Carisma

Há qualidades tangíveis e intangíveis que fazem a diferença. “Carisma” é uma palavra muito utilizada para definir uma personalidade que se destaca — e que também pode servir para caraterizar um relógio.

Crónica originalmente publicada no número 58 da Espiral do Tempo.

No ano passado, surgiu no meio relojoeiro um finlandês de nome Max Noble que se apresentava como estando ligado à indústria do luxo e que aproveitou as redes sociais para se aproximar de algumas individualidades da indústria relojoeira, incluindo determinados jornalistas. Achei estranha a sua aparição e, constatando que tinha estabelecido residência na Dinamarca, perguntei ao meu colega dinamarquês Kristian Haagen se o conhecia. «Não faço ideia de quem seja. Ignora-o», respondeu. Mesmo assim, aceitei o seu pedido de amizade no Facebook e cheguei a vê-lo ao longe na feira de Basileia do ano passado; continuei sem perceber qual era realmente a sua atividade — até porque não me apeteceu ir perguntar-lhe.

Entretanto, de vez em quando, lá me vou deparando com uma ou outra publicação sua que me aparece no timeline, e constatei que, no espaço de meses, passou de ter um eventual projeto na relojoaria para se tornar num daqueles pseudo-gurus que promove discursos motivacionais através da difusão de vídeos na Internet. Não tenho nada contra o homem, que até tem boa presença, apesar de se vestir de modo exageradamente formal. Mas sou um tanto alérgico a personagens que se dedicam a dizer aos outros como devem ser e o que devem fazer, apesar de aceitar que, por vezes, esse tipo de conselhos (que em certos meios se poderá designar de bullshit) são úteis para muito boa gente.

Selfie na entrega do prémio de Relógio do Ano aos irmãos Grönefelf, em Varsóvia. © Miguel Seabra
Selfie na entrega do prémio de Relógio do Ano aos irmãos Grönefelf, em Varsóvia. © Miguel Seabra

No outro dia, Max Noble disse finalmente algo que me prendeu mais a atenção. Num vídeo, o anterior promotor da chamada ‘Noble Life’ e agora autoproclamado «Master of First Impressions», dizia que a ‘ornamentação’ era muito importante para se criar uma boa primeira impressão. «Hoje vou desvelar-vos um pequeno truque. Vocês precisam de juntar algo de especial à vossa roupa, ao vosso aspeto. Vocês precisam de adicionar ornamentação. A ornamentação é uma peça de história sobre vocês. Pode ser um lenço de bolso. Pode ser uma gravata. Pode ser um relógio. Pode ser qualquer coisa que conte uma história sobre vocês. Algo ligeiramente diferente ou ousado que vos permita diferenciar. E que faça com que as pessoas se interessem e estabeleçam contacto convosco».

Geralmente, não ligo nada ao que diz, mas, desta vez, fixei o conselho e disse para com os meus botões que já tinha assunto para uma crónica. Afinal de contas, um relógio escolhido para ser a tal ornamentação — e que, por sua vez, irá criar nos outros uma primeira impressão ideal — acaba sempre por ser um excelente cartão de visita.

Sexy ou cool?

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TAG Heuer Monaco. © Miguel Seabra

Não costumo enveredar por discursos motivacionais, mas costumo dizer que o relógio pode ser uma extensão da personalidade de cada um. Claro que isso não é válido para todos os relógios nem para toda a gente. No entanto, há mesmo relógios que têm um ‘je ne sais quoi’ que os demarca dos demais e que ajudam a brilhar ainda mais a tal personalidade de cada indivíduo. São relógios ‘sexy’, para utilizar um termo muito em voga nos meandros da relojoaria contemporânea, que significa, basicamente, que são atraentes e que têm o condão de mexer com as pessoas, de não deixar ninguém indiferente. Ou então são relógios ‘cool’, com uma auréola particularmente fixe. Prefiro apelidá-los de relógios com… carisma.

Sim, um objeto inanimado pode ter carisma (se bem que um relógio mecânico não é propriamente algo inanimado). E eu definiria um relógio com carisma como sendo um modelo que é suficientemente diferente, mas que não cai no ridículo, ou um relógio que até pode ter uma aparência mais convencional, mas que arrasta consigo uma história que faz dele um ícone; ou um relógio que, por uma qualquer razão subliminar, combina particularmente bem com determinada pessoa.

No ano passado, escrevi neste meu espaço de opinião um texto sobre os relógios de forma, intitulado «Ser quadrado é fixe», numa referência ao tema «Hip to be square», de Huey Lewis & The News, dos anos 80. E, de facto, o quadrilátero Monaco é um cronógrafo cheio de carisma — por ser pouco convencional, por ter estado no pulso do ‘King of Cool’ que foi Steve McQueen no filme Le Mans, porque o facto de conhecermos a história por trás do seu lançamento em 1969 dá-lhe uma dimensão transcendente que o transforma em lenda. Tenho duas das primeiras reedições do Monaco e, se elas não fazem de mim automaticamente um sujeito cool, pelo menos são evocativas de um incontornável ícone da relojoaria.

Culto da personalidade

TAG Heuer Autavia © Espiral do Tempo / Paulo Pires
TAG Heuer Autavia © Espiral do Tempo / Paulo Pires

A maior parte dos ícones da relojoaria são disruptivos ou foram-no no seu tempo. Com o renascimento da relojoaria mecânica e a transformação do relógio de instrumento de precisão de elevado valor simbólico em objeto de culto anacrónico, muitas foram as marcas que, nestas últimas décadas, tentaram impor novas formas ou uma nova maneira de fazer relojoaria. Poucas conseguiram transformar determinados designs em ícones, porque só os clássicos são eternos. Olhando para a minha coleção, constato que tenho vários exemplos desses: o Monaco, o Autavia, o Carrera e o Silverstone da TAG Heuer; o Explorer, da Rolex; o Reverso, da Jaeger-LeCoultre; o KonTiki, da Eterna; o Royal Oak Offshore, da Audemars Piguet; o Opus, da Chronoswiss.

Tudor Heritage Black Bay 'Midnight Blue' ao  fim da tarde na Baía de Cascais. © Miguel Seabra
Tudor Heritage Black Bay ‘Midnight Blue’ao fim da tarde na Baía de Cascais. © Miguel Seabra

O meu mais recente companheiro é um relógio relativamente recente, mas com conotações históricas, e que se tornou num sucesso instantâneo entre os aficionados e sobretudo entre os jornalistas especializados: o Heritage Black Bay (versão Midnight Blue), que recupera códigos estéticos de antigos modelos de mergulho da Tudor — o Snow Flake — e mesmo da marca-irmã Rolex. Tem sido difícil tirá-lo do pulso. Parece ter uma personalidade magnética, e dizem que me fica bem…

Depois há o caso específico dos relógios que ganham carisma suplementar por estarem ligados a personalidades carismáticas — e isso acontece sobretudo com marcas independentes contemporâneas de alta-relojoaria, onde a ligação do criador ou do CEO com os aficionados/colecionadores e, sobretudo, com os jornalistas (que depois ajudam a criar a percepção pública das suas obras-primas através dos artigos) é muito mais próxima do que sucede nas grandes marcas dos grandes grupos.

Tornei-me amigo de muitos deles ao longo dos anos e esse contacto pessoal é inestimável, ajudando a humanizar os seus próprios relógios. Gostaria muito de ter um Chronomètre Bleu do temperamental François-Paul Journe. Um 1941 Remontoire da Grönefeld que me ajudasse a recordar ainda mais o espírito pândego dos irmãos holandeses Bart e Tim Grönefeld (de preferência uma versão com mostrador em guilloché feito pelo calmíssimo mestre finlandês Kari Voutilainen). Ou um Legacy Perpetual da MB&F, a marca do brilhante Max Büsser e amigos (no caso particular, a genial conceção do calendário perpétuo é de Stephen McDonnell). Ou um Swiss Alp da Moser & Cie liderada pelo ‘esperto-que-nem-um-raio’ Édouard Meylan. Ou um Vortex da Hautlence do bem-disposto Sandro Reginelli. Ou um Korona Northern Lights do ‘lunático’ Stepan Sarpaneva, com material luminescente do inefável James Thompson. Tudo gente com carisma. E muita atitude!

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