Corsair

É óbvio que a relojoaria mecânica exerce em mim um fascínio que muitas vezes desafia a lógica. Afinal, não são poucos os que se questionam sobre a relevância e utilidade de dedicar tanto tempo a uma forma de medir o tempo cujos princípios básicos remontam aos meados da Idade Média e que, comparado com a que a eletrónica nos oferece hoje, se traduz num objeto totalmente irracional e mesmo contraditório no seu propósito básico.

A única forma de fazer com que tudo faça sentido é olhar para a relojoaria como um objeto de cultura, onde, tanto como a arte que lhe dá origem, são as pessoas que, em última instância, a revestem da substância que a torna num tema relevante. E quando me refiro às pessoas, não incluo apenas relojoeiros, artifices e artesãos. O elo final no percurso de criação de um relógio mecânico foi sempre o comprador, e a uma outra escala, o colecionador. E é este último que, a par com os melhores relojoeiros, tem sido uma fonte de fascínio inesgotável na tentativa de perceber qual o motivo e a mentalidade que leva um determinado indivíduo a render-se de forma incondicional aos encantos da arte relojoeira. Neles, a motivação, o método e a forma de colecionar, tornam-se tão distintos e variados como a personalidade que os anima.

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Catalogue of Watches – J. Pierpont Morgan Collection.

Um escape à tremenda frustração de nem sempre poder ‘caçar’ os relógios que pessoalmente ambiciono é o de mergulhar no submundo da literatura especializada que, em alguns casos, incluem catálogos de colecões que se tornaram parte da história. Courtenay Adrian Ilbert (1888–1956), Lord Sandberg (1927-2017) ou Thomas Engel (1927-2015), fazem parte de uma extensa lista de nomes gravados nas lombadas de catálogos que preenchem as minha estantes e do qual destaco um raro exemplar que tive a sorte de adquirir há alguns anos. O volume mede nada menos do que uns impressionantes 38 cm x 31 cm, com 10,5 cm de espessura, e apresenta gravado na lombada vermelha a inscrição Catalogue of Watches – J. Pierpont Morgan Collection. Trata-se, no entanto, de um fac-símile com características bastante mais humildes do que o original produzido em 1912 e ao qual o New York Times se referiu à época como estando entre os mais sumptuosos livros britânicos alguma vez produzidos. O volume original foi limitado a 15 exemplares em velino, um dos quais oferecido ao Rei Gorge V, 20 em velino japonês e 45 em papel feito à mão. A Christies chegou a vender um exemplar em velino japonês por um valor acima dos 80.000 dólares e uma versão em papel feito à mão por 22.500 libras.

John Pierpont Morgan (1837-1913) foi um financeiro americano, banqueiro e colecionador de arte que dominou as finanças corporativas e a consolidação industrial durante o seu tempo. Em 1892, Morgan organizou a fusão da Edison General Electric e da Thomson-Houston Electric Company para formar a atual General Electric. Depois de financiar a criação da Federal Steel Company, organizou a sua fusão, em 1901, com a Carnegie Steel Company e vários outros negócios do aço e ferro, incluindo a Consolidated Steel and Wire Company de William Edenborn, para formar o gigante industrial que é hoje a United States Steel Corporation. Pelo caminho terá provavelmente salvo o estado norte americano da bancarrota durante o pânico que levou ao crash da bolsa em 1907.

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John Pierpont Morgan (1837-1913).

A fortuna colossal acumulada por John Pierpont Morgan levou-a à aquisição desenfreada de todo o género de objetos de arte ou decorativos de relevo pelo quais pagava qualquer soma. Durante as longas viagens que fazia pela europa viria a adquirir muitas vezes coleções inteiras de arte e os relógios não foram exceção. A maioria das peças que ilustram o volumoso catálogo provêm assim essencialmente de dois celebrados colecionadores privados, Carl Heinrich Marfels (1854-1929) e Frederick George Hilton Price (1842-1909).

Banqueiro britânico, historiador e arqueólogo amador, Hilton Price colecionava relógios para além de antiguidades egípcias, fósseis e colheres de prata inglesas. Focado essencialmente nos primórdios da relojoaria inglesa, a coleção de Price ganhou fama quando se manteve em exposição durante alguns meses no Victoria & Albert em 1906. Logo após a sua morte, em 1909, a coleção seria adquirida por Pierpont Morgan.

Alemão, comerciante e colecionador de relógios, Marfels era uma figura proeminente nesta área, sendo conhecido pelos raros exemplares da sua extensa coleção e pela sua grande experiência académica. Para além disso foi, em 1897, o fundador da guilda dos relojoeiros alemães em Berlim. Através do comerciante de arte Parisiense, Jaques Seligmann (1858-1923), Morgan adquire também em 1909 cerca de quarenta relógios da coleção Marfels. No ano seguinte o colecionador expôs o que restava da coleção em Neuchâtel, onde Morgan comprou o remanescente das peças totalizando $ 360.000, apesar dos esforços de alguns grupos locais para manter a coleção na Suíça.

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O exemplar em velino japonês do Catalogue of Watches que leiloado pela Christies por um valor acima dos 80.000 dólares e uma versão em papel feito à mão por 22.500 libras. © Christies

E, ao adquirir as coleções de Price e Marfels, Morgan tornou-se o maior colecionador de relógios do seu tempo com um conjunto de peças abrangente capaz de ilustrar a história da relojoaria na Europa do século XVI ao início do século XIX.

Os planos em curso para uma exposição da sua coleção de relógios no Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque, acabaram por ser adiados devido à morte subida em março de 1913 de John Pierpont Morgan, em Roma, aos 75 anos de idade. Mas a mostra acabou por avançar no ano seguinte, mantendo-se patente ao público até maio de 1916.

Finalmente, no ano seguinte, Jack, o filho e herdeiro de Pierpont Morgan, decide doar a coleção ao “MET” onde, ainda hoje, pode ser parcialmente admirada ao vivo, e na sua totalidade através do excelente site do museu. Basta digitar o termo “watch” no campo de busca para poder ter acesso a centenas de peças de grande interesse histórico e beleza estética.

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Um dos iates a que Pierpont Morgan dava o nome de Corsair.

Quanto ao título desta crónica: “Corsair” era o nome que Pierpont Morgan dava aos seus fabulosos iates, inspirado pelo corsário do século XVII, Henry Morgan. Verdadeiros palácios flutuantes para os quais convidava as mais ilustres personalidades, era frequente fechar os mais importantes negócios recorrendo à táctica de navegar ininterruptamente ao longo do rio Hudson sem deixar ninguém desembarcar até que fosse alcançado um acordo. É aliás de Pierpont Morgan a célebre resposta a quem um dia lhe perguntou quanto custava um dos seus iates: “If you have to ask how much it costs, you can’t afford it.”

A forma como colecionava relógios é de certa forma um espelho da personalidade de um homem que ficou para a história.

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