Correias de cortiça: alternativa patriótica

De Portugal para o mundo: três amigos embrenharam-se num projeto que visa produzir as melhores correias de cortiça do mercado e conquistar um lugar na alta-relojoaria. Com a enorme vantagem de se tratar de um produto nacional, ecológico e de superlativas qualidades intrínsecas que satisfarão o mais exigente dos aficionados.

Por Miguel Seabra

Qualquer aficionado de relojoaria que se preze gosta de vestir o seu relógio da melhor maneira possível e também de alterar o seu visual seja com correias ou braceletes da própria marca, seja com soluções alternativas que se podem encontrar no mercado. Há já algum tempo que essa oferta inclui correias em cortiça de qualidade razoável; a partir de agora passará também a incluir correias em cortiça de grande qualidade, feitas a pensar numa clientela mais exigente e nas marcas de luxo.

David Geraldes, João Gentil e Laurent Mignon | © Paulo Pires/Espiral do Tempo
Da esquerda para a direita: João Gentil, David Geraldes e Laurent Mignon, criadores da Ecoskin, uma empresa que se dedica à criação de correias em cortiça para relógios de pulso. | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

O projeto é liderado por três amigos que se conheceram nos meandros da relojoaria nacional, mas com projeção internacional. O geógrafo João Gentil é colecionador e integra vários grupos de aficionados; David Geraldes já foi responsável da IWC para o mercado português, trabalhou na Patek Philippe e agora está ligado à empresa ibérica de distribuição relojoeira Diarsa; Laurent Mignon, um francês há muito radicado em Portugal por via do casamento, já foi o diretor da Baume & Mercier em Portugal e é o atual representante de várias marcas. Juntos formaram a Ecoskin para conceber um produto sofisticado Made in Portugal e capaz de se impor na prestigiada esfera da alta-relojoaria. O facto de a cortiça ser um material natural contribui ainda mais para a causa do triunvirato, numa altura em que a defesa do ambiente, a causa ecológica e a exaltação da sustentabilidade estão na ordem do dia. Tal como a chamada ‘customização’.

Sempre houve quem só gostasse de usar correias e braceletes da mesma marca do relógio e clamasse por sacrilégio quando o modelo não fica igual às imagens oficiais nos catálogos; hoje em dia, a maior parte não hesita em recorrer a correias e braceletes de outras marcas ou até mesmo feitas por encomenda, alternando frequentemente o visual consoante as circunstâncias e procurando sempre algo de diferente para dar um novo visual aos seus relógios. Apesar de constituirem uma novidade relativa, não há dúvida nenhuma de que as correias de cortiça são mesmo originais comparativamente com a esmagadora maioria de correias ou braceletes que podem ser encontradas em lojas reais ou virtuais. Para começar, a matéria apresenta um visual rico de nuances e textura que ganha uma bela patina com o tempo; depois, as qualidades intrínsecas da cortiça são tão variadas que vão desde a resistência à impermeabilidade, sem esquecer o conforto. Em conjunto, as propriedades estéticas e antialérgicas adequam-se de modo perfeito à sua utilização em correias de relógio.

© Paulo Pires/Espiral do Tempo
O Panerai Luminor Submersible com uma correia de cortiça. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Genuinamente português

«O que gerou o projeto foi a criação de algo genuinamente português», recorda João Gentil. «Entre 2011 e 2012, num daqueles encontros de colecionadores em que há trocas de ideias e todos levamos relógios e correias, pensei em levar algo produzido em Portugal. Pedi a um artesão em Almada que me fizesse um protótipo em cortiça e as pessoas gostaram do contacto, da cor. A cortiça é um produto nobre e utilizado há centenas de anos; no entanto, não tem o reconhecimento que deveria ter.» Algum tempo depois, numa tertúlia, o amigo David Geraldes interessou-se pela temática; quando Laurent Mignon se lhes juntou, surgiu a ideia de desenvolver um projeto mais sério e a longo prazo. Há dois anos, fundaram a Ecoskin.
«A ideia é andar sempre à volta da cortiça, indo das correias a diversos artigos ligados à relojoaria», adianta David Geraldes. «A nível comercial, havia aceitação atendendo ao interesse gerado; o problema era encontrar o fornecedor ideal de matéria prima e encontrar a matéria prima mais adequada às nossas pretensões. E tivemos de começar por perceber melhor o que era a cortiça.»

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A reação às correias de cortiça tem sido altamente positiva a nível pessoal e empresarial. Até porque o fator ecológico pesa cada vez mais. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

A cortiça é um material de origem vegetal da casca dos sobreiros; com uma área de 730 mil hectares de montado de sobro, Portugal é responsável por mais de metade da produção mundial. «A árvore tem de ter 70 anos para dar boa cortiça, tira-se a casca do tronco para obter folhas grandes a partir da flor da cortiça e começar a laminar – no final, o material aproveitável corresponde a somente dois por cento do que se retira do sobreiro. A flor da cortiça tem menos porosidade e a qualidade também tem a ver com o ano da colheita, dependendo de como foi a meteorologia da altura».

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Nesta foto, podemos ver a patina que se vai desenvolvendo na cortiça ao longo do tempo. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

A empresa com quem a Ecoskin tem um projeto de desenvolvimento de produto compra a cortiça em estado bruto às toneladas e sabe qual é a melhor colheita; depois procede a uma laminação específica sem cortes para o fabrico das correias. «A grande dificuldade é conseguir durante o processo de laminação uma folha contínua; no nosso caso, eles têm de fazer propositadamente folhas grandes dotadas da espessura certa para a aplicação na correia – com atenção dada à maleabilidade, à torção, à tração, à reação às colas, num processo com um grau de exigência a que não estavam habituados. Para eles somos uma minoria e o volume de negócio é irrisório, a nossa escala de produção é escassa. Mas aderiram ao projeto mesmo sabendo que terão ganhos mínimos connosco».

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Além de braceletes de cortiça, a Ecoskin dedica-se também a criar estojos e bolsas no mesmo material destinadas a relógios. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Garantido um primeiro grau de qualidade, os amigos passaram aos contactos internacionais. «Há dois anos estivemos na feira de Basileia para ter o feedback do mercado enquanto produto e conceito», recordou Laurent Mignon. E deu o exemplo da pequena marca de alta-relojoaria fundada por Laurent Ferrier, que já ganhou três prémios no Grand Prix d’Horlogerie de Genève. «Falei-lhe na cortiça e ele disse-me que tinham problemas na Ásia porque o suor cortava a pele das correias de crocodilo. A humidade e o tipo de alimentação das pessoas criam uma acidez na transpiração que ‘come’ a pele, daí ele ter perguntado como reagiria a cortiça. Dei-lhe dois exemplares e ele ficou convencido; hoje em dia usa uma correia de cortiça no seu relógio.»

A Laurent Ferrier tornou-se na primeira marca de exceção a adotar as correias de cortiça da Ecoskin e a propô-las as seus conhecedores clientes; mais recentemente, a Meistersinger tornou–se na primeira marca de relojoaria mecânica a comercializar um modelo de série com correias de cortiça – numa edição especial de 100 exemplares dedicada ao fado.
A reação tem sido altamente positiva a nível pessoal e empresarial. Até porque o fator ecológico pesa cada vez mais. «Hoje em dia há uma sensibilização maior e existe mesmo uma pressão do próprio cliente no mercado do luxo: as pessoas querem que os produtos que adquirem sejam naturais e que as empresas sejam castigadas se não corresponderem. Existe uma responsabilização para a utilização de produtos naturais.»

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Existem cinco tonalidades diferentes, estas são três das disponíveis com diferentes cores de pesponto. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Prontos para a comercialização

A Ecoskin não descobriu a roda, mas aparentemente está apetrechada para a fazer rodar ao mais alto nível. «Claro que já se fizeram e continuam a fazer-se correias de cortiça, mas a qualidade é rudimentar e está longe do nosso nível de exigência. A nossa preocupação maior ao longo dos últimos anos teve a ver precisamente com o desenvolvimento do produto para atingirmos uma qualidade que nos permitisse dar o passo comercial na captação das grandes marcas. Estabelecemos um grau de exigência elevado e agora já estamos prontos.»Pelo meio, muitos testes que comprovaram as qualidades intrínsecas da cortiça numa correia bem feita: não parte, não quebra, não rasga, não queima, não irrita. As próprias marcas de topo procedem a exigentes testes de correias e braceletes: sabendo-se que as correias podem suportar exemplares que podem atingir as centenas de milhar de euros, convém que a fiabilidade seja máxima.
Tendo em conta as correias em cortiça já existentes no mercado e que podem ser adquiridas entre 10 e 50 euros, o preço dos exemplares Ecoskin é relativamente elevado – embora os 150 euros estejam num patamar inferior ao de muitas correias de couro e sobretudo de crocodilo utilizadas na média e alta-relojoaria.

E o preço contém uma mais valia. «A nossa qualidade é muito superior, toda a produção é feita à mão com acabamentos à mão; e cada correia é vendida numa pequena bolsa em cortiça que pode servir para guardar o relógio ou para outros fins. A bolsa pode encarecer um pouco o custo final, mas não temos qualquer lucro com ela e assim proporcionamos uma mais valia ao cliente. Já as correias NATO são bem mais baratas e ficam a 65 euros. A qualidade da cortiça é a mesma, mas o custo da mão de obra para uma correia convencional é muito superior e também é preciso um suporte interior – que é normalmente em pele, mas estamos a desenvolver um suporte vegan para termos também uma variante 100 por cento natural e cem por cento biodegradável».

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Apesar de constituirem uma novidade relativa, não há dúvida nenhuma de que as correias de cortiça são mesmo originais comparativamente à esmagadora maioria de correias ou braceletes que podem ser encontradas em lojas reais ou virtuais. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

O objetivo é seguir o exemplo do cauchu, inicialmente encarado como um produto algo rude e pouco adequado à alta-relojoaria, mas que atualmente brilha até mesmo em relógios multimilionários. «Gostaríamos de atingir esse nível de reconhecimento. Para além dos preconceitos, a borracha era um produto pouco desenvolvido e hoje em dia 15 a 20 por cento das braceletes são em cauchu, havendo mesmo marcas de prestígio cujo catálogo assenta quase exclusivamente em braceletes de cauchu. Como a Richard Mille».

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Pormenor do suporte interior. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

No catálogo da Ecoskin, o tipo de correia pode variar e existe elasticidade de produção para adaptação ao cliente e a eventuais encomendas: há diferentes tipos de costura para um look que vai do normal ao vintage; a largura pode ser de 18, 20, 22 e 24 milímetros, mas ainda recentemente se fez uma produção específica com 19 milímetros no entre-asas; a espessura também se adequa, havendo mesmo cortes especiais para relógios pesados e sobredimensionados como os Panerai ou os relógios de aviador da IWC. Atendendo à textura, a cortiça afigura-se ideal para complementar relógios de estilo militar, mas os diversos tipos de cor e acabamentos podem adequá-la a modelos bem mais elegantes.

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As correias em cortiça da Ecoskin são entregues numa bolsa igualmente feita de cortiça. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Existe um caderno de encargos e cada correia tem a sua especificidade, mas tudo pode ser adaptado ao desejo do cliente – havendo até a possibilidade de corresponder a pedidos de cor, específicos para além das cinco tonalidades disponíveis: natural, castanho, castanho escuro, azul e preto. Como não podia deixar de ser, a cor é definitiva devido a um tingimento de qualidade e as tintas também são aquosas e antialérgicas.

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A cortiça apresenta um visual rico em nuances e textura que ganha uma bela patina com o tempo; depois, as qualidades intrínsecas da cortiça são tão variadas que vão desde a resistência à impermeabilidade, sem esquecer o conforto. © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Tendo em conta a crescente consciência ecológica de um setor que tradicionalmente tem recorrido sobretudo às onerosas correias de couro ou de pele de crocodilo, o projeto da Ecoskin parece ter um futuro risonho – sendo que em breve será estreado o site oficial para promoção e comercialização da marca, que já está disponível para o público em geral na Espiral (loja nas Amoreiras) e na Machado Joalheiro (estabelecimentos no Porto e Lisboa). O produto é atraente e de qualidade. E, antes de tudo o mais, é português!

Até ao lançamento do site oficial, a melhor forma de ter acesso a informações sobre as correias da Ecoskinvé mesmo por contacto direto através do seguinte endereço de email: geral@ecoskin.pt

Versão completa e corrigida da reportagem publicada no número 66 da Espiral do Tempo.

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