As oficinas relojoeiras de Babel

Se fossem criadas oficinas de relojoaria infinitas, seriam lá construídos, provavelmente, todos os relógios criados no passado, presente e futuro. Estas seriam as oficinas relojoeiras de Babel.


Crónica originalmente publicada no número 73 da Espiral do Tempo (edição de inverno 2020)


Se infinitos macacos se sentassem em frente a infinitas máquinas de escrever, após algum tempo, em algum lugar, acabariam, provavelmente, por criar verdadeiras obras-primas. Este é o Teorema do Macaco Infinito. Se existisse uma biblioteca com todas as combinações possíveis de 22 caracteres, uma vírgula, um espaço e um ponto final, estariam nela todos os livros escritos no passado, presente e futuro. Esta seria a biblioteca total(1). Se fossem criadas oficinas de relojoaria infinitas, seriam lá construídos, provavelmente, todos os relógios criados no passado, presente e futuro. Estas seriam as oficinas relojoeiras de Babel.

Vamos supor que cada uma destas oficinas é hexagonal, seis por cada andar, unidas em redor de um sétimo hexágono central. O conjunto dos sete hexágonos representa apenas um andar de uma torre infinita ascendente e descendente. Pelo centro da torre, passa um tubo vertical cuja função é dispensar fornituras. Em redor deste tubo, há uma escada em caracol cujas paredes têm expostos os relógios mais reveladores, os mais misteriosos e os mais inúteis. Através do hexágono central, é possível aceder a cada uma das seis oficinas, tal como às escadas. Ao visitar as oficinas, é possível ver três paredes de vidro e três de madeira. Encostadas às três paredes de vidro estão três bancadas de relojoeiro: uma para o mestre; outra, para o aprendiz. A terceira bancada dá suporte às máquinas e ferramentas construídas ao longo das várias gerações de relojoeiros daquele hexágono. As paredes de vidro fornecem toda a luz necessária; porém, ninguém conhece a origem desta luz. Esta é a estrutura das oficinas relojoeiras de Babel. Os relógios aqui construídos são também eles infinitos, e têm capacidade para prever e alterar o tempo, ou simplesmente passar por ele sem lhe atribuir grande importância. Estão identificados, até agora, três tipos: os reveladores, os misteriosos e os inúteis.

Os reveladores

Os relógios reveladores têm capacidade para indicar a hora da nossa morte, a hora do início da vida na Terra, a hora da criação do primeiro relógio ou a hora de maior felicidade da vida de alguém. Mostram-nos, simplesmente, a realidade. Explicam-nos o que existe, sem influência sobre os factos. São relógios honestos, como todas as boas máquinas. Os relojoeiros que os produzem vivem amedrontados pela novidade, pela ameaça ao que está estabelecido. Opõem-se a qualquer ocultação e querem aceder a todo o conhecimento; são os contabilistas do tempo e, ao mesmo tempo, ferozes caçadores de factos e acontecimentos. Controlam obsessivamente tudo o que conseguem, morrem de medo de tudo o que não controlam. Não são os mais criativos. Os seus relógios são, porém, os mais precisos. São supermáquinas cronométricas.

Os misteriosos

Os relógios misteriosos têm capacidade para alterar o tempo. Há, entre eles, os que o aceleram ou retardam, e os que o param ou iniciam. Estes relógios são o oposto dos anteriores. Os relojoeiros que os produzem são seres místicos, com capacidades ocultas. Ninguém conhece os seus segredos, apenas se sabe que são destemidos, totalmente desprovidos de medo. Não temem as consequências da alteração da seta do tempo. Encontram as soluções mais criativas para os problemas mais complexos. São engenheiros do tempo.

Os inúteis

Os relógios inúteis, por seu lado, são mecanismos muito mais complicados do que se possa pensar, mas sem função prática alguma. Há relógios com seis coroas que acertam todas o mesmo ponteiro. Há outros que permitem contar as batidas das asas de uma borboleta e depois convertê-las em letras (sem sentido, normalmente). Outros têm autómatos bizarros, como um que mostra repetidamente a queda de uma folha de ácer no outono. Todos indicam as horas. Os relógios inúteis são construídos por génios artísticos. São relojoeiros hedonistas, filósofos, artesãos dadaístas. Perdem constantemente tempo e não sentem medo nem coragem, apenas prazer. Não aceitam encomendas de relógios, não respondem a indicações superiores. São o motor da liberdade da torre. São os que mais prazer sentem, mas também os que mais sofrem. Os seus relógios são os mais complicados alguma vez produzidos.

A realidade

Cá fora, a realidade é sempre absolutamente bruta, absolutamente crua. Na ausência de macacos infinitos, na ausência da misteriosa biblioteca total, na ausência das oficinas relojoeiras de Babel, olhamos para o nosso relógio e vamos trabalhar. Olhamos para o nosso relógio, mas não vemos o seu mecanismo, escondido lá dentro, no escuro da caixa. Não sabemos exatamente como funciona e não o vamos certamente abrir. Isso era o que fazíamos em criança, quando desmontávamos sempre tudo sem a menor preocupação pelo caminho inverso. Hoje em dia, ninguém tem tempo para aventuras relojoeiras, muito menos coragem. Sem tempo nem coragem, os mistérios crescem, tornam-se mais densos, mais fechados. Será este o melhor caminho? Se há coisa que a infância nos mostra é que a coragem e o tempo não são qualidades que se possam abandonar. Por esta razão, todos devíamos ser relojoeiros. Não digo viver de arranjar relógios, digo estudar relojoaria. Saber verdadeiramente como funciona tudo num relógio. Vai sempre sobrar bastante mistério para descansar os mais românticos e, vamos ser realistas, não pode ser assim tão difícil.

Chronomètre FB 1.1 da Ferdinand Berthoud
O Chronomètre FB 1.1 da Ferdinand Berthoud poderia ser o ponto de partida para o Estocástico26, porque, tal como o relógio imaginado pelo autor, tem janelas que permitem contemplar o mecanismo | © Ferdinand Berthoud

O relógio

Para ilustrar as ideias deste texto, sugiro a criação de um relógio com três janelas de vidro capazes de mostrar o movimento e de permitir que nele entre luz suficiente para observar o mecanismo. A luneta terá gravados 26 caracteres, as 23 letras do alfabeto português, um espaço, um ponto final e uma vírgula. Terá os três ponteiros a que tem direito, para indicar as horas, mas também um quarto ponteiro que se deslocará aleatoriamente, fixando-se em cada uma das 25 posições por não mais do que dois segundos. Este ponteiro saltante vai indicar um conjunto de caracteres que podem ser escritos numa folha. Quatro segundos no mesmo local implicará uma repetição do mesmo caractere. Será um relógio com capacidade para criar a biblioteca total de Jorge Luís Borges e, dessa forma, toda a realidade. Vai chamar-se «Estocástico26».


1 A ideia da biblioteca total foi sendo concebida lentamente, nos últimos séculos. Todo o percurso está descrito no conto «A Biblioteca Total», de Jorge Luís Borges. Começou com Aristóteles, no seu livro Metafísica, acerca das combinações entre átomos. Os que contribuíram para a ideia foram, por ordem: Cícero, Thomas Henry Huxley (avô de Aldous Huxley), criador do Teorema do Macaco Infinito, Fechner e Lasswitz. Depois de «A Biblioteca Total», Jorge Luís Borges escreveu, posteriormente, um segundo conto chamado «A Biblioteca de Babel». A partir deste conto, surgiram várias ideias, como o site https://libraryofbabel.info/, que encontrou uma forma de a reproduzir e onde podem ser pesquisados 10 4677 livros, ainda assim longe dos 251 312 000 livros previstos por Jorge Luís Borges.

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