«À prova de água» é uma das expressões do léxico relojoeiro que, frequentemente, confunde mais do que esclarece. A começar pelo facto de não existir, atualmente, nenhum relógio que seja, tecnicamente, à prova de água, e de as normas internacionais apenas permitirem que os relógios sejam designados «resistentes à água». Mas não é este o grupo de relógios de que se pretende falar. Numa altura do ano propícia aos melhores momentos tanto dentro como fora de água, preferimos subir a fasquia para um nível mais ‘sério’; aquele que inclui os relógios abrangidos pela norma ISO 6425 que, desde 1996, regulamenta as características de um relógio dito ‘de mergulho’.
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É um facto: hoje, os relógios de mergulho tendem a fascinar mais as pessoas que se sentem mais confortáveis fora de água do que propriamente aquelas que se sentem bem dentro dela. E se, a isso, acrescentarmos o facto de que a resistência à água até 100 metros de profundidade (indicação dada no mostrador de um relógio) não garante que possamos mergulhar com ele a essa profundidade, então estamos perante um tema pertinente, cujas regras, definidas pela Organização Internacional de Normalização (ISO), merecem uma breve análise. Os padrões e caraterísticas dos relógios de mergulho são, desde 1996, regulados pela Organização Internacional de Normalização, na norma ISO 6425, cujo DIN 8306 alemão é um padrão equivalente. Além dos padrões de resistência à água até um mínimo de 100 metros de profundidade (valores testados em laboratório e não em condições reais — testes estáticos vs. dinâmicos, respetivamente), a norma ISO 6425 estabelece, também, os requisitos mínimos dos relógios mecânicos de mergulho, requisitos que se asseguram pela verificação de 11 características essenciais, e que se enumeram de seguida.
1. Legibilidade
O ar não é a única coisa que os mergulhadores deixam para trás ao abandonar a superfície. A luz é outros dos elementos que vai sendo absorvido quanto maior for a profundidade. À medida que descemos, as cores perdem força, desaparecendo, primeiro, o vermelho e, por último, o azul.
Assim, a legibilidade de um relógio de mergulho é garantida pela presença de marcações permanentes no mostrador do relógio, claramente discerníveis a pelo menos 25 cm (9,8’’). Para construir estas marcações, os fabricantes recorrem a ponteiros e marcadores luminosos cuja leitura debaixo de água é assegurada pela aplicação de pigmentos luminescentes que, atualmente, são feitos, na maior parte dos casos, à base de Super-LumiNova. Na escuridão total, a indicação de que o relógio está em funcionamento deve ser garantida por um ponteiro de segundos central, com uma extremidade luminosa.
2. Antimagnetismo
A resistência aos campos magnéticos é outro aspeto regulado pela norma ISO. Esta caraterística é testada através da exposição do relógio a um campo magnético de corrente contínua de 4.800 A/m, por três vezes. Após o teste, o relógio deve manter uma precisão mínima de ± 30 segundos/dia, conforme a medição obtida antes do teste. Não sendo este um valor impressionante para os níveis de precisão que, atualmente, um movimento mecânico é capaz de alcançar, é, no entanto, um valor que aponta para os níveis de segurança que devem ser assegurados em cada dos tipos de utilização a que o relógio será submetido.

3. Resistência ao choque
A resistência ao choque é testada por dois ensaios (um, no lado das 9 h, e outro no vidro e perpendicular ao mostrador). O choque é, geralmente, aplicado por um martelo de plástico duro de três quilos, montado como um pêndulo, e que atinge o relógio a uma velocidade de impacto de 4,43 m/s. Após o teste, a precisão do relógio não pode oscilar em mais do que ± 60 segundos/dia.

Corda automática | Aço | Ø 42 mm | Foto: cortesia Panerai
4. Elementos de fixação
O teste de fixação, que analisa a solidez da pulseira, recorre à aplicação de uma força de 200 N (45 lbf) sobre cada asa de mola (ou ponto de fixação), em direções opostas, e sem que se verifiquem danos no relógio ou nesses pontos de fixação. As braceletes dos relógios devem ser feitas do mesmo material utilizado no fabrico da caixa. Algumas pulseiras e correias de mergulho estão equipadas com um dispositivo de extensão que permite que o relógio se possa adaptar à espessura do fato de mergulho.
5. Estanqueidade sob pressão atmosférica
Uns dizem 300 metros, outros 200, e há ainda quem se limite aos 100. Contudo, quem o sabe é a ISO, que define que apenas a partir da resistência a 1.0 MPa é que um relógio pode ser considerado de mergulho. 1.0 MPa é a pressão equivalente a 10 atm, a 100 metros ou 330 pés de profundidade. Mas não nos podemos esquecer que um mergulhador de recreio raramente se aventura para lá dos 40 metros, barreira a partir da qual entram em ação especificações que pertencem ao universo do mergulho técnico, e que requerem treinos extensos, inalação de misturas de gases, paragens bastante longas para descompressão e equipamento adequado.
6. Resistência à água salgada
Além de terem de ser resistentes à imersão, as caixas dos relógios de mergulho têm de ser constituídas por ligas metálicas capazes de suportar a agressividade das corrosões galvânicas provocados pela água do mar. Nesse âmbito, os fabricantes recorrem, habitualmente, a aços austeníticos, como o 316L ou o 904L, e ainda a ligas leves, naturalmente imunes à corrosão, como o titânio, a cerâmica, as resinas sintéticas ou os plásticos.
Também conhecido por «teste de resistência química», este teste corresponde a um ensaio por imersão do relógio numa solução de NaCl (cloreto de sódio) a 30 g/l, durante 24 horas, e serve para testar a resistência dos materiais à ferrugem. Esta solução de água de teste tem uma salinidade comparável à da água do mar normal.

7. Luneta de escala
A norma ISO 6425 exige que um relógio de mergulho tenha um «dispositivo de pré-seleção de tempo», pelo que a maioria dos modelos possui uma luneta rotativa que permite medir o tempo de imersão decorrido. Ao alinhar o ponteiro dos minutos com o 0, o mergulhador passa a poder controlar, visualmente, o tempo exato de mergulho.
As lunetas de mergulho devem girar apenas numa direção, neste caso, no sentido anti-horário. Desta forma, o movimento destes elementos não pode ser acidentalmente convertido para o sentido horário, o que interferiria com a contagem do tempo total de mergulho. Alguns modelos resolvem este problema ao utilizar aros graduados rotativos internos (sob o vidro do relógio), que não podem ser movimentados inadvertidamente.
8. Fiabilidade do relógio sob pressão de água
Os fabricantes de relógios de mergulho conferem estanqueidade aos seus relógios, selando a caixa em diversos pontos nevrálgicos. Estes ‘pontos de perigo’, através dos quais a água pode passar, são o fundo da caixa, o bordo do vidro do relógio e a coroa. Para impermeabilizar eficazmente um relógio, são usados elementos de vedação, no fundo e no vidro, que mantêm a água do lado de fora. Estes elementos de vedação podem ser constituídos por diferentes materiais, como plástico, borracha sintética ou mesmo cortiça. A ISO exige que, neste teste de fiabilidade, se conserve o relógio em imersão sob 30 cm de água, durante pelo menos 50 horas.
9. Resistência à temperatura
Este teste exige que o relógio seja submetido a uma imersão em 30 cm de água às seguintes temperaturas (que deverão variar a cada cinco minutos): 40° C, 5° C e novamente 40° C. A transição entre temperaturas não deverá exceder o minuto. Excetuando este teste de resistência ao choque térmico, todos os restantes testes da norma ISO 6425 devem ser conduzidos a uma temperatura entre 18° C e 25° C.

10. Coroas, botões e elementos de acerto ou controlo semelhantes
Sendo, possivelmente, o elo mais fraco de um relógio de mergulho, a coroa é, habitualmente, alvo de muita atenção por parte dos fabricantes, já que tem de ser frequentemente manuseada para se acertar a hora e, uma vez que tem de assegurar, posteriormente, a reposição dos níveis de resistência à água do relógio. Razão por que, neste elemento, o vedante é bastante mais complicado, uma vez que contacta diretamente com o interior do relógio. A maioria dos modelos de mergulho está equipado com coroas aparafusadas, que têm um interior complexo e podem ser constituídas por até dez componentes individuais. Em alternativa, existem modelos em que um manípulo de bloqueio ou uma tampa extra protegem a coroa durante o seu manuseamento.
11. Fiabilidade do relógio sob pressão da água (a 125% da capacidade indicada)
Seja qual for a solução utilizada, a norma internacional ISO 6425 define que os relógios têm de ser testados em água estática, ou calma, sob 125% da pressão nominal. Quer isto dizer que um relógio com uma classificação de 200 metros apenas será resistente à água se estiver imóvel e abaixo de 250 metros de água estática.

Nesse âmbito, a ISO 6425 é bastante específica e exige a sequência de testes de seguida indicada, com recurso a máquinas específicas – como a da Panerai que podemos ver na imagem acima.
• Imersão do relógio em água abaixo de 125% da pressão nominal, com uma força de 5 N perpendicular à coroa, durante dez minutos.
• O relógio deverá estar imerso num recipiente de pressão adequado e deve ser submetido a 125% da pressão nominal, durante duas horas (no caso de um modelo capaz de resistir a uma pressão de 20 bar, o teste corresponde a uma pressão equivalente à de 250 metros). A pressão deve ser aplicada durante um minuto. Subsequentemente, a pressão deverá ser reduzida a 0,3 bar, no prazo de um minuto, e assim mantida durante uma hora.
• Para mergulhos que recorram a misturas de gases, o relógio deverá ser imerso numa mistura de gases respiráveis (com hélio enriquecido), num recipiente de pressão adequado e submetido a 125% da pressão nominal, por um período de 15 dias. Subsequentemente, a pressão deve ser reduzida ao nível normal, durante três minutos.
A pressão de 125% exigida neste teste representa uma margem de segurança de 25% contra variações de pressão dinâmica e densidade da água (a água do mar é entre 2% e 5% mais densa do que a água doce). O teste considera também eventuais degradações dos vedantes do relógio.
Ao longo de todos estes testes, qualquer exemplar que evidencie sinais de passagem de água ou condensação deve ser excluído.

Garantia, ficção ou realidade?
Na fábrica, quando testado para efeitos de garantia de resistência à água, o relógio encontra-se num ambiente invariavelmente artificial, que é muito diferente do que o relógio terá de enfrentar durante um mergulho em condições reais. Nestes testes realizados em ambiente controlado, o relógio está totalmente estático, as juntas são novas e a caixa acaba de ser montada para que nada comprometa a sua resistência à água. No entanto, a resistência do relógio à água ficará sempre comprometida pelo envelhecimento natural das suas juntas. Golpes e outros impactos podem dar origem a deformações nos componentes da caixa, deformações essas que comprometem a sua estanqueidade. Todos estes imponderáveis dão azo a que os fabricantes considerem uma margem de segurança generosa, para que não sejam responsabilizados, caso o relógio acabe por deixar entrar água.
Notas finais
Quando são fabricados, os relógios de mergulho são testados quanto à resistência à água. Contudo, não são testados quando são vendidos nas lojas, o que pode acontecer meses ou anos depois de terem sido produzidos. A resistência à água não é, pois, uma caraterística permanente, pelo que o tempo durante o qual um relógio permanece estanque não pode ser medido como um todo. Se valoriza a estanqueidade do seu relógio, verifique-a uma vez por ano e peça para substituir os vedantes.
Testar os relógios de mergulho para que estejam em conformidade com a norma ISO 6425 é um ato voluntário e envolve custos, pelo que nem todos os fabricantes apresentam os seus relógios para certificação de acordo com esta norma. Apenas os relógios que cumprirem os requisitos definidos pela norma ISO 6425 podem usar a designação «relógios do mergulho», seguida da profundidade de mergulho pretendida, em metros. A simples designação «relógios do mergulho» não é permitida. Da mesma forma, apenas é permitida a utilização de valores múltiplos de 100 para a indicação da profundidade suportada pelo relógio.
Finalmente, e para que não haja dúvidas, a norma ISO 6425 define que o fabricante ou distribuidor de relógios ‘de mergulho’ deve disponibilizar um manual de instruções com cada relógio…
Texto originalmente publicado no número 67 da Espiral do Tempo (verão 2018)