Uma arte de todos os sentidos

Por vezes, o essencial escapa-nos. Porque a relojoaria se exprime mais através do contacto físico do que através dos olhos e mesmo que a visão seja mais evidente, os relógios apelam a todas as nossas capacidades sensoriais, sem que muitas vezes tenhamos essa perceção.

Sem nos apercebermos, os cinco sentidos condicionam-nos. Associados aos mais profundos recantos do cérebro, determinam comportamentos e a relação com objetos — incluindo os mais inócuos — sem que realmente nos demos conta. Assim, aquando do contacto com um relógio, assimilamos uma multitude de informações sensoriais que não analisamos devidamente, mas que acabam por influenciar-nos.

A política de criação relojoeira deveria, então, ter em conta todos estes aspetos, numa abordagem que se pode definir como total, de 360 graus ou mesmo plurissensorial. Mas isso raramente acontece. Porque somos criaturas que privilegiam um sentido em detrimento de todos os outros: a visão. E este sentido faz-nos concentrar mais sobre o design, as formas, as cores, os contrastes, os códigos sociais e estéticos, ou seja, tudo o que fica na retina. Só que a relojoaria é bem mais do que isso. Consiste em oferecer à pessoa um companheiro. Uma experiência de vida no quotidiano. Um contacto físico permanente que se apoia, quer se queira quer não, na visão, na audição, no olfato e no tato. 

Cvstos Challenge III Chronograph-S
Botões sobredimensionados de modo a garantir conforto aquando da pressão no Challenge III Chronograph-S. | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

A problemática pode ser bem resumida pelo diretor de desenvolvimento de movimentos da Richard Mille: «Numa viatura, a porta esquerda bate como a porta direita. Apercebemo-nos logo se está bem fechada ou não», explica Salvador Arbona; «o nosso design está próximo do design automóvel; é importante trabalhar estes detalhes, porque os pequenos ruídos e as sensações transmitem a impressão de qualidade retida pela memória». Uma tarefa de tal amplitude que nem sempre é levada a cabo, mesmo no seio das equipas de desenvolvimento de produto: «Existem muitos critérios para criar uma sensação uniforme e qualitativa que é difícil de controlar», conclui Salvador Arbona.

Sempre à escuta

Depois da visão, a audição é, certamente, o sentido mais importante no âmbito da relojoaria. Primeiro, porque ela nos remete diretamente para a mais nobre das complicações, as sonneries. E é a escuta que estabelece a ponte entre nós e os repetidores de minutos, que produzem uma acústica complexa, difícil de apreender, e torná-la qualitativa. Mas, além dessa evidência, o ouvido assume um papel mais complexo e subtil, que é o da noção de qualidade. O ruído dos componentes revela os passos que os fizeram nascer e também o sentido do detalhe das marcas que se vangloriam, justamente, de trabalhar nos mais ínfimos recantos dos seus produtos.

Somos criaturas que privilegiam um sentido em detrimento de todos os outros: a visão. Faz-nos concentrar mais sobre o design, as formas, as cores, os contrastes, os códigos sociais e estéticos, ou seja, tudo o que fica na retina. Só que a relojoaria é bem mais do que isso. Consiste em oferecer à pessoa um companheiro. Uma experiência de vida no quotidiano. Um contacto físico permanente que se apoia na visão, na audição, no olfato e no tato.

Por exemplo, o ruído do rotor está muito presente em determinados modelos — em particular, os que estão equipados com o calibre ETA 7750 e os seus múltiplos derivados. Este movimento cronográfico, omnipresente em diversos níveis de preço, representa o extremo do som gerado pelos rolamentos de esferas de cerâmica que permitem a rotação da massa oscilante sem fricção. E o barulho, oco e plástico, é pouco agradável e nada qualitativo. Já o ruído da rotação da coroa, associado ao ato de fornecer corda ao relógio, é um aspeto igualmente a considerar. Quando o tambor de corda está a rodar, dá azo a um clique que o impede de voltar atrás e de rolar descontroladamente; a mola de linguete vai batendo em cada dente do tambor e, quando roda muito depressa, provoca um ruído próximo do fecho de um zíper que não é propriamente lisonjeiro. Mas a temática também vale para os relojoeiros em ação; muitos operadores de maquinaria CNC revelam saber, pelo ouvido, quando a sua máquina está bem regulada — quando ela ‘ronrona’, quando ela faz um ‘barulho bom’. Nessa senda, o mestre Andreas Strehler diz a quem o quiser ouvir que «o som que escutamos quando fazemos uma anglage é tão importante como a sensação ou a vista».

Chronomètre FB 2RE.1 num pulso masculino que segura uma pasta.
Chronomètre FB 2RE.1 | © Ferdinand Berthoud

Pressão do dedo

O tato é um sentido que intervém aquando do manusear de qualquer relógio. Durante o processo de dar corda, por exemplo, é essencial que o contacto com a coroa seja doce. Uma coroa demasiado pequena exige muito trabalho de dedos e obriga ao uso de mais força, tornando a experiência desagradável ou mesmo dolorosa. Também obriga a que se dê mais voltas. Uma coroa maior associada a um trem de rodagem de forte desmultiplicação torna a operação mais fluída, mais doce, mais qualitativa. 

Detalhe dos botões sobredimensionados do Cvstos SeaLiner Marea QP
Botões sobredimensionados de modo a garantir conforto aquando da pressão no SeaLiner Marea QP. | © Paulo Pires/Espiral do Tempo

Mas o aspeto mais espinhoso é o do acionamento dos cronógrafos. Entre um botão grande e comprido ou um mais pequeno, a pressão exercida transforma a experiência. É bem mais confortável acionar uma superfície plana maior ou ligeiramente texturada para melhor corresponder ao dedo — sobretudo, se é necessário exercer forte pressão, como é frequentemente o caso. A questão subjacente tem que ver com o calibre e com a forma como foi concebido. Num mundo ideal, todos os botões (um, dois ou três, consoante o tipo de cronógrafo) apresentam um perfil de resistência idêntico. Qualquer que seja a operação em curso, porque o botão de parar também é responsável pela retoma a zero. Os cronógrafos de última geração incluem alavancas de dupla dentição ou uma mola integrada que uniformizam a ação. Geram cliques bem distintos que confirmam que a pressão sobre o botão é eficaz. E este acaba por ser um aspeto digno de caderno de encargos para a Rolex, que concretizou um ruído muito peculiar e límpido para as suas lunetas rotativas.

«O tato assume um papel essencial no processo de compra, porque qualquer sensação de incómodo arruina o mais importante contacto com um relógio: o primeiro.»

À flor da pele

Mas o tato não é apanágio da ponta dos dedos. Também se estende ao pulso, ao contacto da caixa e da bracelete ou correia com a pele. Não há nada mais desagradável do que uma correia de couro encharcada em suor. Do que uma bracelete em titânio gelada num dia de inverno. Do que um fundo de caixa abrasivo ou que irrita a pele devido a uma gravura mal efetuada. Do que uma caixa demasiado grande que ultrapassa a largura do pulso ou roda porque a arquitetura do fundo e das asas não é ergonómica. E o que dizer dos fechos de lâmina dupla com báscula demasiado comprida e que pressionam os ossos demasiado pequenos dos pulsos? É preciso fugir disso como da peste e optar por fechos de báscula do tipo borboleta, com três lâminas. 

Ferdinand Berthoud
A Ferdinand Berthoud trabalha bem a sensação de dar à corda ao privilegiar as coroas sobredimensionadas associadas a uma cadeia cinética bem estudada. | © Ferdinand Berthoud

O tato assume um papel essencial no processo de compra, porque qualquer sensação de incómodo arruina o mais importante contacto com um relógio: o primeiro. Toda a empatia e a vontade que um relógio possa ter gerado através da vista ou em imagens no Instagram e numa qualquer revista são contrariadas pelo desconforto.

Na ponta do nariz

O mesmo se passa relativamente ao olfato. O sentido mais arcaico que possuímos influencia de modo ainda mais subliminar do que todos os outros. E isso é reforçado pelo facto de o negligenciarmos quotidianamente, tão saturado por poluição diversa e fragrâncias artificiais. Mas o odor químico de um couro ou de um cauchu emite um sinal que pede ao nosso cérebro para se afastar. Em particular, as novas gerações de couros vegetais ou sem crómio incluem resíduos olfativos nada aliciantes.

Rolex submariner. Vista oblíqua em fundo claro.
A Rolex trabalha cuidadosamente no som do clique das suas lunetas rotativas, como na do Submariner | © Rolex

O perigo não reside apenas aí. Está também nos estojos — a quinta roda da carroça, totalmente negligenciados pelas marcas e fabricados por fornecedores externos. Feitos em madeira de aglomerado e envernizado, falsos couros e tecidos sintéticos acolchoados. Tudo colado e encerrado numa pequena caixa, posteriormente embalada num qualquer plástico. Muitas vezes, os estojos cheiram a solvente, até mesmo em certas execuções de qualidade e com bom aspeto. O olfato é um subestimado domínio sensitivo que tem sido mal compreendido pelas marcas relojoeiras e respetivos clientes. Felizmente, ainda ninguém pensou em colocar um relógio na boca para testar o paladar. Talvez um dia, quem sabe…

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