Sexto sentido

O que torna um relógio especialmente apelativo em detrimento de outros? Pode um relógio marcar a personalidade de uma pessoa? Há muitos fatores tangíveis e intangíveis a ter em conta, até mesmo no caso de uma senhora usar um relógio de homem; mas um deve ser levado em especial consideração: carisma.


Artigo originalmente publicado no número 73 da Espiral do Tempo (edição de inverno 2020)


Sempre gostei de ver um relógio de homem num pulso feminino. Não chego ao ponto de afirmar que isso me exacerba a libido, como já o fez o conhecido radialista Nuno Markl ao assumir mesmo um fetiche – mas a opção de uma mulher por um modelo declaradamente masculino transmite força, revela ousadia, dá a sensação de empoderamento. E sim, também é… sensual. Antes de me regozijar ao ver italianas usarem o cronógrafo Monaco da TAG Heuer, já em Portugal tinha ficado agradavelmente surpreendido em dois casos particulares detetados em fotografias de revistas sociais no dealbar do século. Um deles é o de Isilda Peixe, com o seu Rolex Daytona. O outro… não me recordo do nome da senhora do IWC Portugieser Chronograph, mas também tive oportunidade de lhe confessar pessoalmente a minha apreciação quando a encontrei numa festa da IWC em Lisboa, há cerca de 15 anos. Duas elegantes mulheres com dois relógios marcantes.

Ilustração do mostrador do Rolex Daytona
Mostrador do Rolex Daytona | © Magda Pedrosa / Espiral do Tempo

A reputação de um modelo específico e de uma marca em particular contribuem muito para a aura mística de um relógio. Um Daytona ou um Portugieser Chronograph são ícones, dois modelos de prestígio com muita história por trás. Qualquer apaixonado por relojoaria ficará agradavelmente impressionado ao vê-los no pulso de qualquer homem, quanto mais no de uma mulher – onde é menos suposto vê-los. Para mim, tanto a Isilda (a quem cheguei a oferecer uma bracelete NATO para o Daytona) como a outra senhora ficarão para sempre ligadas aos respetivos relógios. Como a nossa amiga Deborah Maldonado, a ‘IWC Girl’, ficará para sempre associada aos relógios masculinos da marca de Schaffhausen.

Deborah Maldonado, conhecida no Instagram por 'IWC Girl'
Deborah Maldonado, conhecida no Instagram por ‘IWC Girl’, com o novo Portugieser Chronograph de mostrador verde | © Deborah Maldonado

Essa associação traz à baila uma questão pertinente que é descurada pelos aficionados que tantas vezes têm mais de dez relógios: será que, ao estarmos sempre a mudar de relógio (e uso a primeira pessoa do plural porque me incluo no lote), perdemos de alguma forma a identidade que poderíamos reforçar se fôssemos mais fiéis a um determinado exemplar? É claro que, como dizia o personagem de Samuel L. Jackson em Pulp Fiction, «personality goes a long way» – e não se pode cingir a personalidade de alguém ao uso de uma determinada peça de roupa ou acessório. Mas sabe-se que, quando alguém usa conscientemente a mesma indumentária/vestuário, o mesmo tipo de óculos ou o mesmo relógio, o adereço passa a fazer parte da sua imagem. Do seu carisma. Acho que todos, mesmo os maiores fanáticos que usam relógios diferentes todos os dias, temos consciência disso… embora não façamos caso. O que gostamos mesmo é de apreciar um diferente relógio no pulso a cada dia/semana, muitas vezes adaptando o estilo da peça às circunstâncias em que estamos envolvidos. Fiquei mais consciente da questão da imagem quando entrevistámos Rui Unas e ele referiu que, mesmo sendo apreciador, não queria ter mais do que cinco relógios porque depois perdia um pouco a identidade

Kevin O’Leary, o conhecido milionário investidor do programa Shark Tank
Kevin O´Leary e um dos seus Panerai, inevitavelmente vestido com uma correia vermelha | © DR

Kevin O’Leary, o conhecido milionário investidor do programa Shark Tank, resolveu esse ‘problema’ de um modo interessante. Todos os seus relógios têm correia de pele ou bracelete de cauchu da cor vermelha. A sua imagem consiste invariavelmente numa indumentária preta e um relógio vestido de vermelho, desde o Chronomètre à Résonance da F.P. Journe até ao Code 11.59 Perpetual Calendar da Audemars Piguet. «Porque acho que deve haver continuidade em televisão, tenho de usar sempre um relógio com correia ou bracelete vermelha», diz ‘Mr Wonderful’; «não uso só relógios com esse toque de vermelho, mas na televisão tem de ser, enquanto no fim de semana posso trocar a bracelete ou usar outros relógios». Palavra-chave: continuidade. A correia/bracelete vermelha tornou-se numa imagem de marca. E quantas vezes não pensamos em alguém através do seu relógio?

Primar pela diferença

Chris Grainger-Herr, o jovem e dinâmico CEO da IWC, e na seleção do membro da imprensa especializada para a segunda parte (o formato incluía sempre o dirigente de uma marca e um jornalista) optei instintivamente pela Barbara porque sempre achei que ela ficaria bem com um Portugieser Chronograph – é alta, tem boa figura e um feitio vincado. E essa intuição minha deu azo a uma conversa que tivemos sobre perceção, sobre o que o nosso sexto sentido nos leva a inferir sobre um relógio para além dos habituais cinco sentidos.
Em psicologia, intuição é o processo pelo qual passamos, mesmo que involuntariamente ou inconscientemente, para chegar a uma conclusão sobre algo. Embora em relojoaria haja muita gente que gosta de seguir modas porque não resiste à aura de um modelo ou uma marca (por exemplo, vários exemplares de ‘lista de espera’ da linha Professional da Rolex), sempre dei muito valor à diferença das micromarcas e dos criadores independentes. E por serem menos habituais, há a perceção generalizada de que os relógios de forma – quadrados, retangulares, tonneau – tendem a ser mais preferidos pelas mentalidades artísticas.

TAG Heuer Monaco
TAG Heuer Monaco | © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Não sei se tenho mentalidade artística, embora me tenha formado em História da Arte antes de me dedicar jornalisticamente ao ténis e aos relógios. E considero o Monaco da TAG Heuer como o mais carismático relógio de sempre, uma opinião certamente questionável que posso justificar da seguinte maneira: não é o mais bonito nem o mais avançado mecanicamente, mas a combinação do peculiar formato com a opção cromática e toda a história adjacente fazem dele algo de extraordinário. Tenho a versão Calibre 12 comum, dita ‘Steve McQueen’ devido ao mostrador azul com totalizadores brancos e detalhes a vermelho, e a primeira reedição de sempre do Monaco, toda preta, de 1998. Sempre que os uso, sinto uma reação especial ou um olhar diferente das pessoas com quem interajo. Talvez gostem, talvez não gostem; talvez me considerem ‘quadradão’… mas I don’t care: como cantavam Huey Lewis e os The News nos anos 80, it’s hip to be square.

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