René Le Coultre (1918-2018): o Le Coultre que foi pioneiro nos relógios de pulso de quartzo

É curioso ver o apelido “Le Coultre” ser tão fortemente associado ao quartzo, tendo em conta que se trata de um apelido com uma posição bem estabelecida historicamente no domínio da conceção de calibres mecânicos. Mas sim. O apelido ‘Le Coultre’ está ligado ao quartzo porque René Le Coultre, por mais estranho que pareça, foi pioneiro na ideia de arriscar aplicar o quartzo no relógio de pulso. Morreu no passado sábado, dia 19 de agosto. Tinha 100 anos.

Estamos habituados a ouvir dizer que foi a Seiko que desenvolveu (inventou?) o relógio de pulso de quartzo, com o lançamento do Astron Quartz no final de 1969, mas este facto tem um contraponto: uns anos antes, o Centre Electronique Horloger (CEH), em Neuchâtel, na Suíça, fundado em 1959, tinha destacado uma equipa que tinha como intuito exclusivo superar o Bulova Accutron, o primeiro relógio de pulso dotado de circuito eletrónico. Estávamos em 1960.

Sob a liderança do suíço René Le Coultre, os engenheiros e especialistas de eletrónica recrutados deveriam assim conseguir responder à marca americana e foram diversas as tecnologias avaliadas. Mas, como o próprio explicou à Arcinfo, terá sido René o engenheiro que teve primeiro a ideia de arricar a integração do quartzo num relógio de pulso: “O princípio da medição do tempo com um sistema de quartzo existe desde há muito tempo. Eu simplesmente tive a ideia de adicionar a microeletrónica de maneira a poder introduzir o quartzo nos relógios que usávamos no pulso”.

E “em 1962 era oficial: o CEH focar-se-ia no quartzo,”, citando Timm Delfs num artigo de cariz histórico publicado no Journal de la Haute Horlogerie. Já em 1967 era apresentado o primeiro protótipo suíço de movimento de quartzo para relógios de pulso, designado primeiro como Beta-1, seguido dos desenvolvimentos Beta-2 e depois Beta 21. O novo movimento foi devidamente avaliado pelo Observatório de Neuchatêl e revelou uma precisão surpreendentemente superior face ao mais preciso calibre mecânico.

A confusão que muitos fazem com a Seiko tem a ver com o facto de a marca japonesa no mesmo período se ter também concentrado no mesmo objetivo que o CEH. E, na verdade, em 1969 a Seiko lançava então o seu Accutron, assim como também se assistiam a progressos de importância nos Estados Unidos, mas com resultados diferentes sobretudo em termos de qualidade. O que depois aconteceu foi a demora da Suíça em implementar e difundir em larga escala a nova tecnologia e em responder aos avanços dos outros países:

“No Japão e nos Estados Unidos, a iniciativa nascia de empresas individuais, prontas para apostar o seu dinheiro em novos produtos e a produzir em grandes quantidades (muitas vezes, demasiado largas). Na Suíça, os primeiros movimentos foram coletivos e existia ainda uma lacuna a atravessar entre investigação e desenvolvimento por um lado e produção e marketing por outro”, explica David. S. Lands no seu obrigatório Revolution in Time.

Não é nosso objetivo contar a história dos relógios de quartzo – que está repleta de meandros que merecem ser explorados com toda a atenção do mundo – mas antes deixar claro que, apesar de pioneira, a Suíça não imaginaria a repercussão que a aplicação do quartzo aos relógios de pulso viria a ter no seio da sua própria indústria. Primeiro para o mal e depois para o bem. Afinal, os relógios de pulso de quartzo acabariam por ser mais tarde também fundamentais para a revitalização da  própria relojoaria suíça mecânica depois de a terem abalado tão profundamente.

Por outro lado, é curioso constatar que foi um dos descendentes dos fundadores de uma manufatura tradicional de referência suíça que ficou indissociavelmente ligado àquele que se tornou no grande adversário da relojoaria mecânica e da relojoaria suíça. Tivemos conhecimento de René Le Coultre através do site Tiempo de Relojes. E confessamos que foi novidade para nós quando nos deparámos com o nome Le Coultre neste contexto.

Acabámos por descobrir que René Le Coultre faz efetivamente parte da família Le Coultre que esteve na base da origem da Jaeger-LeCoultre, marca que se distingue pelo incrível portefólio de calibres mecânicos e inúmeras soluções técnicas patenteadas.

René era mesmo bisneto de François-Ulysse Le Coultre, irmão de Charles-Antoine Le Coultre com quem assinou, a 6 de agosto de 1842, um contrato de Sociedade sob a denominação de ‘Antoine Le Coultre et Frère’. Esta era a segunda sociedade que Charles-Antoine criava depois de ter abandonado Jaques David Le Coultre et fils, sociedade que fundara em 1930 com o seu pai.

E eis as confusas raízes da Grande Maison de Le Sentier.

Curiosamente, René Le Coultre nasceu em Milão a 28 de julho de 1918 e esteve intimamente ligado à criação do já referido CEH. No seu percurso assumiu o cargo de diretor de investigação e desenvolvimento na Rolex, foi membro destacado da Federação Relojoeira Suíça e, nos anos 80, foi colaborador na fundação do Centro Suíço de Eletrónica e Microtecnologia de Neuchâtel.

Faleceu no passado dia 19 de agosto, pouco tempo depois de ter completado um século de existência.

Outras leituras