Uma história que se repete

Às vezes, vale a pena revisitar capítulos da história para melhor compreendermos a realidade de hoje, bem como a sua evolução. A propósito dos relógios homage, uma reflexão sobre a relojoaria asiática tendo como ponto de partida as origens da relojoaria suíça.

Empreendedores determinados em prosperar começaram a criar relógios que são imitações mais baratas dos que são produzidos pela nação dominante do mercado relojoeiro e até batizam as suas criações com nomes inspirados no idioma deste país. A estratégia rapidamente atrai muitos consumidores que não têm condições ou não querem comprar relógios mais caros desse país dominante, mas que desejam ter acesso aos seus produtos de luxo, mesmo sabendo que não passam de imitações.

Quem pensou na China como o país de origem de tal prática e na Suíça como a nação dominante relojoeira, pensou de forma errada — simplesmente porque não foi revelado o período do relato, para efeito dramático. O período ao qual me estava a referir é o século XVIII, quando a Inglaterra dominava o mercado relojoeiro e produzia os melhores e mais cobiçados relógios de luxo da época; já a Suíça, ainda sem tradição no setor, começava a produzir relógios baratos batizados com nomes ingleses, atraindo assim muitos consumidores de menor poder aquisitivo, mas ávidos pelo mercado de luxo.

Rebecca Struthers desva o mito da ‘falsificação holandesa na sua tese de pós-doutoramento | Foto: Struthers Watchmakers

Para um melhor entendimento do tema, na sua tese de pós-doutoramento «Desvendando o mito da ‘falsificação holandesa’» (Birmingham City University, 2016), Rebecca Struthers refere-se à expressão «falsificação holandesa» para designar relógios produzidos supostamente em Londres no final do século XVIII. Como citado no resumo da sua tese, os relógios que foram o objeto do seu estudo receberam tal designação porque apresentavam caraterísticas físicas de relógios holandeses, desacreditando-se que foram, de facto, produzidos em Londres. Na verdade, é normalmente aceite que Genebra é a sua cidade de origem. De acordo com o estudo, estes relógios não eram de alta qualidade, nem representaram uma contribuição importante para a história da relojoaria, sendo tratados como falsificações de pouco valor. Porém, marcaram o início da fabricação em larga escala na indústria relojoeira e tiveram um papel importante ao permitir o acesso de uma maior parcela da população a relógios mais acessíveis, que antes eram um privilégio dos abastados.

Blancpain X Swatch Bioceramic Scuba Fifty Fathoms Ocean of Storms | Foto: Swatch

Este episódio da história vem mostrar, curiosamente, que a indústria relojoeira helvética começou por produzir imitações e, com incentivos do governo interessado no seu desenvolvimento, e graças à cultura protestante calvinista local — que, embora não permitisse a produção de itens de luxo, permitia a produção e comercialização de relógios por considerá-los objetos úteis para saber as horas da missa e do trabalho —, os suíços conseguiram prosperar e superar a hegemonia da Inglaterra, tornando-se assim na referência da indústria relojoeira. No entanto, nos dias que correm, a história parece, de certa forma, repetir-se: atualmente, um dos grandes desafios das marcas de relógios suíços e do seu governo é a concorrência de outros mercados, nomeadamente os mercados asiáticos, que começaram por ganhar maior força produzindo imitações mais baratas dos famosos relógios suíços, mas que agora parecem começar a trilhar o seu próprio caminho com produções originais, de boa qualidade e diferencial de preço mais acessível.

Rolex Explorer II - capa Edt74, em ambiente de rocha e vegetação na Serra da Arrábida © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Rolex Explorer II | Foto: Paulo Pires / Espiral do Tempo

No caso específico do Brasil — uma realidade que conheço melhor — tudo começou com a ‘invasão’ de efetivas falsificações que procuram disfarçar o que realmente são autodenominando-se de ‘réplicas’, mas que não passam de produtos ilegais que imitam um produto original, enganando ou não quem os usa ou quem os vê a serem usados. Em contrapartida, nos últimos anos, começaram por aqui a ganhar força os ditos relógios de tributo ou homage, que teoricamente ‘prestam homenagem’ a ícones da relojoaria, mas, de forma diferente das falsificações ilegais, exibem o nome real da marca que o produziu. Alguns destes modelos assumem-se como verdadeiras homenagens, outros não são assumidos como tal, mas reúnem caraterísticas estéticas que foram vencedoras em determinados modelos de sucesso.

Furlan Marri Ref. 1022-A “Laccato Nero” | © Furlan Marri

Os relógios assumidamente homage reproduzem muito bem as caraterísticas do relógio homenageado, utilizando, por exemplo, aço 316L, vidro de safira, luneta de cerâmica, acabamento aceitável e até movimentos de qualidade razoável, pelo que as marcas conseguem assim entregar um bom produto com preço acessível. Por outro lado, ao exibir o nome do fabricante deixam claro que não se trata do modelo original. No entanto, mesmo perante este cenário, podemos questionar se o público em geral, não familiarizado com o mundo dos relógios, saberá distinguir um relógio original de um relógio homage ou se considera relevante o facto de ser um relógio que tem como base dos seus códigos estéticos um relógio que já existe.

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Seiko Prospex 1968 Divers Modern Re-Interpretation GMT | Foto: Paulo Pires/ Espiral do Tempo

Sinceramente, eu ainda não tenho uma opinião completamente formada sobre o assunto, mas sei que são cada vez mais as pessoas do meu círculo de contacto que, no mundo da relojoaria, vão aderindo a estes modelos. As razões para tal vão desde o desejo de ter acesso a um determinado modelo original pelo qual não podem ou não querem pagar determinado valor, até a uma vertente interessante que podemos chamar de test drive. Neste caso, compra-se um relógio homage para experimentar e decidir se depois se vai ou não adquirir o relógio homenageado. E ainda temos aqueles que alegam ter adotado inicialmente um relógio assim como forma de entrar no mundo da relojoaria, experimentar e depois partir para os modelos das marcas tradicionais. Enfim, o tema é polémico e as justificações são muitas, sem esquecer também o simples prazer de poder utilizar algo que agrada sem ser preciso gastar muito dinheiro e sem entrar no mercado de réplicas ilegais.

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Atelier Wen Perception | Foto: Atelier Wen

Nesta questão, tenho uma experiência pessoal a relatar. Adoro relógios com função GMT e já há algum tempo que desejo ter um Rolex Explorer II, embora ainda não tenha chegado o momento certo para o adquirir. Então, influenciado por este movimento dos homages, que vejo que está a acontecer aqui no Brasil, adquiri o seu equivalente de uma marca chinesa e comecei a usá-lo como uma forma de test drive — estou na segunda categoria de pessoas que mencionei mais acima, portanto. Confesso que, no início, gostei da experiência e fiquei surpreendido com a relação preço/qualidade. Até que, numa visita ao meu relojoeiro, o mesmo, numa primeira olhadela de relance, me perguntou se eu tinha comprado o meu desejado Explorer II. Imediatamente esclareci que se tratava de um homage, mas que algo tinha começado a mudar na minha relação com o relógio. E sem querer parecer injusto com os seus adeptos, principalmente aqui no Brasil, comecei a sentir que não era realmente o que desejava. A experiência foi válida para conhecer o produto, percebendo da minha parte, que ainda prefiro um bom design original seja de qual marca for. Sendo assim, vendi o meu homage.

As maravilhosas montanhas Huangshan, na China. Com os seus peculiares picos de granito e os caraterísticos pinheiros que nos oferecem paisagens inacreditáveis © Susana Gasalho
As maravilhosas montanhas Huangshan, na China. Com os seus peculiares picos de granito e os caraterísticos pinheiros que nos oferecem paisagens inacreditáveis | Foto: Susana Gasalho

E se temos a força do Grupo Citizen ou do Grupo Seiko a falar por si no que diz respeito ao Japão, adicionalmente, percebo que, especialmente na China, se nota uma crescente evolução na produção e comercialização de relógios com a existência de cada vez mais marcas que optam pela adoção de criações próprias e de melhor qualidade, bem como com a revelação de nomes que vão ganhando força na relojoaria. Por outro lado, convém não esquecer que, atualmente, uma quantidade significativa de peças de relógios das grandes marcas suíças são produzidas no continente asiático. A mudança de local da produção pode ser uma das explicações para a China ter conseguido nos últimos anos melhorar a qualidade dos seus próprios relógios, graças a transferência de know-how, mão de obra especializada e maquinaria para fabricação de componentes, principalmente das marcas de entrada, que optaram por produzir o máximo de peças no exterior e ficando no limite legal do selo Swiss Made.

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CIGA Design Blue Planet | Foto CIGA Design

Indo mais além, cito como exemplos desta crescente realidade as micro-marcas que não escondem mais a sua opção de produção na Ásia; a marca independente Atelier Wen, criada por dois franceses apaixonados pela China, revela no seu site celebrar a cultura, o artesanato e a relojoaria chinesa. Aliás, o seu relógio Perception tem caraterísticas inspiradas na arquitetura tradicional chinesa, mostrador guilloché feito à mão, caixa e bracelete em aço 904L, e outros atributos de alto nível; já o primoroso trabalho do relojoeiro chinês Qin Gan pode ser apreciado nos elegantes relógios de pulso Pastorale I e II. Também merece destaque o Prémio Challenge para relógios de primeiro preço com a marca chinesa CIGA Design e o seu Blue Planet no Grand Prix d’Horlogerie de Genève de 2021.

Todos estes exemplos são uma mostra do grande potencial do mercado chinês na produção original de relógios de luxo com preços mais acessíveis, sendo certo que num futuro próximo deixem de ser conhecidos somente pela produção de réplicas ou homages, mas antes por produzirem relojoaria de qualidade — como já tem vindo a acontecer. Até porque importa não esquecer que o próprio mercado asiático é, historicamente, um mercado de conhecedores.

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