Crise de identidade

Recordar-se-ão certamente do artigo de Jack Forster, editor chefe do site norte americano Hodinkee, que a Espiral do Tempo destacou aqui no passado dia 6 de março. Nele, o autor dissertava sobre a distinção entre o que define um Horologista de um não Horologista, um tema que quando é abordado dá sempre pano para mangas e que, não poucas vezes, gera uma saudável polémica.

O facto é que, ao longo dos últimos anos, tenho verificado que o estilo de comunicação adotado por parte de muitas das marcas associadas à alta-relojoaria mecânica tem vindo a revelar-se cada vez mais superficial, e, mais vezes do que menos, a focar-se essencialmente no aspeto estético em detrimento do aspeto técnico, histórico e mesmo genético dos relógios que sucessivamente vão sendo apresentados ao público.

A tendência revela talvez a forma como passámos a olhar para quase tudo o que nos rodeia. Consumimos cada vez mais imagem do que texto, e reparamos mais facilmente na aparência do que na essência. A um cartaz de campanha eleitoral basta apenas uma frase associada a uma imagem para veicular toda uma política complexa, e que, de outra forma, muito poucos estariam dispostos a analisar. Ou a notícia de um determinado acontecimento internacional que, ao ser reduzida ao mínimo essencial, atrai um público que parece querer recusar-se a digerir a análise necessária para verdadeiramente perceber a questão que lhe deu origem.

E, afinal, não será o advento das redes sociais precisamente o espelho disto tudo? Não há tempo para saber, apenas tempo para tomar conhecimento do essencial. Um conhecimento frágil que não se propaga para além do ‘viral’, extinguindo-se pouco depois, abafado pelo próxima notícia, pelo produto que se segue, pelo mais recente relógio.

A ‘crise’ de identidade que grassa pela indústria relojoeira, obrigando a mudanças e novas abordagens, parece-me ter origem precisamente nesta superficialidade com que tudo é encarado. O relógio mecânico passou a ser tratado como um simples produto de moda, numa tentativa de replicar os ciclos comerciais desta última, e onde o complexo mecanismo se submeteu à aparência exterior. Cores, materiais e correias sobrepuseram-se de forma desmesurada à essência do relógio mecânico.

De repente, e ignorando centenas de anos de história, evolução e aperfeiçoamento da relojoaria mecânica, o the next big thing passou a ser o chamado relógio conectado. Um produto que na realidade não é um relógio (tal como um smartphone não é um telefone), mas antes um dispositivo eletrónico portátil capaz de correr as mais diversas aplicações que transcendem em muito a função de nos dar ou medir o tempo.

Ao comparar precisamente o essencial com o acessório, abordando as diferenças entre o Horologista e o apreciador de relógios, o texto de Jack Forster levou-me a contemplar, atrás de mim, as estantes onde exponho ciosamente as centenas de livros sobre relojoaria que fui acumulando ao longo de quase três décadas. Entre títulos como The Art of Breguet, de George Daniels, Huygens Legacy, Longitude de Dava Sobel, ou a colecção completa de Antiquarian Horology, publicada desde 1953, também se encontram edições mais recentes onde o relógio é abordado de forma mais superficial com foco particular na sua aparência. No entanto são os primeiros, e curiosamente também os mais antigos, que traduzem de forma mais completa a minha paixão pela relojoaria mecânica.

Volumes onde a Horologia, ou o estudo, a ciência e a arte relacionada com os instrumentos de medição de tempo, assume a sua melhor expressão. E provavelmente, no final disto tudo, quem me está a ler poderá não estar ainda esclarecido sobre qual a diferença entre um Horologista e um não Horologista. A resposta está no tempo. No tempo que é necessário para aprender, perceber, apreciar um relógio mecânico e todo o manancial histórico, cientifico e cultural que ele contem. Tivesse a industria relojoaria se mantido fiel a este principio, e talvez a crise de identidade que a assola não se estivesse a manifestar de forma tão aguda.

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