Tiro no porta-aviões!

É o tema do momento na indústria relojoeira: Baselworld acabou de sofrer (mais) um rude golpe – o Swatch Group anunciou que não iria participar na próxima edição do certame! As suas 18 marcas juntam-se às centenas que têm abdicado nos últimos anos. A maior feira mundial do sector não se vai afundar, mas para esconjurar as nuvens negras que pairam no horizonte terá de se reinventar e adaptar melhor às exigências dos tempos modernos…

por Miguel Seabra

Entrada interior do Hall 1.0, antes da abertura do dia de imprensa que antecede a abertura oficial de Baselworld. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Entrada interior do Hall 1.0, antes da abertura do dia de imprensa que antecede a abertura oficial de Baselworld. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Parece um daqueles contos tradicionais em que a ganância desmesurada é castigada de modo exemplar. Já aqui o tínhamos dito antes: a entidade organizativa da maior feira de relojoaria do mundo julgou que tinha a sua própria clientela na mão e explorou os expositores até ao tutano, numa era em que o próprio modelo de negócio se tem alterado significativamente com a nova dimensão digital e a eclosão das redes sociais. De há uns anos para cá, a lógica reação das marcas mais modestas foi a de deixar de pagar avultadas quantias para fazer parte de Baselworld e várias marcas independentes de alta-relojoaria até passaram a expor no novo Carré des Horlogers do Salon International de la Haute Horlogerie, em Genebra. A organização pareceu encarar essa deserção com demasiada naturalidade e ainda lançou a bandeira da exclusividade sob o lema ‘menos mas melhores’, mas o descontentamento era latente e patente – tanto que a diretora do salão Sylvie Ritter foi prosaicamente procurar novos desafios profissionais (recentemente substituída por Michel Loris-Melikoff) e o diretor financeiro Christophe Biollaz seguiu o mesmo caminho. Até que surgiu a bomba na passada semana, que levou mesmo à ‘destituição’ de René Kamm, CEO do grupo MCH, a entidade organizadora do certame que viu as suas ações baixarem 14 por cento após o inesperado anúncio do dia 29 de Julho.

Uma das pontes sobre o Reno. Baselworld é o maior evento anual realizado em Basileia. ©Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Uma das pontes sobre o Reno. Baselworld é o maior evento anual realizado em Basileia. ©Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Em plenas férias relojoeiras, Nick Hayek Jr, filho do lendário Nicolas Hayek e atual sucessor do pai na gestão do maior pólo relojoeiro do mundo, anunciou que as marcas do Swatch Group (17 das 18, já que a Swatch não costuma estar presente) não iriam participar na edição de 2019 – citando incapacidade da organização em compreender a realidade dos novos tempos, em trabalhar juntamente com as principais marcas para proporcionar algo de diferente, em ajustar o seu modelo de negócio às novas exigências. Mesmo em férias, a notícia caiu que nem uma bomba e semeou o pânico entre os meus colegas, que desataram a conjeturar e sobretudo a vaticinar o fim de Baselworld, antecipando a saída de colossos como a Rolex ou a Patek Philippe e questionando a permanência das companhias do grupo LVMH (TAG Heuer, Zenith, Bvlgari), da Chopard ou mesmo da Seiko. Tudo marcas capazes de organizar os seus próprios eventos.

Conferência de imprensa da Bvlgari a encher o corredor principal do Hall 1.0. ©Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Conferência de imprensa da Bvlgari a encher o corredor principal do Hall 1.0 no dia de imprensa. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Não sei se é por estar em férias, se é por já ter visto muita coisa nestas duas décadas e meia de jornalismo especializado na matéria ou se é por ser conhecedor do longo historial da considerada maior feira relojoeira do mundo, mas não fiquei tão alarmado e nem sequer imagino que a existência do certame esteja em risco. A feira de Basileia comemorou cem anos recentemente, sobreviveu a duas Guerras Mundiais (embora a Suíça se tenha mantido neutral…), sobreviveu à crise do quartzo entre a década de 70 e a de 80, sobreviveu aos efeitos do 11 de Setembro e sobreviveu às epidemias asiáticas, sem esquecer que a ameaça dos smartphones também esteve bem presente no horizonte antes de se esvanecer face à boa saúde da relojoaria mecânica. O próprio Swatch Group, em 2003, já se tinha ausentado de Baselworld para regressar alguns anos depois. E o que todos parecem esquecer é que, mesmo nesta nova era de internet hiper-rápida em que a negociação interpessoal é facilitada virtualmente e a comunicação empresarial já quase que pode ser feita unicamente com o apoio das redes sociais, o contacto direto entre os players da indústria mantém um valor inestimável. É por isso que Baselworld continuará a atrair marcas, clientes e jornalistas.

Ano novo, vida nova

Vai ter é de seduzir os visitantes de uma maneira completamente diferente já a partir de 2019 – ou seja, Baselworld terá de se reinventar, tal como a própria cidade terá de abdicar de um gritante oportunismo já amplamente ridicularizado na imprensa e nas redes sociais. Porque, mesmo se o tal contacto presencial é inestimável, deixou de ser obrigatório; para mais, com a queda abrupta do número de expositores significativos também a afluência vai baixar e, consequentemente, a procura vai descer. Os hotéis vão deixar de cobrar quatro vezes o preço habitual dos quartos, os restaurantes vão hesitar em manter o menu inflacionado durante os dias da feira, os taxistas vão deixar de exagerar na bandeirada. É verdade que na Suíça não há borlas e tudo se paga caro, mas é fundamental que a cidade acorde para uma situação de emergência que pode ter repercussões críticas na economia local se os abusos continuarem…

Um dos 'nossos' pontos altos de Baselworld: o jantar 'Schnitzel' de amigos jornalistas e criadores independentes. Pago a 60 CHF à cabeça. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Um dos ‘nossos’ pontos altos de Baselworld: o jantar ‘Schnitzel’ de amigos jornalistas e criadores independentes. Pago a 60 CHF à cabeça. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Na minha perspectiva, tanto a Rolex como a Patek Philippe (embora sejam marcas genebrinas) irão continuar a apoiar Baselworld. Por uma questão de estatuto e porque o dinheiro não é problema. A sua permanência só reforçará a sua importância, sendo que a ausência das marcas do Swatch Group irá permitir a muitas outras marcas de pequeno e médio porte ganhar maior espaço mediático – sobretudo as independentes. O buraco físico deixado pela ausência dos stands da Omega, Longines, Breguet, Blancpain, Tissot, Glashütte Original, Harry Winston, Jacquet-Droz, Rado, Union Glashütte, Mido, Hamilton, Certina e Calvin Klein (para não falar da parte de produção, a começar pela fábrica de movimentos ETA) no meio do Hall 1.0 será preenchido de uma maneira ou de outra, e haverá muitas empresas felizes por assumirem um melhor posicionamento no pavilhão principal da feira.

O emblemático óculo sobre a Messe Platz, a praça onde está localizada a infrstrutura que acolhe Baselworld. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo
O emblemático óculo sobre a Messe Platz, a praça onde está localizada a infrstrutura que acolhe Baselworld. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Claro que há quem tenha a perder com a situação. Baselworld é um evento babilónico mas democrático na sua génese, chegando a ter mais de mil expositores com as marcas de joalharia e fornecedores (desde as correias ao fabricantes de estojos, dos produtores de vidros aos fazedores de simples parafusos); apesar da enorme confusão e stress, todos ficavam a ganhar pelo facto de estar tudo ali no mesmo lugar. Com a criação de uma feira específica de fornecedores de componentes em Genebra, saíram centenas de pequenos expositores e houve zonas em edifícios adjacentes que tiveram de ser fechadas ao público por estarem vazias; muitas marcas pequenas também acharam que não fazia mais sentido pagar valores obscenos quando hoje em dia há modos de canalizarem essa importante fatia do budget anual em ações mais construtivas e itinerantes. E até uma marca de maior peso como a Breitling testou com sucesso a organização de vários eventos continentais para a apresentação itinerante de novos produtos a clientes e imprensa, provando que essa é uma alternativa perfeitamente viável a Baselworld.

Conferência de abertura da edição de 2018. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Conferência de abertura da edição de 2018. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

No espaço de cinco anos, curiosamente a partir da inauguração das infraestruturas renovadas com a cara assinatura do atelier Herzog & de Meuron (430 milhões de francos…) e sobretudo nos dois últimos anos, a organização levou um rude golpe financeiro com a perda dessas centenas de expositores representando milhões de lucro, sem esquecer a baixa de 150.000 para 100.000 visitantes. O grupo MCH, que deveria estar melhor preparado devido à acumulação de críticas e à experiência acumulada em organizações como a Art Basel e Masterpiece London, não soube interpretar bem os sinais e as queixas, apesar de esboçarem algumas novidades sem grandes consequências. A ligação internet continuou miserável (para poderem cobrar às marcas a suas próprias ligações nos respetivos stands, aparentemente!) e na conferência de imprensa de abertura da edição de 2018 não houve sequer lugar à habitual sessão de perguntas e respostas: quiseram escapar à ignominia. A fatura por tamanho autismo foi elevada e pode continuar a sê-lo. Só o cheque anual do Swatch Group era de 50 milhões de francos suíços…

Qual a via?

Soluções para inverter a tendência? Não vai ser fácil, perante a aparente falência do modelo. Em plena era digital, as compras dos retalhistas e as apresentações já se fazem virtualmente. Os grandes grupos já têm presença local e fazem as suas próprias apresentações nacionais. Há cada vez mais boutiques monomarca que facilitam o contacto direto com o aficionado e o consumidor. As novidades passam logo para a internet. E os certames vão sofrendo. Em Paris, o Salon Belles Montres já não se realizou em 2016. O SalonQP de Londres também decaiu nos últimos dois anos. Por outro lado, o SIHH de Genebra, lançado pelo grupo Richemont no início da década de 90 precisamente porque a confusão de Baselworld não oferecia as melhores condições e que hoje em dia conta também com marcas ‘amigas’ (Audemars Piguet, Girard-Perregaux, Ulysse Nardin, Hermès, as pequenas companhias independentes que formam o Carré des Horlogers), está de boa saúde e até ganhou com a descolagem de Baselworld no calendário e a passagem para Janeiro em 2009, mostrando este ano algumas novidades que parecem inspiradas nos fóruns e debates da Dubai Watch Week – que hoje em dia é claramente a referência dos certames relojoeiros, embora seja dedicada à imprensa e consumidores finais (ao passo que as grandes feiras são sobretudo para distribuidores e retalhistas).

Entrada para o Hall 2.0, que em 2019 teve setores fechados por falta de expositores. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo
Entrada para o Hall 2.0, que em 2019 teve setores fechados por falta de expositores. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Baselworld vai ter de assumir um papel mais construtivo no âmbito da cultura relojoeira e fomentar eventos abertos também ao público em geral. Vai ter de debater mais e melhor com as marcas expositoras para encontrar as melhores soluções para manter o fluxo de visitantes. Vai ter de inovar e melhorar em todos os aspetos para que todos voltem a encarar o evento como algo de incontornável. Não me parece que uma passagem de Março para janeiro, de modo a recolar-se ao SIHH para rentabilizar as viagens desde o estrangeiro, seja uma solução a considerar. O certo é que nós, de uma maneira ou de outra, lá estaremos de novo em 2019 na cidade banhada pelo Reno – como sempre temos estado desde o início da Espiral do Tempo, em 2000, e até antes, na década de 90, quando Baselworld era um certame verdadeiramente popular na era que antecedeu à criação dos grandes conglomerados de luxo que fizeram inflacionar o preço dos relógios.

A Espiral do Tempo em destaque na exposição das revistas especializadas à entrada para o gabinete de imprensa. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo
A Espiral do Tempo em destaque na exposição das revistas especializadas à entrada para o gabinete de imprensa. © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

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