No Dubai — Em vésperas do arranque em força da nova temporada de 2017, recordamos aquele que foi o melhor evento relojoeiro de 2016 — a Dubai Watch Week — e como ele poderá estabelecer novas premissas para a indústria do tempo. Porque a elegia da relojoaria mecânica é redobradamente importante nos dias que correm.
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A 27.ª edição do Salon International de la Haute Horlogerie começa nesta próxima segunda-feira em Genebra, juntamente com vários outros eventos que globalmente formam o que entre a imprensa especializada se convencionou chamar a Geneva Wonder Week — mas o pré-lançamento já havia sido efetuado há dois meses, na zona do Golfo Pérsico. Na sempre carregada agenda relojoeira de final de ano, houve um evento a destacar-se particularmente pelos contornos em que foi idealizado: a Dubai Watch Week juntou no Médio Oriente mestres relojoeiros, CEOs de várias marcas e jornalistas para um original certame em que todas as vertentes da relojoaria foram debatidas… e que está encaminhado para se tornar num incontornável rendez-vous anual.
A importância da Dubai Watch Week e a relevância que o evento pode assumir enquanto plataforma de reflexão no contexto da indústria relojoeira foram abordadas na mais recente edição da Espiral do Tempo, mas convém fazer aqui um rescaldo mais completo e juntar imagens de vários relógios desvelados precisamente enquanto aperitivo do Salon International de la Haute Horlogerie ou instantâneos do próprio evento.
Mas a Dubai Watch Week valeu sobretudo pelos conteúdos e pelas personalidades. Melika Yazdjerdi, diretora do evento, confessou-nos que desde o início o enfoque pretendeu sempre ser na cultura relojoeira. E o que se pode dizer é que, numa altura em que a religião condiciona a política internacional e a relojoaria tradicional atravessa um período de recessão devido ao excesso de produção e ao advento dos relógios conectáveis aparentemente mais vocacionados para a nova geração, houve mesmo ventos importantes a soprar desde o deserto. Importantes ventos de evangelização — uma palavra forte mas que tem de ser aplicada em tempos difíceis, porque só com a transmissão da paixão e do conhecimento se conseguirá reafirmar a fé que tem tornado a chamada bela relojoaria mecânica num culto universal.
Após uma primeira edição um tanto experimental em 2015, a Dubai Watch Week afirmou-se em 2016 pela exaltação dos valores relojoeiros e todos os seus participantes foram unânimes em reconhecer que estão criadas as bases para uma experiência relojoeira diferente. Essa diferença relativamente aos outros certames é notória e palpável: Baselworld e o Salon International de la Haute Horlogerie (SIHH) são claramente as maiores feiras devido à sua representatividade e afluência, mas assentes sobretudo na força das marcas presentes; o SalonQP promove várias palestras e tem um belo enquadramento londrino na Saatchi Gallery, mas dois dias e meio é algo curto e o lado de exibição comercial das marcas também peso significativamente, tal como o Salon Internacional de Alta Relojeria (SIAR) no México; entretanto, o Salon Belles Montres em Paris não sobreviveu à crise, à falta de um local adequado e à indefinição do seu conceito enquanto exibição.
À exceção do SIAR no México, a Espiral do Tempo marca presença regular em todos os referidos eventos. E podemos afirmar que a Dubai Watch Week ganha a todos os seus congéneres em peso cultural e acessibilidade. A sua grande força não reside na exibição das marcas e dos seus produtos, mas na agenda cultural, no intercâmbio de conhecimento e no peso institucional decorrente da presença de protagonistas — sejam eles mestres relojoeiros, CEOs de marcas de alta-relojoaria ou as vozes mais reconhecidas da imprensa especializada.
Na programação dos cinco dias houve 16 debates que contaram com quatro ou cinco desses protagonistas: Linguagem do Tempo; Evolução de uma Marca; Economia Criativa; Desafios para o Retalho; Curadores Digitais; Desenho & Criatividade; Alta-Relojoaria; Smart Watches; Complicações; Mudanças Dinâmicas; 100 Anos de Relojoaria; Começar uma Marca; Valor Intrínseco de um Relógio; A Arte Artesanal; Embaixadores de Marcas; e o Poder da Influência.
Paralelamente, houve classes relojoeiras ministradas por grandes mestres (Antoine Preziuso, Andreas Strehler, Vianney Halter) e por grandes manufaturas (Jaeger-LeCoultre, IWC, Panerai); várias marcas presentes tiveram os seus responsáveis a fazerem a apresentação dos valores por trás de cada uma e a desvelarem alguns modelos novos ou modelos dedicados ao universo árabe.
Ou seja, houve uma exaltação dos valores da relojoaria. E só através da comunicação mais adequada e do esclarecimento mais correto é que as novas gerações poderão ser evangelizadas e aderir à paixão relojoeira. Nesse sentido, o papel dos comunicadores é fundamental: só com uma boa transmissão da fé e da crença relojoeira se conquistam novos públicos. Nos restantes eventos relojoeiros discute-se sobretudo o produto, as novidades; na Dubai Watch Week — que até é promovida pela família Sediqqi, histórica distribuidora comercial de marcas relojoeiras na região através da empresa Ahmed Sediqqi & Sons — discutiram-se sobretudo ideias e soluções, mas também ética e tradição.
No Dubai, esse oásis no deserto onde os arranha-céus crescem como cogumelos e o dinheiro fala mais alto em cada esquina, houve um evento relojoeiro sacro que quase fez parecer os outros profanos! Claro que, face ao contexto atual e porque se trata sempre de um tema extremamente delicado, pode ser arriscado eu estar a empregar o termo religião; se atendermos à sua etimologia, nem por isso: deriva do termo latino relligare, que significa ‘ligar-se a algo’. E o que ficou bem recordado em vários dos debates é que a relojoaria mecânica tradicional e sobretudo a alta-relojoaria assentam na emoção, na paixão. Dois pilares que estiveram na base da criação da Espiral do Tempo, em 1999.
Na Dubai Watch Week, contar com a participação de grandes mestres da relojoaria como Philippe Dufour, François-Paul Journe, Antoine Preziuso, Vianney Halter, Stephen Forsey, Giulio Papi, Andreas Strehler, Jean-Marc Wiederrecht ou os mais jovens Stephen McDonnell, Emmanuel Bouchet e Rexhep Rexhepi a envolverem-se pessoalmente é sempre garantia de sucesso; e conviverem todos eles num mesmo espaço — como sucedeu diariamente numa zona do Dubai Internacional Financial Centre que eu apelidei de ‘kindergarten’, com mesas e banquinhos — é mesmo inédito.
Na prática, viam-se CEOs como Karl-Friedrich Scheufele (Chopard e Ferdinand Berthoud), François-Henry Bennahmias (Audemars Piguet), Max Büsser (MB&F), Edouard Meylan (H. Moser & Cie), Benoït Mintiens (Ressence), Alan Zimmermann (Baume & Mercier), Grégory Dourde (HYT), Pascal Raffy (Bovet), Pierre Jacques (Manufacture Contemporaine du Temps) ou Theo Staub (Moritz Grossmann) e designers da estirpe de um Éric Giroud (trabalho feito com 60 marcas) ou Christian Selmoni (Vacheron Constantin), um lendário construtor de caixas como Jean-Pierre Hagmann (Patek Philippe, Franck Muller, etc) e ainda responsáveis da Fundação da Alta-Relojoaria e do Grand Prix d’Horlogerie de Genève misturados com figuras do universo leiloeiro como Aurel Bacs (Philipps; Bacs & Russo) ou Nicholas Biebuyck e Remy Julia (Christie’s) e grandes colecionadores (Claude Sfeir) ou responsáveis por instituições (Carine Maillard, diretora da Fundação do GPHG; Fabienne Lupo, diretora da FHH e do SIHH), sem esquecer a presença muito interventiva de representantes dos mais relevantes títulos da imprensa mundial, da impressa à digital. François-Paul Journe disse mesmo que o local lhe fazia lembrar os relatos da Grécia antiga, quando os filósofos — de Platão a Sócrates — se reuniam entre si para debater temas essenciais para a natureza humana.
Paralelamente, no faraónico Dubai Mall (o maior e mais luxuoso centro comercial do mundo!) houve uma exposição intitulada The Mastery of Time com peças históricas e ainda a exibição 24 Horas Na Vida de Um Relógio de Cuco Suíço!
Em guisa de rescaldo, na Dubai Watch Week reforçaram-se laços e criaram-se amizades num contexto incomparável, porque em qualquer outro evento relojoeiro a disponibilidade é muito inferior porque cada um está para o seu lado a defender a sua marca ou a lidar com clientes.
E devo dizer que a certa altura achei que, com tanto pedigree relojoeiro, o consumidor ‘normal’ (aquele que não tem tanta pujança económica para comprar alta relojoaria ou mais do que dois, três relógios mecânicos) deveria estar mais representado para dar a entender o seu ponto de vista. E que muitos dos intervenientes considera o smartwatch como um terminal de computador, conceito algo redutor que pode ser perigoso. Mas a opinião global é a de que a Dubai Watch Week tem tudo para ser uma nova Meca para a fé relojoeira…
E estamos todos ansiosos por fazer uma nova peregrinação aos Emirados Árabes Unidos lá para o outono. Para já, é tempo de rumar a Genebra e, em março, até à babilónica Baselworld… enquanto isso, fiquem com estas galerias fotográficas!
Mais algumas imagens da Dubai Watch Week
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Alguns dos relógios que experimentámos na Dubai Watch Week
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