Alhos por bugalhos

Ora aí está uma expressão tão portuguesa e que assenta que nem uma luva no tema que hoje quero abordar. “Trocar alhos por bugalhos” não quer dizer nada mais do que misturar certas coisas quando uma não tem nada a ver com a outra, embora possam, aparentemente, ser semelhantes.

E onde podemos, na minha modesta opinião, aplicar esta célebre expressão à relojoaria contemporânea? Precisamente quando falamos do chamado relógio conectado, conhecido além fronteiras também por “smartwatch”.

Apesar de ser um admirador de longa data de Steve Jobs e um fã incondicional de tudo o que tenha o símbolo da maçã (sou um sério candidato a utilizador de um Apple Watch… para ser usado devidamente no pulso direito!!!), o facto é que a discussão em torno da ameaça que o mesmo parece ter trazido à indústria da relojoaria mecânica é um tema que não me seduz nem um pouco, nem me provoca, pessoalmente, qualquer inquietação.

Acho a discussão completamente descabida, bem como o pânico que gerou entre as manufaturas suíças fora de contexto, porque parte essencialmente de um pressuposto que considero totalmente errado. O smartwatch, apesar de ocupar o tradicional lugar do relógio mecânico sobre o pulso, não é um relógio, tal como um smartphone não é um telefone. Na verdade, ambos são o que conhecemos por “gadgets”, concentrando uma multiplicidade de funções que incluem, por um lado, a capacidade de nos dar as horas e, por outro, a de fazer chamadas telefónicas. Entre estas duas funcionalidades estende-se uma panóplia cada vez mais vasta de aplicações que tornaram estes objetos companheiros indispensáveis no dia a dia de todos nós.

O clássico relógio de pulso mecânico deixou há já algum tempo de ser um objeto utilitário indispensável para se tornar numa importante fonte de prazer e de cultura aos mais diversos níveis, tornando a sua função primária totalmente secundária. A hora certa rodeia-nos por todo o lado, e se precisarmos de saber que horas são neste momento podemos, hoje, obter essa informação das mais variadas formas, sem termos necessariamente de olhar para o pulso. Há mesmo quem diga que existe agora uma geração inteira que puxa do telefone quando necessita de saber que horas são, e, em alguns casos, até mesmo quando tem um relógio no pulso. Eu próprio me confesso já ter incorrido nesse gesto algo absurdo.

É que as funções principais de um smartwatch são cada vez mais as mesmas que podemos encontrar em qualquer smart phone. A nível estatístico, passamos hoje muito mais tempo a utilizar essas mesmas funções em ambos os gadgets, do que apenas a ler as horas ou a fazer chamadas. Porque deveríamos então considerar um como sendo um relógio e o outro como sendo um telefone? Ambos, um mais recente do que o outro, são na realidade dispositivos de uso pessoal que extravasam largamente essas funções básicas.

Ora, a indústria relojoeira suíça não parece querer ver a questão da mesma forma. O lançamento do Apple Watch gerou um pânico generalizado e um receio de que o smartwatch se venha a tornar numa ameaça séria ao relógio mecânico (na mesma ordem de grandeza em que o relógio de quartzo o foi na década de 70), esquecendo-se de perguntar a quem adquiriu um Rolex, um Jaeger-LeCoultre, um Franck Muller ou um François Paul-Journe se irá relegar de imediato os seus preciosos exemplares para a gaveta das meias, lançando-se de seguida de cabeça no fenómeno dos smartwatches.

Claro que não! Só o facto da obsolescência anunciada a que estes gadgets estão sujeitos seria razão suficiente para colocar algum juízo em quem decide lá para os lados de Genebra ou Biel. E quanto ao elemento cultural e artístico, penso que nem vale a pena ir por aí… a resposta parece-me demasiado óbvia.

Agora, com toda esta defesa da honra do relógio mecânico, não quero nem posso desconsiderar a importância do smartwatch na saúde da indústria relojoeira suíça e mesmo internacional. A sombra ameaçadora do smart watch estende-se essencialmente ao relógio de quartzo, e até mesmo ao relógio mecânico de preço acessível. Aquele relógio onde efetivamente o fator Arte e Cultura não está necessariamente presente e onde o valor mais em conta é o garante de acesso a uma base de consumidores muitíssimo mais alargada.

É, pois, uma estratégia totalmente compreensível que nomes como a TAG Heuer, Montblanc, Louis Vuitton, Bulgari ou deGrisogono queiram entrar nesta corrida às armas, até porque concentram em si a capacidade de produção de diversos componentes que dão origem a esta ilusão generalizada que confunde relógios com smartwatches.

Mas essa corrida não pode nem deve ser feita às custas do espaço ocupado pelo relógio mecânico tradicional. A indústria suíça tem falhado peremptoriamente no exercício de explicar cabalmente ao atual consumidor de smartwatches, que é afinal o futuro consumidor de relógios mecânicos, a distinção técnica, artística e cultural que separa os dois géneros. O maior erro parece ser o de querer colocar tudo no mesmo cesto sem demarcar claramente a fronteira e as diferenças entre um e outro, cobrindo ambos com a mesma imagem cultural (leia-se imagem de marca) construída a pulso e com a qual defendeu a arte do relógio mecânico ao longo de décadas. O prejuízo parece estar do lado deste último. Imagine-se, in extremis, a perplexidade do leitor da Espiral do Tempo perante a imagem de um Patek Philippe Calatrava…. conectado!!!

Meter o relógio mecânico e o chamado smartwatch no mesmo saco é pois o mesmo que insistir não haver distinção alguma entre alhos e bugalhos…. haja paciência!

Post scriptum:

A título de esclarecimento, a bolota, fruto do carvalho da qual se fazia antigamente farinha para o pão, depois de descascada é exatamente da cor do alho. Ora, antigamente em Portugal, chamava-se às bolotas bugalhos. A confusão deu assim origem ao refrão “Não confundas alhos com bugalhos”.

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