A nova crise. Como sair dela? (atualizado)

Não é a primeira crise, nem será a última. Mas esta, resultado do Covid-19, não põe em causa apenas um mercado da indústria relojoeira suíça. A pandemia é global e o fim da circulação nas cidades e a pausa no turismo fez com que os clientes ficassem em casa. Grandes feiras, como a de Genebra ou de Basileia, foram adiadas para o próximo ano. A quebra de vendas será enorme. E muitos dos operadores mais fracos poderão perecer. Mas a relojoaria suíça está habituada a sobreviver a tempestades imprevisíveis. Esta é mais um desafio à sua capacidade de resistência.

A indústria relojoeira suíça está habituada a crises. Nasceu de uma, religiosa e migratória. Fugindo das perseguições católicas, os huguenotes estabeleceram-se na Suíça, na outra parte do Jura. E isso exemplifica, desde logo, a grande capacidade de resiliência desta indústria ao longo dos tempos. Confrontada com desafios aparentemente irresolúveis, foi sempre sobrevivendo, mesmo nas últimas décadas. Contornou a crise do quartzo, a do “subprime”, a do terrorismo internacional, a das leis anti-corrupção na China. E, mais recentemente, foi conseguindo ultrapassar a dos movimentos pró-democracia em Hong Kong, que quase paralisou a atividade económica num dos maiores mercados de relógios e produtos de luxo do mundo.

Sendo a sua atividade global, como vai resistir agora a uma ameaça invisível, o Covid-19, que, para já, colocou em quarentena grande parte das atividades comerciais em todo o mundo? Trata-se de uma pandemia planetária, em todos os mercados ao mesmo tempo, e não apenas num. Nenhum mercado está imune às consequências do que está a acontecer e da depressão económica que, a seguir, vai surgir. Para já o mercado chinês, o primeiro a sentir o golpe, parece estar a começar a mover-se e a sair da sua letargia. Mas nada ainda é certo, nem consistente. Mas, e o mercado italiano, e o inglês e o dos Estados Unidos, todos eles fundamentais para os diferentes segmentos de propostas da indústria? O Watches & Wonders de Genebra e a Baselworld foram adiados para 2020, o Geneva Watch Days para Agosto, e os encontros noutros locais da Ásia e do Médio Oriente também.

O futuro da Baselworld pode ser um sintoma do que aí vem. Até como exemplo do que se pode evitar. O conflito declarado entre os organizadores da feira e as marcas dão-nos uma ideia do que pode estar em jogo. É mais do que uma querela. A feira pretende que as marcas participem nos custos da exposição cancelada de 2020. As marcas, não só as suíças mas também as europeias, exigem da organização, a MCH, o reembolso integral das verbas pagas por antecipação. E não são meigas: sem o reembolso integral será o fim «puro e simples» da Baselworld. A empresa que organiza a feira responde que, se fizer, o reembolso integral a exposição fica em perigo. Talvez se chegue a um compromisso, mas a ferida está aberta. Até porque muitas marcas já olham para estas grandes feiras como gastos enormes sem o retorno esperado.

A questão é um pouco mais complexa. O presidente do comité de exibidores, Hubert J. du Plessix, que escreveu uma carta à MCH (lembrando que esta sociedade que gere a Baselworld tem uma maioria de capital de entidades públicas, incluindo os cantões de Zurique e Basileia) é o responsável pela área de investimentos e logística da Rolex. Se esta marca pode aguentar financeiramente o embate do Covid-19, muitas outras não o conseguirão fazer e recuperar o investimento feito é uma benção. Por isso, com o seu poder, defende os que poderão ruir. Plessix, na carta, recorda que o presidente desta, Ulrich Vischer, disse em 26 de março que a empresa organizadora tinha «liquidez abundante», sublinhando a contradição. Outra guerra abriu-se entretanto: a Baselworld anunciou que em 2021 o evento se realizaria em janeiro, com a Watches & Wonders a continuar em abril. Depois do alinhamento de datas previstas, a feira de Genebra olha agora com dúvidas para a decisão da Baselworld. Que sucederá entretanto? Todos fumarão o cachimbo da paz?

Privadas dos salões, as marcas olham para as novidades que tinham para apresentar, e aguardam, à espera de uma janela de oportunidade. No fundo, a indústria entrou ela própria em quarentena à espera de tempos mais respiráveis. Regressará rapidamente em força, ou o futuro será diferente? Os grandes grupos (Swatch, LVMH, Richemont) têm suficiente músculo financeiro para fazer face a estes tempos incertos. Nick Hayek já disse mesmo que não haverá despedimentos no grupo que dirige. Mas as maiores dúvidas colocam-se, com o mercado parado, sobre a capacidade de sobrevivência dos independentes, dos artesãos, dos sub-contratados, ou seja a teia mais larga onde se move a indústria relojoeira. Toda a cadeia de produção poderá ser posta em causa e essa não é uma questão menor. Já se percebeu que 2020 poderá ser um dos piores anos para a indústria relojoeira suíça. Segundo a análise do banco Ventobel de Zurique, as exportações de relógios suíços poderão cair cerca de um quarto, ou seja 25%. No fundo, mais do que quando foi a crise do quartzo (em 1975 desceram 15,2%). Ou no pior ano de sempre da indústria, 2009, na crise do “subprime”, quando as exportações caíram 22%. É um número assustador. A tendência de queda verifica-se desde fevereiro e, nestes meses, deve agravar-se com as medidas de contenção do Covid-19 em todo o mundo, seja na Ásia, na Europa ou nos Estados Unidos, que incluem o fecho de locais de trabalho e lojas e que se refletem na circulação controlada de pessoas, os clientes. Sem mercados não há receitas.

O segundo trimestre poderá ser pior, com quebras de 40%. Segundo a análise do banco Ventobel, o mercado chinês tenderá a recuperar lentamente e o europeu deve voltar a abrir-se em maio. E, nos Estados Unidos, será previsível que as lojas reabram em junho. Mas, se houver um atraso nestas previsões, ou um regresso do vírus numa segunda vaga, o impacto será maior. A análise é mais positiva no que se refere ao emprego. Algumas marcas reagiram de forma rápida, fechando as cadeias de produção, com recurso a figuras jurídicas como o desemprego parcial. Para o banco não se repetirá o cenário dramático da década de 1970, quando o número de colaboradores da indústria caiu de 90 mil para 30 mil. Mas, nessa altura, as marcas suíças eram muito dependentes das gamas mais baixas da relojoaria, algo que foi um alvo do quartzo. Agora estão mais direcionadas para o setor do luxo, que não deverá ser tão afetado por esta crise.

Tudo será uma questão de liquidez. Segundo o banco Ventobel, «as sociedades que dispõem dela como a Rolex, a Audemars Piguet, Patek Philippe, Swatch Group, LVMH ou Richemont, sobreviverão sem problemas». Mas as marcas mais pequenas e independentes poderão não conseguir recuperar. Já entre os grandes grupos, a análise também mostra diferenças: a Richemont, por exemplo, como tem uma posição mais forte na joalharia do que a Swatch, poderá ter mais margem de manobra. Para 2021, as previsões serão mais otimistas: a retoma poderá ser acima dos 22%. Mas tudo poderá passar por uma profunda reestruturação do setor. Há quem já fale das mudanças que aí virão: maior verticalização, com a construção de redes de fornecimento mais seguras; criação, por cada marca, de road shows próprios, em vez de se apostar em feiras; desenvolvimento ainda maior do e-commerce; inovação, seja na área dos smatwatches e da Inteligência Artificial. Serão tempos diferentes, depois da crise, os que aí vêm. Vamos ver que indústria renascerá depois deste forte abanão. Mas que poucos têm dúvida da sua capacidade de resistência, isso é certo.

[Texto atualizado face à versão publicada no dia 9 de abril, tendo em conta a divulgação da carta de Hubert J. du Plessix à MCH.]

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