Sobre Thomas Engel, Breguets, Salomons, Mannheimer, uma moeda debaixo da cama e… polietileno reticulado

Thomas Engel não possuía nenhuma formação académica. Na verdade, nunca chegou sequer a completar o ensino secundário. Com a vitória dos aliados, em 1945, e com apenas 19 anos de idade, sai diretamente de um campo de prisioneiros de guerra norte-americano, em Ingolstadt, na Baviera. A sobrevivência que estes tempos exigiam leva-o a trabalhar como lavador de pratos, motorista de táxi, seguindo-se, ainda, um trabalho numa fábrica de móveis e um outro na construção civil.

É nesta altura que Engel começa, de forma totalmente autónoma, uma série de experiências com polímeros de polietileno, vulgo plástico, sobre os quais tinha lido durante os anos de cativeiro como prisioneiro de guerra. A curiosidade quase inata de Thomas Engel acaba por levá-lo à descoberta e invenção do método Engel PEX (polietileno reticulado) usado no fabrico de tubos para diversos fins. Ao longo de anos de pesquisa autónoma e perfeita engenhosidade, Engel veio a registar mais de 120 patentes, preferindo sempre vender os direitos ou contratar licenças para as suas invenções, ao invés de se tornar ele próprio num fabricante. Tal opção fez dele milionário ainda antes de completar o seu 30º aniversário.

Abraham-Louis Breguet
Abraham-Louis Breguet. © Breguet

Ao longo do tempo que tenho dedicado à relojoaria – durante o qual tenho tido a oportunidade de mergulhar no mundo dos leilões e de contactar com alguns dos mais importantes colecionadores da atualidade, capazes de licitar exemplares por milhões de euros – o nome de Thomas Engel teima em vir ao de cima. Não só por ser um conhecido colecionador de Breguets e autor de um excelente livro sobre a vida e obra do célebre relojoeiro desaparecido em 1823, mas também porque ele próprio dominava a arte da relojoaria com diversos modelos de bolso construídos em boa parte pela sua própria mão.

O coleccionador e inventor Engel Thomas © Watch Wiki
O colecionador e inventor Thomas Engel. © Watch Wiki

A descoberta da paixão pela obra e vida de Abraham-Louis Breguet é incutida em Engel por um outro grande colecionador: o amigo e industrial britânico Cyril Rosedale, que, no início dos anos 50, tinha assegurado a licença do método Engel PEX para o Reino Unido. Engel ficou tão impressionado com a arte de Breguet que se tornou, quase de imediato, colecionador dos seus relógios, num fascínio que se manteve inabalável, mesmo depois de descobrir que a sua primeira aquisição se revelara um exemplar falso, algo relativamente comum na época de Breguet. Coube a Rosedale a tarefa de lhe dar a triste notícia…

Mas o fascínio de Thomas Engel pela obra de Abraham-Louis Breguet conduziu, também, a alguns dos mais caricatos e memoráveis episódios em leilões e nos bastidores do mundo do colecionismo de relógios.

Edgar Mannheimer

Durante a década de 1960 e 1970, um dos mais carismáticos antiquários dava pelo nome de Edgar Mannheimer. Nascido em 1925, em Neutitschein, uma pequena cidade perto da fronteira com a Polónia, na Morávia, tinha como língua materna o eslovaco. As suas origens eram humildes e o nome da confeitaria do seu pai, Marzmalz, foi exibido com orgulho na primeira carrinha adquirida pela comunidade judaica da localidade. Mais tarde, seria um esquelético Mannheimer, já com cabelos brancos aos 19 anos, a sair do campo de concentração de Auschwitz, ao qual tinha sobrevivido graças ao jeito que tinha para fazer sapatos. A Alemanha do pós-guerra oferecia muitas oportunidades para a aquisição de obras de arte pelo que, após um período a vender Schnapps caseiro, Mannheimer abre um clube noturno onde conhece militares norte-americanos em busca de antiguidades. Com uma capacidade inata para identificar um bom negócio, ao fim de apenas uma década sobre o fim da guerra, é já um verdadeiro empresário com residência estabelecida em Zurique.

1931 - Ernst  Mannheimer, Margarete Mannheimer, Erich  Mannheimer, Max Mannheimer, Kathe Mannheimer, Jakob  Mannheimer, Edgar Mannheimer © Geni
1931 – Ernst Mannheimer, Margarete Mannheimer, Erich Mannheimer, Max Mannheimer, Kathe Mannheimer, Jakob Mannheimer, Edgar Mannheimer © Geni
1935 Ernst Mannheimer, Max Mannheimer, Jakob Mannheimer, Margarethe Mannheimer, Erich Mannheimer, Edgar Mannheimer, Katharine (Kathe) Mannheimer
1935 Ernst Mannheimer, Max Mannheimer, Jakob Mannheimer, Margarethe Mannheimer, Erich Mannheimer, Edgar Mannheimer, Katharine (Kathe) Mannheimer
1946 - Edgar e Max Mannheimer; 1945 - Edgar Mannheimer © Geni
1946 – Edgar e Max Mannheimer; 1945 – Edgar Mannheimer
© Geni
1962 - A família de Edgar Mannheimer
1962 – A família de Edgar Mannheimer.

Mannheimer é recordado por muitos com grande afeto. Fosse através de um simples cumprimento ou quando estava prestes a separar-se de um verdadeiro tesouro apenas em troca da palavra dada, Edgar Mannheimer é lembrado como alguém que sempre mostrou um apreço e uma confiança notáveis por um mundo que assassinou a sua família e destruiu a sua juventude. Figura de destaque no boom do mercado de arte que teve o seu início nos anos 60, Mannheimer tinha-se especializado em relógios e instrumentos científicos. Antes da longa doença que levaria à sua morte, era descrito como uma figura enérgica e corpulenta com cabelos brancos encaracolados. Um homem que se sentava nos lugares da frente de um leilão e era senhor de um sexto sentido para o que se passava nas suas costas. Ao contrário da maioria dos intermediários, Mannheimer não ocultava as suas intenções, dando a conhecer alegremente a quem quisesse ouvir os lotes que estava determinado a adquirir. E a lista era normalmente longa…

Thomas Engel, Regulateur Tourbillon, No. VIII, the carriage by Richard Daners
Thomas Engel, Regulateur Tourbillon, No. VIII, orgão regulador por Richard Daners.

O tesouro de Sir David Salomon

Mas regressemos a Thomas Engel, mais precisamente aos meses que antecederam o dia 2 de novembro de 1965, quando este recebe, de Londres, um telefonema do principal especialista da Christie’s em relojoaria. Richard Faulkiner anunciava uma venda excecional de 60 exemplares que iria ser dividida em três sessões com datas distintas. Nada menos do que uma parte importante da coleção que pertencera a Sir David Lionel Salomon, o maior colecionador de Breguets de todos os tempos, e que agora deveria ser vendida a pedido da viúva, Madame Salomon-Bryce.

Passados poucos dias, Engels aterra em Londres e dirige-se diretamente para a Christie’s no nº8 da King Street em St. James, onde Faulkiner o encaminha para a caixa forte na cave do edifício e o deixa totalmente sozinho a apreciar os relógios na companhia de tabuleiros de diamantes e telas de Van Gogh e Renoir. Engels fica maravilhado com o que vê, apesar de alguns dos modelos mais apetecíveis da coleção original de Salomons, como o Breguet nº 160, apelidado Marie Antoinette, estarem já a caminho de Jerusalém, para se juntarem à coleção do museu L.A.Mayer para a Arte Islâmica. Estas peças viriam, mais tarde, a desaparecer, durante décadas, no decorrer de um espetacular roubo. Mas isso é uma outra história…

Sir David Lionel Salomon
Sir David Lionel Salomons.

Através de Edgar Mannheimer, Thomas Engels consegue adquirir um exemplar na primeira sessão a 1 de dezembro de 1964, e um outro na segunda sessão, já a 1 de junho do ano seguinte. Mas as verdadeiras relíquias reuniam-se no catálogo da terceira sessão marcada para o dia 2 de novembro de 1965. Decidido a aproveitar ao máximo a rara oportunidade, Engels marca presença sentando-se ao lado de Mannheimer com o qual combina um sinal com o joelho para cada vez que pretendesse licitar. A extraordinária sessão acabaria por se tornar num momento verdadeiramente histórico com Mannheimer a ganhar a totalidade dos lotes em nome de Engel. Um único comprador acabara de adquirir a totalidade do catálogo, algo que, se não estou errado, nunca tinha acontecido antes e não voltou a acontecer desde então. No dia seguinte, na mansão de White Lodge de Cyril Rosedale, Engels divide as peças adquiridas com o amigo e industrial britânico.

1 de Dezembro de 1964 - Christies Breguet Salomons catalogue
1 de dezembro de 1964/ 1965: Catálogos Christie’s Breguet Salomons Partes I, II e III.
O nº 8 da King Street em St. James
O nº 8 da King Street em St. James.

O caso Halpern

A loja de Monsieur Brown, em plena Place Vendôme, era um destino obrigatório para qualquer colecionador ou apreciador da obra de Breguet. O neto de Edward Brown, o chefe de atelier a quem o neto de Breguet tinha vendido a empresa, era no final da década de 1960 ainda o detentor do famoso nome, que em 1970 se veria obrigado a vender por uma modesta soma aos irmão Chaumet, vizinhos na famosa praça de Paris.

Mas no dia em que Thomas Engel visita o estabelecimento, Brown não tem nenhum original do célebre relojoeiro disponível para venda. No entanto, refere um importante colecionador em Nova Iorque que pretendia vender cerca de 15 originais de Breguet por motivos familiares. Percebendo o grande interesse de Engel, Brown revela a morada e o número de telefone do Dr. Halpern.

Passados poucos dias, Engel faz a chamada e o Dr. Halpern confirma querer vender a coleção cujas peças descreve terem certificados e, algumas, até mesmo o estojo original. Através de uma coleção de polaroids de fraca qualidade enviadas pelo correio, Engel identifica quase todos os modelos de maior importância de Breguet que tinham passado nos últimos anos pelos catálogos dos melhores leiloeiros. A tentativa inicial de adquirir apenas alguns modelos falha, uma vez que o Dr. Halpern insiste em vender a coleção completa. O valor pedido é astronómico e Engel tenta desesperadamente um acordo por um valor mais baixo. O novaiorquino não se deixa demover e Engel não resiste. Alguns dias mais tarde apanha um voo para Nova Iorque. No bolso leva um cheque visado pelo Dresdner Bank de 1 milhão de dólares.

Breguet proprietor, George Brown e George Daniels © Daniels London, Ltd.
Breguet proprietor, George Brown e George Daniels © Daniels London, Ltd.

À porta de um dos típicos arranha-céus de apartamentos de uma célebre avenida de Nova Iorque, Engel toca à campainha – um botão entre dezenas sem qualquer identificação para além de um número. A porta abre-se e o elevador leva-o ao quarto andar – apartamento 418. O Dr. Halpern e a mulher, de nacionalidade francesa, já esperavam Thomas Engel que é convidado para a sala de estar onde os relógios lhe são apresentados. A visão é estonteante, e cada peça é analisada demoradamente e ao pormenor, levando a que o casal Halpern convide Engel para ficar para jantar. Uma refeição descrita como extraordinária e após a qual o inventor tira do bolso o cheque visado, gesto ao qual inesperadamente a Srª Halpern se desfaz em lágrimas. A surpresa de Engel é total.

É que o casal Halpern tinha, entretanto, decidido não vender a coleção para a deixar aos filhos como herança. A visão de total desalento estampada no rosto de Thomas Engel leva o Dr. Halpern a oferecer-lhe, a título de compensação emocional, e por apenas 1000 dólares, um exemplar falso de Breguet.

Pelo menos era isso que ele acreditava, já que a peça e o seu número não estava inscrita nos meticulosos livros de registo do histórico relojoeiro à guarda de Monsieur Braun na Place Vendôme. Engel tinha já identificado a peça em ouro com repetição de minutos e data, como sendo um dos primeiros exemplares de Breguet, provavelmente de 1780, pelo que não podia constar dos registos iniciados apenas uma década depois. Nas mãos de Mannheimer a peça podia, seguramente, ser vendida por um valor dez vezes superior, ou ainda mais. Mesmo assim, e apesar desta ‘pequena’ satisfação, o desalento de Engel era enorme.

Thomas Engel, No. 3
Thomas Engel, No. 3

No entanto, a história não acaba aqui.

Duas semanas mais tarde, Engel está em Zurique numa visita à fábrica de químicos da Ciba e aproveita para jantar com Edgar Mannheimer no Hotel Bar au Lac, seguindo-se um aperitivo em casa do antiquário. Toca o telefone e Mannheimer atende. Do outro lado responde o industrial e financeiro Seth Attwood de Chicago, provavelmente o maior colecionador de relojoaria do seu tempo e dono do famoso Time Museum de Rockford, no Illinois. O motivo do telefonema prende-se com uma coleção de Breguets que um colecionador de Nova Iorque pretende vender, mas cujo preço parece estar a ser inflacionado por um alegado interessado – um colecionador alemão. Será que Mannheimer sabe de quem se trata?

Com um sorriso, o antiquário passa o telefone a Engel que se apresenta e conta o episódio de Nova Iorque. Elegantemente, Seth Atwood não hesita em manifestar a sua intenção de desistir da compra alegando que Engel tem direito de preferência. Mas perante a situação que revela uma intenção dúbia do Dr Halpern, Engel prefere propor um acordo de cavalheiros a Seth Attwood que irá terminar num veredicto salomónico totalmente inaudito.

Seth Attwood
Seth Atwood.
Time Museum em Rockford Illinois, USA
Time Museum em Rockford Illinois, EUA.

Engel telefona ao Dr. Halpern anunciando ter desistido da intenção de adquirir a coleção. Attwood fica assim totalmente livre para negociar, acabando por adquirir a coleção por um valor ainda mais baixo do que tinha oferecido inicialmente. Mannheimer voa para Nova Iorque onde se encontra com Atwood num quarto de Hotel na presença dos Breguets recentemente adquiridos. O corpulento antiquário lança uma moeda ao ar que, ao cair, rola para debaixo da cama. Nenhum dos dois se atreve a alcançar a moeda pelo que ambos rastejam para debaixo da cama para observar in loco o veredicto. A sorte sorri a Mannheimer que é o primeiro a escolher um exemplar segundo a lista de preferências fornecida antecipadamente por Engel. Segue-se Attwood e a cena repete-se até não sobrar nenhum exemplar.

Com as contas feitas, Mannheimer apanha o voo para Frankfurt onde o espera um excitado Thomas Engel que horas antes tinha ficado com o Rolls Royce parado na autoestrada por se ter esquecido de pôr gasolina. Valeu-lhe um táxi que passa nessa altura e o leva ao aeroporto onde o espera um pálido e cansado Mannheimer já a necessitar de fazer a barba. Apesar disso, a expressão de felicidade espelhada no seu rosto diz tudo.

Thomas Engel, No. 3 a
Thomas Engel, No. 3 a

Ao longo da sua vida, Mannheimer seria responsável pela venda de muitas peças importantes e por diversos recordes em leilão. O antiquário viria a falecer após doença prolongada, mas teria ainda tempo para nos deixar com um mistério em torno da sua última aquisição: uma calculadora do século XIX adquirida na Christie’s por 7,5 milhões de libras, 350 vezes a estimativa inicial, e que nunca foi paga. A especulação sobre o seu papel neste caso tem de ser desvalorizada pelo facto de se encontrar nesta altura sob o efeito de forte medicação e com a sua saúde em rápido declínio. Muitos anos depois, quando Thomas Engel vendeu a sua excecional coleção de Breguets o valor que obteria pelos relógios revelar-se-ia exponencial quando comparado com o que lhe tinham custado.

Em maio de 2015 decidi telefonar-lhe para o convidar para uma entrevista. Do outro lado atendeu-me o seu secretário que me comunicou do falecimento do inventor e colecionador apenas uns dias antes, aos 88 anos de idade.

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