Com uma grande semana aí à porta, passámos em revista o cenário atual relativamente aos principais eventos relojoeiros e estabelecemos a lista das tendências – com a Dubai Watch Week a acompanhar o SIHH em alta, face à queda de Baselworld e do SalonQP. Aqui fica a bolsa de valores, com a recordação da nossa viagem ao Médio Oriente.
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No Dubai e em Genebra
A 28ª edição do Salon International de la Haute Horlogerie começa oficialmente nesta próxima segunda-feira em Genebra, sendo que vários outros eventos (a WPHH do grupo Franck Muller, o barco da LVMH, diversas marcas em showrooms de hotéis) contribuem para o que a imprensa especializada convencionou apelidar de Geneva Wonder Week. No início da presente década havia mesmo uma mini-feira alternativa (Geneva Time Exhibition) dedicada a marcas independentes – mas não demorou muito a desaparecer. E, face às recentes notícias sobre novas baixas (o grupo da Ebel e Movado) numa feira de Baselworld que já encurtou em dois dias a sua duração habitual e à debandada dos principoais grupos do SalonQP de Londres, tanto o Salon International de la haute Horlogerie como a Dubai Watch Week têm visto o seu estatuto claramente reforçado.
O SIHH apresenta este ano novas marcas nos corredores principais (Hermès, o regresso da Ralph Lauren; no ano passado já tinha ‘ganho’ a Girard-Perregaux e a Ulysse Nardin a Baselworld) para um total de 18 casas expositoras; o apêndice denominado Carré des Horlogers também está mais rico no seu terceiro ano, com a adição da F.P. Journe, da Armin Strom, da De Witt, da Ferdinand Berthoud e da Romain Gauthier para um somatório de 17 manufaturas independentes. Mas algumas das novidades apresentadas por todas as marcas referidas já tiveram um pré-lançamento há dois meses, na zona do Golfo Pérsico – mais precisamente na Dubai Watch Week, que voltou a juntar no Médio Oriente mestres relojoeiros, CEOs de várias marcas e jornalistas para um original certame em que todas as vertentes da relojoaria foram debatidas… e que está encaminhado para se tornar num incontornável rendez-vous anual.
A importância da Dubai Watch Week e a relevância que o evento está a assumir enquanto plataforma de reflexão no contexto da indústria relojoeira foram devidamente abordadas no nosso site (com vários apontamentos in loco do Carlos Torres) e também numa crónica minha publicada na mais recente edição da Espiral do Tempo, mas convém fazer aqui um rescaldo mais completo e juntar imagens de vários relógios desvelados precisamente enquanto aperitivo do Salon International de la Haute Horlogerie ou instantâneos do próprio evento.
Não sei se será de bom tom a comparação entre o Dubai e Las Vegas, mas não há dúvida de que são duas sensacionais metrópoles que representam ambas mundos à parte no contexto em que se inserem. Las Vegas com os seus casinos e construções feéricas no meio do deserto do Arizona, o Dubai com o seu modernismo e sensacionais arranha-céus na costa da Península Arábica. E se aquele costume americano de se dizer “what happens in Vegas stays in Vegas” também se pode aplicar ao Dubai, aquilo que por lá aconteceu na terceira semana do Novembro é mesmo para ser partilhado com a comunidade relojoeira.
Após o certame inaugural de 2015, estive presente na edição do ano passado e foi com agradável surpresa que constatei então a elevada significância de um certame que claramente colocava em primeiro plano a partilha do conhecimento em detrimento dos supostos interesses comerciais da entidade organizadora – o grupo familiar Seddiqi & Sons, que passa por ser o maior retalhista no segmento da relojoaria fina nos Emiratos Árabes Unidos (e o mercado do Dubai vale 750 milhões de euros anuais). Este ano, essa elevada fasquia voltou a subir: a passagem do coração do Dubai International Financial Centre para uma nova zona contígua dominada por um enorme edifício central em arco de triunfo (denominado The Gate) não só permitiu a instalação de melhores/maiores infraestruturas de apoio como dotou o evento de um emblemático enquadramento monumental que lhe faltava.
Para além do paradoxo assente no facto de ser uma entidade comercial árabe a organizar o melhor acontecimento cultural de uma indústria dominada sobretudo pelas marcas suíças, também é algo irónico que a próxima edição abandone a projetada periodicidade bienal para se realizar somente daqui a três anos – de modo a coincidir com a Expo 2020, que se realiza precisamente no Dubai, para integrar o Pavilhão Suíço. E é irónico porque a Suíça tem-se revelado precisamente incapaz de organizar uma cimeira que dê primazia às vertentes cultural e intelectual fundamentais para a sua própria renovação: as principais feiras (Baselworld, Salon International de la Haute Horlogerie) estão carregadas de novidades que é preciso vender aos clientes, os jornalistas estão demasiado atarefados a correr de apresentação para apresentação e não existe disponibilidade mental para um profícuo debate de ideias sobre o passado, o presente e o futuro. Claro que existem instituições como a Fundação da Alta Relojoaria e a promoção de fórums de debate, mas o efeito perde-se porque existe demasiada rivalidade entre os principais conglomerados de luxo e não há a concentração inerente a um evento que isole os protagonistas do setor num determinado espaço e tempo. Como sucede na Dubai Watch Week.
A ágora de agora
E que protagonistas. Mestres relojoeiros, CEOs de marcas de alta-relojoaria mais tradicionais pertencentes a grupos ou contemporâneas independentes, reconhecidas vozes da imprensa especializada e até alguns influencers voltaram a dar peso institucional à carregada agenda dos cinco dias do evento.
Há um ano, François-Paul Journe acertou na mouche ao afirmar que o local lhe fazia lembrar os relatos da Grécia antiga, quando os filósofos — de Platão a Sócrates — se reuniam entre si na ágora para debater temas essenciais para a natureza humana. Na programação deste ano voltou a haver 16 debates que contaram com quatro ou cinco desses protagonistas nos Fóruns de Relojoaria: Desenhar o Tempo; Relojoeiros do Novo Milénio; Inovação e Tecnologia; Ícones e Clássicos; Independentes; Grandes Complicações (e Género); Musa Intangível; A Questão da Modificação; Geração a Geração; Cultura da Contrafação; Pós-Venda; E-Comércio; Diversificação Estática; Tempo do Martelo; Ressurreição de Marcas; Quão Grande é Uma Coleção. Paralelamente, houve também debates sobre Etiqueta Relojoeira, a Moda Vintage, uma série de interessantíssimas palestras promovidas pelos especialistas da Christie’s mais ligadas ao mundo do colecionismo e dos leilões, várias classes de aulas (relojoeiras, de gravação, de esmaltagem e até para crianças), diversas apresentações de novidades e ainda cocktails de marcas.
De toda essa programação diária das 10 às 24h que me impediu de ver mais o que quer que fosse no Dubai, retenho algumas notas de destaque: alguns dos fórums careceram de profundidade, mas outros foram francamente animados – o das Complicações descambou num polémico confronto de géneros (hehe!) em que o politicamente correto se sobrepôs à realidade que nos indica que as senhoras dão mesmo mais relevância à estética do que à mecânica; a tendência para a modificação/personalização vai-se acentuar para oferecer algo de mais singular ao cliente, para mais com marcas a estabelecerem configuradores de relógios e a parcerias oficiais com empresas modificadoras; e o online está mesmo a modificar o comércio para sempre, com conhecidas plataformas media a abraçarem também o retalho.
Discutiram-se sobretudo ideias e soluções, mas também ética e tradição; prestei particularmente atenção aos debates à volta dos fatores de mudança e a geração dita milenial está a transportar a relojoaria para uma nova era: à medida que o tempo vai inexoravelmente avançando, os colecionadores da velha guarda vão dando lugar a novos aficionados num processo disruptivo ao qual a internet está intimamente ligada. Conheci colecionadores locais que anteriormente só conhecia através de um nome impessoal no Instagram e que revelarem ter um profundo conhecimento sobre a relojoaria, provando a força das redes sociais no estabelecimento de comunidades globais e na interação entre diferentes culturas que nunca seria possível através da imprensa tradicional. Aparentemente superficial e efémera com as suas curtas publicações de curto prazo, a nova geração é também profundamente conhecedora através da fácil partilha do conhecimento. O Dubai está muito à frente no que diz respeito à força digital e a Dubai Watch Week personifica bem essa tendência.
Perante o élan granjeado pelo evento e o reconhecimento dos especialistas, a família Seddiqi está a considerar rever a intenção de apenas organizar a próxima edição de modo a coincidir com a Expo 2020 – o ‘patrão’ Ahmed Seddiqi confessou-me mesmo a ideia de ter uma Dubai Watch Week em 2019. E vou querer estar lá outra vez… tal como todos aqueles que lá estiveram em 2017. Resta saber o que poderão fazer os grandes certames helvéticos para melhorar a vertente educativa e cultural, já que não é muito lisonjeiro para a Suíça que os princípios da sua prestigiada e secular indústria relojoeira estejam a ser melhor defendidos e promovidos no Golfo Pérsico. Para concluir, e antes de passarmos a centrar a atenção no Salon International de la Haute Horlogerie, aqui ficam mais alguns dos instantâneos recolhidos na Dubai Watch Week que ficam para a posteridade:
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