinado local a este ou a oeste de um meridiano primário, como é o caso de Greenwich, apresentava-se como uma medida quase impossível de obter com precisão a bordo de um navio em permanente movimento sobre o oceano. Impossível até que, em 1759, um simples carpinteiro inglês solucionou o problema ao produzir aquele que é hoje considerado o mais importante relógio da História.

O que estava em causa naquele tempo era tremendo em termos de importância e de valor. Não só a impossibilidade de calcular corretamente a posição de uma embarcação no mar punha em perigo os navios, como as próprias tripulações se viam obrigadas a permanecer durante semanas – e até mesmo meses – na vastidão imensa dos oceanos, sempre acompanhados pelo escorbuto e frequentemente pela morte. Indiretamente, estava também em causa o domínio dos sete mares pela nação que primeiro obtivesse a fórmula que abria a porta a uma navegação planeada e controlada. A partir daqui, abrir-se-iam inúmeras possibilidades no campo dos interesses políticos e comerciais neste novo mundo marítimo.

As melhores mentes do século XVI tinham imaginado duas soluções: uma ligada aos astros e outra ligada à medição do tempo. Ambas estavam corretas nos seus princípios, mas também eram bastante difíceis de realizar. A que se relacionava com a medição do tempo parecia tão descabida que nem mesmo Isaac Newton estava convencido de que jamais poderia ser alcançada. Mas, no final, acabou por ser esta solução a vingar, de forma inesperada, assim que se tornou possível construir relógios suficientemente precisos para calcular a longitude no mar, com uma certeza de frações de grau, mesmo após longas viagens.

A epopeia de John Harrison

Há pouco mais de 300 anos, o britânico John Harrison foi um dos concorrentes ao prémio de 20.000 libras (o equivalente hoje a 3.000.000 euros) instituído pelo Longitude Act de 1714, destinado a premiar quem conseguisse apresentar um método simples e prático de determinar a longitude de um navio no mar. Enquanto a maioria dos concorrentes a este desafio científico recorreu a uma série de diferentes métodos, entre os quais se destacou o método lunar proposto em teoria 200 anos antes por Amerigo Vespucci, Harrison optou por propor como solução absoluta a medição precisa do tempo com recurso a um relógio.

Tal como Amerigo Vespucci, John Harrison sabia que a cada 15º de longitude correspondia exatamente uma hora (360º/24 horas). Este valor, uma vez associado ao conhecimento simultâneo da hora no porto de partida e da hora no porto de chegada (ou outro local do qual se conhecesse a longitude), permitia ao navegante converter a diferença horária numa separação geográfica. Desta maneira, cada hora de diferença entre o tempo medido no navio ao meio dia com recurso a um sextante e a hora do ponto de partida marcaria o progresso de 15º de longitude para este ou para oeste.

Longitude Act, Board of Longitude © Cambridge University Library
Longitude Act, Board of Longitude © Cambridge University Library

Mas, para obter esta leitura, o relógio teria de ter um nível de precisão, tal como especificado no Longitude Act, que não excedesse as 30 milhas náuticas (56 km), ou seja, ao longo de toda uma viagem, o relógio não poderia atrasar nem adiantar mais de dois minutos. No caso de uma viagem até às Índias Ocidentais, cuja duração alcançava na época os dois meses, o relógio não poderia perder nem ganhar mais de dois segundos por dia. Um valor extremamente difícil de alcançar neste período da História, em que a precisão de um bom relógio se media em minutos por dia. Se acrescentarmos a constante oscilação de uma embarcação no mar e os efeitos nefastos das variações extremas de temperatura ao longo da rota, compreenderemos a descrença da grande maioria dos homens de ciência relativamente a este método.

Retrato de John Harrison
Retrato de John Harrison.

Mas John Harrison tinha já no seu currículo a construção de relógios de torre e de coluna para os quais reclamava a capacidade extraordinária de medir o tempo com a precisão de um segundo por mês e nos quais tinha introduzido pela primeira vez soluções destinadas a resolver dois grandes problemas da relojoaria mecânica: as variações de temperatura e a lubrificação. Este conhecimento e esta experiência encorajaram-no a concorrer ao fabuloso prémio, para o qual, ao longo dos 30 anos que se seguiram, construiu três relógios de grande dimensão, hoje conhecidos como H1, H2 e H3 e expostos no observatório de Greenwich. Em cada um destes modelos, John Harrison introduziu novas técnicas revolucionárias que, apesar de fazerem destes relógios os mais precisos do seu tempo, não conseguiram resolver o erro provocado pelo constante movimento do navio à mercê das ondas. Tanto o H1, terminado em 1750, como o H2, terminado em 1741, e o H3, concluído em 1760, eram negativamente influenciados não, como normalmente, pelo movimento de oscilação, mas pelo movimento centrífugo de um barco em rotação horizontal.

Primeiros modelos experimentais de John Harrison: os modelos H1 (concluído em 1750), H2 concluído em 1741) e H3 (concluído em 1760).

Acabou por ser um ‘simples’ relógio de bolso que John Harrison tinha encomendado ao relojoeiro John Jeffreys para seu uso pessoal a inspirar a solução final. Harrison tinha instruído Jeffreys para incluir neste relógio um remontoir – um sistema que mantém o relógio em funcionamento, mesmo quando lhe é dada corda – e um sistema de compensação de temperatura. Estas invenções tinham sido aplicadas nos grandes e pesados H1, H2 e H3, e viam-se agora associadas, pela primeira vez, a um relógio de bolso facilmente transportável. Inesperadamente para Harrison, o relógio construído por Jeffreys segundo as suas instruções, mantinha uma precisão surpreendentemente elevada, o que acabou por levá-lo a tomar a decisão de construir um novo relógio segundo este princípio, ainda o H3 não tinha sido concluído.

O resultado foi o H4, um relógio com um diâmetro de pouco mais de 12 cm, concluído em 1759, e que, dois anos depois, numa viagem à Jamaica, provaria finalmente estar à altura do desafio lançado 45 anos antes pelo Board of Longitude. No final da viagem de ida e volta, que se estendeu por 147 dias, o H4 perdera apenas um minuto e 54,5 segundos desde que deixara o porto de Portsmouth em Inglaterra.

H4, de John Harrison © National Maritime Museum
H4, de John Harrison © National Maritime Museum

Um resultado excecional de apenas 0,7 segundos por dia, que era suficiente para Harrison reclamar finalmente o ambicionado prémio de 20.000 libras. Mas o Board of Longitude, obedecendo a interesses velados e à influência de membros que pretendiam fazer vingar o método lunar que o astrónomo real Nevil Maskelyn se esforçava por implementar, decidiu exigir mais provas. Harrison acabaria por receber o merecido prémio apenas após uma viagem adicional do H4 a Barbados, em 1764, e graças à recomendação do próprio capitão Cook e à influência direta do rei Jorge III.

A 24 de março de 1776, exatamente 83 anos após o seu nascimento, John Harrison morreria, deixando uma herança que daria origem a um novo tipo de instrumento, hoje conhecido como cronómetro marítimo: um tipo de relógio de elevada precisão que deu a Inglaterra, nas décadas que se seguiram à invenção, uma indiscutível vantagem militar e comercial em todos os oceanos do globo. Grandes relojoeiros, como John Arnold ou Thomas Earnshaw, acabaram por produzir centenas de cronómetros marítimos de grande qualidade nos quais incluíram melhoramentos como o escape à détente, ajudando a divulgar e a disseminar a nova tecnologia. Com o passar dos anos, o relógio convencional foi assimilando muitas das técnicas que, até há não muito tempo, apenas estavam disponíveis nos cronómetros marítimos que viajavam a bordo dos navios. Hoje, é possível afirmar que a excelência da relojoaria mecânica, tal como a conhecemos, deve muito à tecnologia introduzida pelo cronómetro marítimo e, especialmente, ao seu inventor e criador, John Harrison: um simples carpinteiro que um dia teve a ideia de construir o relógio mais importante da História.

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