EdT55 — Em traços muito gerais (e demasiado simplificados), arriscaríamos dizer que a ilustração científica está para a fotografia como os relógios mecânicos estão para os relógios de quartzo. Mas não foi a esta conclusão que chegámos depois de falarmos com Lúcia Antunes, autora dos belíssimos trabalhos de ilustração científica que o leitor pode encontrar na Espiral do Tempo 55. Mais do que as especificidades inerentes ao processo de criação em si, é a própria função que distingue estas duas artes. Sim, porque comunicar ciência também é arte.
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Versão completa da entrevista publicada no número 55 da Espiral do Tempo e que complementa a produção «A beleza da precisão».
É muito comum estabelecer-se uma relação entre fotografia e ilustração científica. Mas não servem o mesmo propósito, pois não? Em que consiste a ilustração científica?
A ilustração científica consiste, de forma muito resumida, na representação de espécies da fauna ou da flora o mais fielmente possível, com todas as suas caraterísticas. Caraterísticas essas que sejam ‘diagnosticantes’; ou seja, que distinguem uma espécie em particular relativamente a todas as outras espécies. Em muitos casos, são coisas muito pequenas. Mas mais do que isso, a ilustração científica serve o propósito da comunicação. Fazer comunicação de ciência. A melhor forma de descrever a ilustração científica é dizendo que se trata da componente gráfica ou visual da comunicação para a ciência. A génese da ilustração científica é essa: comunicar para a ciência. Falei de fauna e flora, mas a ilustração científica não se esgota aqui. Nela se inclui também, por exemplo, a ilustração arqueológica. Mas, basicamente, é isso: comunicar a ciência.
E a fotografia não faz isso da mesma maneira, certo?
As fotografias são instrumentos preciosos para qualquer ilustrador, sejam tiradas pelo próprio, sejam fotografias que lhe sejam fornecidas. No meu caso, por exemplo, teria sido muito difícil, senão impossível, conseguir fazer o trabalho dos morcegos sem recurso a qualquer fotografia. No entanto, a fotografia mostra demais não mostrando o que é necessário. Quando temos uma fotografia, temos tudo. Quando, por exemplo, tiro uma fotografia ao focinho do morcego, tenho várias condicionantes, nomeadamente a distância de foco. Não estou a tirar uma fotografia ao animal inteiro. No caso de um animal pequeno, estou condicionada por estar muito em cima dele. Há certos elementos que se destacam e certos elementos que ficam desfocados. Há caraterísticas que se perdem. E há caraterísticas que se captam numa fotografia e que depois, na realidade, talvez não interessem. Além de que, quando estamos a tirar uma fotografia, estamos a tirar uma fotografia a um indivíduo, seja ele de que natureza for. Quando tiro uma fotografia ao meu gato, estou a tirar uma fotografia àquele gato em particular, com todas as suas caraterísticas, que podem ou não ser relevantes. De uma forma muito simplista, se o gato não tiver uma orelha, eu estou a mostrar uma fotografia de um gato sem uma orelha. E não é isso que interessa. Quando faço uma ilustração, não estou simplesmente a desenhar um indivíduo, mas um conjunto de indivíduos, ou seja, uma representação da espécie. É precisamente isso que se pretende: fazer uma observação de múltiplos indivíduos para conseguir chegar a uma conclusão do que é que é realmente importante naquela espécie e o que não é importante. Na fotografia, estou limitada àquele indivíduo, ainda que aquele indivíduo possa ser o melhor representante daquela espécie. Mas, por exemplo, no caso de uma planta selvagem inserida num contexto de campo onde existem milhares de plantas à sua volta, não consigo fazer uma leitura correta do que estou a ver. Quando estou a fazer uma ilustração, estou já a fazer uma interpretação. Estou a eliminar tudo o que não interessa, que é parasita, para me centrar no que é essencial. E, numa fotografia, não conseguimos fazer isso. Estamos a ilustrar um indivíduo, mas também o mundo à sua volta, o que, na maioria das vezes, não é o pretendido. De qualquer forma, a fotografia é um instrumento vital para qualquer ilustrador. Geralmente, funciona como uma base de trabalho. No meu caso, ancoro-me em fotografias feitas por mim. Não posso apoiar-me numa fotografia qualquer — porque, mais uma vez, estou a representar um indivíduo. Neste sentido, muitas vezes uma única fotografia não chega. Precisamos de muitas fotografias para compreender o que estamos a ver. É o caso das aves. É muito difícil descobrir a forma como as penas assentam através de uma fotografia. Ou se é especialista em aves e se percebe de imediato o que está representado, ou a leitura desse pormenor através de uma fotografia vai ser muito difícil. Por isso, uma só fotografia não chega.
Como começou a sua carreira de ilustradora científica — é mesmo a sua profissão, certo?
Além de ilustradora científica, sou também designer. Fiz o curso de Design de Comunicação na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Nessa altura, tomei, pela primeira vez, contacto com a ilustração científica, tendo em conta que o Pedro Salgado já desenvolvia cursos nesta área. Porém, não tive a possibilidade de fazer; e o bichinho ficou. Depois do curso, comecei a trabalhar, mas senti que me faltava a componente de desenho. Sentia muito a falta de desenhar. Entretanto, tomei conhecimento de que o Pedro Salgado ia desenvolver um workshop de três meses em ilustração científica e, desta vez, não quis perder a oportunidade. Seguiu-se um curso livre, novamente com Pedro Salgado, e foi então que decidi que era o que eu queria fazer da minha vida. Acabei por fazer depois o mestrado em ilustração científica, com a tese centrada nos morcegos de Portugal — o ponto de partida foi precisamente a exploração de uma técnica que é mais adequada para aplicar em animais com pelo. A pesquisa levou-me aos morcegos e comecei assim a desenvolver este trabalho.
Então a paixão é também um elemento de motivação nesta sua área de trabalho…
Sim, sem dúvida. A paixão tem-me movido desde o início da minha carreira nesta área. Mantenho ainda atividade enquanto designer, mas a ilustração científica é uma atividade que gosto mesmo muito de desenvolver. O desenho e a ilustração realizam-me muito. Além disso, é um trabalho que requer dedicação e concentração: são muitas as horas e os dias que dedicamos a um tema. É difícil fazê-lo sem se ter um gosto muito grande pela ilustração.
Quando falamos de ilustração científica, falamos, acima de tudo, de rigor. Qual o compromisso entre manter o máximo rigor na representação de um organismo e a necessidade de criar um registo estético apelativo?
O rigor é extremamente importante. Quando fazemos um trabalho de ilustração científica, temos de ter em conta inúmeros aspetos e respeitar ao máximo os elementos que estamos a representar. Não nos podemos esquecer de que o objetivo de uma ilustração científica é comunicar. A componente estética é indissociável deste aspeto, mas na medida em que as opções estéticas têm de respeitar sempre o que estão a representar. Em última análise, uma ilustração científica deverá ser tão esteticamente apelativa quanto o permitir a espécie que está a ser representada. Tenho de ser fiel à realidade. A beleza que advém de uma ilustração científica surge precisamente porque a natureza, ela própria, é bela, e, como tal, ao fazermos uma representação dos seus elementos, acabamos por ter representações belas. Mas não se faz ilustração científica para pendurar na parede de uma sala. Até pode resultar bem e ser esteticamente apelativa, mas cada ilustração tem um propósito definido e, nesse caso, o rigor é o elemento fundamental e ultrapassa sempre a componente estética propriamente dita.
E como é possível manter esse rigor, no caso de ilustrações que representam, por exemplo, espécies que já não existem?
Por um lado, há sempre um trabalho de pesquisa associado, um reconhecimento. Depois, não desenvolvo este tipo de trabalhos propriamente sozinha. Há sempre um acompanhamento por parte de profissionais que estão muito dentro da espécie que está a ser representada, ou registos ou fontes que nos descrevem o que se pretende ilustrar. Não se trata de representar algo que nunca existiu. Trata-se de ilustrar espécies que sabemos que já existiram — animais extintos, por exemplo — e, ancorados em fontes e referências, tentamos recriar visualmente. Há ainda um trabalho de perceber o que é verdadeiro e o que não é, porque há ilustrações científicas antigas que não são assim tão rigorosas como seria desejável. No fundo, falamos de um trabalho de interpretação visual de registos que já existem e uma importante componente de criatividade.
E prefere desenhar elementos da fauna ou da flora?
Eu sinto-me mais confortável a desenhar elementos da fauna, que tem sido a área em que tenho desenvolvido mais trabalho. Ainda assim, gostava de aperfeiçoar a minha componente técnica relativamente à ilustração de elementos da flora. Já desenvolvi vários trabalhos nessa área, mas gostava de fazer um projeto mais completo, ao estilo das pranchas botânicas inglesas, com muito rigor. Ou ter a possibilidade de fazer um estudo comparativo entre várias espécies, ou seja, trabalhos mais complexos e em que tivesse a possibilidade de aprofundar mais o tema.
Enquanto profissionais no domínio da alta-relojoaria, temos noção de que há muitas pessoas que desconhecem as exigentes e meticulosas componentes artesanais e de precisão que estão por trás deste mundo. Acha que as pessoas têm noção das especificidades do seu trabalho?
De um modo geral, acho que não. Num primeiro momento, as pessoas acham muita piada, consideram os desenhos muito bonitos e revelam algum interesse e até respeito pelos mesmos. Até me podem perguntar o tempo que demora a realizar cada ilustração, mas aspetos específicos relacionados com o objetivo e a concretização do trabalho, já é diferente. E em relação ao tempo que demora a realização de um trabalho meu, importa explicar que a cada ilustração está sempre inerente uma grande componente de pesquisa; ou seja, quando eu digo que uma determinada ilustração demora eventualmente 44 horas a realizar (de trabalho com pausas, claro), muitas vezes não se percepciona as horas de pesquisa que estão por trás desse trabalho. Mas são vitais para uma boa ilustração. Isto porque, a partir do momento em que começo a desenvolver a arte final de uma ilustração, não há margem para erros. Há técnicas e materiais que não comportam margem de erro. Quando começo a ilustração final, já não é suposto haver dúvidas. Tudo isto aliado à necessidade de selecionar e representar o mais rigorosamente possível os elementos faz com que o trabalho de ilustração científica seja, efetivamente, de bastante complexidade.
Por exemplo, neste sapo que aqui está, tentei representar o máximo número de elementos identificativos e de textura — porque são imensos —, mas depois acabei por não conseguir transmitir a sensação de volume associada a uma protuberância que é essencial. Esse aspeto era muito importante e obrigou a correções posteriores, que foram feitas digitalmente. Há também, muitas vezes, uma componente de pós-produção fundamental que também complementa as horas de trabalho… A digitalização e a limpeza ou os ajustes finais podem demorar algum tempo, dependendo da complexidade do objeto representado. O pássaro escolhido para a produção — tecelão-de-cabeça-preta — é apenas uma ilustração de um conjunto que pretende representar o processo de construção de um ninho. Falamos de 35 horas de trabalho dedicadas apenas à arte final.
A questão dos materiais que refere também é interessante. Fazendo um paralelismo, os relojoeiros têm os seus próprios instrumentos e, muitas vezes, personalizam esses mesmos instrumentos. Com um ilustrador científico, passa-se o mesmo?
Sem dúvida, mas a questão da personalização passa pela escolha dos materiais mais adequados a determinado trabalho ou pelos materiais com que nos sentimos mais confortáveis a trabalhar — como é o caso dos pincéis, que utilizo no trabalho de aguarela. Existem outros, é verdade, mas com estes consigo um grau de precisão que me deixa mais confortável, pelo que não me sinto bem a fazer uma aguarela sem ser com este material. Outro caso flagrante são os lápis de cor. Utilizo uns lápis que só se vendem nos Estados Unidos. Para mim, são os melhores lápis para trabalhar. Desenhar com estes lápis não é o mesmo que desenhar com outros lápis quaisquer — mesmo que sejam mais caros. As coisas não fluem. Tal como em fotografia, mas em escalas diferentes, os materiais fazem toda a diferença. Eu não posso produzir boas ilustrações com material que não é de qualidade. No caso das aguarelas, há a questão do pigmento. As aguarelas são um material que se esbate com o tempo. Expostas à luz, desaparecem. Em resumo, para fazer uma boa ilustração, é preciso um bom material, e isso tem o seu peso quando se avança com um dado projeto. E quando estamos confortáveis com determinado material e esse material desaparece? Ou deixa de ser produzido? É algo também bastante complicado.
E, voltando à relojoaria, quando a contactámos, tinha noção deste lado criativo dos relógios de pulso?
Eu sempre gostei de relógios e acho os relógios mecânicos muito interessantes: ver como as peças interagem umas com as outras e o modo como os relógios em si funcionam. No entanto, estava menos dentro da questão ligada à parte artística — o trabalho decorativo e até onde podem chegar a este nível. Não tinha a noção das potencialidades que a relojoaria representa na sua conjugação com a ilustração. Os relógios que as minhas ilustrações acompanham são provas disso. Considero os relógios objetos, por si só, belos. A sua complexidade e precisão conferem-lhes inegavelmente beleza, e por isso, quando lhes associamos decorações, enfatiza-se essa componente estética. Ou melhor, faz-se jus à beleza que já possuem.
O que achou do resultado final (produção «A beleza da precisão»)?
Gostei muito. Acho muito interessante o modo como os relógios foram escolhidos. Nunca me tinha ocorrido fazer esta relação com o meu trabalho, mas, realmente, funcionou. As escolhas tanto dos relógios, como das ilustrações conseguiram elevar ambos. E, além disso, acho muito pertinente esta ligação das ilustrações científicas com relógios. Ambos vivem do rigor e da precisão, e, sem estes dois elementos, ambos perdem a sua razão de ser. E depois há a questão da importância do tempo — no processo de realização de uma ilustração, o tempo é vital — qualquer ilustração, para ser bem feita, requer tempo, seja de realização, seja de pesquisa e preparação. E creio que na relojoaria isso também é verdade. Os relógios ‘ilustram’ o tempo, dão-lhe ‘corpo’ e, tal como uma ilustração científica, têm de ser precisos a fazê-lo.
Galeria de Imagens
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Conheça melhor o trabalho de Lúcia Antunes: luciaantunes.com
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