Geneva Watch Days & Cia: o rescaldo

Em Genebra | Após o cancelamento das duas maiores feiras mundiais da indústria relojoeira devido à pandemia, o Geneva Watch Days emergiu como uma iniciativa que teve o condão de reunir parcialmente a comunidade relojoeira. E não foram apenas as marcas parceiras a beneficiar do fluxo de visitantes.

A comunidade relojoeira vive muito do contacto direto entre os seus protagonistas — desde os representantes das marcas aos colecionadores, passando pela imprensa especializada. Trata-se de uma família habituada a reunir-se pelo menos em duas grandes ocasiões anuais, para além de diversas outras oportunidades pontuais ao longo do ano. O salão Watches & Wonders nem sequer pôde estrear ao vivo a nomenclatura que em 2020 sucedeu à tradicional designação do Salon International de la Haute Horlogerie e teve de se contentar com uma plataforma digital após o anúncio do cancelamento devido à pandemia; a centenária feira de Baselworld, em evidente declínio nos últimos anos, procurou substituir o cancelamento por um adiamento que não caiu no goto de várias marcas expositoras de renome e acabou definitivamente extinta. As conferências e apresentações virtuais ou as sessões no Instagram Live multiplicaram-se e desmultiplicaram-se até fartarem, aumentando a vontade de um regresso à normalidade. E acabou por ser Jean-Christophe Babin, o dinâmico ex-CEO da TAG Heuer que está agora a fazer um trabalho admirável na liderança da Bulgari, quem deu o pontapé de saída para a realização de uma iniciativa que pode bem ficar para a posteridade como o mais relevante rendez-vous relojoeiro do ano.

© Miguel Seabra / Espiral do Tempo
© Miguel Seabra / Espiral do Tempo

Inicialmente previsto para o início do verão, o Geneva Watch Days acabou por se realizar no final de agosto e veio reconfortar muitos agentes do setor sedentos do contacto direto a que estavam habituados. Obviamente que as restrições em vigor e a relutância em viajar condicionaram o fluxo de visitantes, mas todos os que puderam comparecer ficaram consolados com o convívio possível e a possibilidade de manusear as novidades anunciadas por via digital ou até mesmo modelos exclusivamente apresentados no certame genebrino. A Espiral do Tempo decidiu viajar até à cidade de Calvino e o saldo não podia ser mais positivo: visitámos duas dezenas de marcas, entre showrooms montados nos habituais hotéis, as respetivas boutiques ou mesmo sedes em Genebra.

© Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Bvlgari Octo Finissimo Tourbillon Chronograph Skeleton Automatic © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
© Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Urwerk © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

O factor feelgood foi diferente de qualquer outra realização anterior. A proliferação de showrooms nos tradicionais hotéis fez recordar as iniciativas paralelas de várias marcas durante o Salon International de la Haute Horlogerie. O ambiente dos reencontros foi festivo ao longo de quatro dias e a organização montou uma tenda no Quai du Mont-Blanc, em frente ao Hotel Beau Rivage (epicentro da iniciativa), onde todos se juntavam ao fim da tarde.

Girard-Perregaux Free-Bridge Infinity Edition © Girard Perregaux
Girard-Perregaux Free-Bridge Infinity Edition © Girard Perregaux

Depois da tempestade, o arco-íris

O regresso de Genebra foi feito com várias certezas. A primeira é a de que nenhuma plataforma digital, por mais aperfeiçoada que seja, substitui a experiência de contactar ao vivo com um relógio ou ouvir de quem sabe a explicação sobre as opções técnicas e estéticas tomadas num determinado modelo; o confinamento acelerou a adesão de praticamente todas as marcas ao comércio online e o aperfeiçoamento dos seus canais de comunicação digital, mas o ‘real’ do toque e da inerente emoção é mesmo insubstituível. A segunda tem a ver com o grau de exigência: praticamente todas as marcas estão a elevar a fasquia qualitativa no que diz respeito ao design e à concepção dos seus relógios. A terceira é a de que as companhias independentes de alta-relojoaria se mantêm como os principais pontas-de-lança criativos da indústria. E a quarta é a de que a paleta de cores está a alargar-se.

© Czapek
Czapek Antarctique © Czapek

Ainda há uma dúzia de anos predominava uma tendência metropolitana em que a sofisticação do negro assumia protagonismo. A entrada em vigor da moda neo-retro veio recuperar ícones da relojoaria através de reedições e reinterpretações, mas também teve o condão de alterar esse pendor mais urbano. E os mostradores de cor estão cada vez mais presentes nas coleções, alguns deles com tonalidades bem arrojadas. É uma reação natural aos sombrios tempos de crise sanitária, mas também um reflexo do consumo: se antes as pessoas compravam um relógio para a vida, hoje em dia muitos têm um relógio diferente para várias circunstâncias — e, sendo compreensível que as primeiras escolhas sejam de modelos com mostradores brancos, pretos ou prateados, as aquisições seguintes vão para outras opções cromáticas. A adesão a modelos de luxo com mostradores verdes ou vermelhos é cada vez maior, sendo que o azul é quase uma cor incontornável a par dos tons tradicionais que primam pela sobriedade.

Os aficionados buscam cada vez mais algo que faça a diferença e essa distinção pode ser feita através de cores emocionantes, como o denominado Matrix Green do novo Streamliner Centre Seconds da H. Moser & Cie ou o azul transparente das pontes em safira do De Bethune DB28 Steel Wheels Sapphire Tourbillon; a Breitling divulgou mesmo o Endurance Pro em cinco cores! Mas houve uma assinalável exceção, para além do monocromatismo caraterístico da Urwerk ou da linha Octo da Bulgari: a Girard-Perregaux apresentou uma série de vários modelos dotados de um sumptuoso mostrador preto em ónix com ponteiros/índices dourados e grafismo branco.

© Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Esq: Boutique Panerai com a apresentação das novidades; Dta: De Bethune DB28 Steel Wheels Sapphire Tourbillon © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Apresentação F. P. Journe dos novos calendários perpétuos e a mais recente declinação do Elegante. © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Apresentação F. P. Journe dos novos calendários perpétuos e a mais recente declinação do Elegante. © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

Uma fasquia estruturante

A contínua melhoria é sempre exigida aos intérpretes de ponta de qualquer indústria e isso não deixa de acontecer na relojoaria. Mas há um claro elevar do nível médio e mesmo marcas de natureza menos exclusiva e preços mais acessíveis apresentam peças de grande sofisticação. Um exemplo notório é o da Louis Erard, que tem ganho maior respeitabilidade mediante a ação de alguém tão experiente como Manuel Emch — que desde a sua chegada revolucionou o catálogo com parcerias de destaque (o designer Eric Giroud, o arquiteto-relojoeiro Alain Silberstein, o mestre conceptualista Vianney Halter) a um preço acessível, sendo que o grosso da coleção está balizado entre os 1500 e os 4500 euros. Outro caso exemplar é o da Czapek de Xavier de Roquemaurel. Uma jovem marca com um nome histórico da relojoaria que nasceu de crowdfunding e que conquistou a crítica com criações originais. A sua nova linha Antarctique vence muitas outras criações do género de marcas mais experientes e com outros recursos financeiros, associando mostradores especiais e um calibre de manufatura a uma irrepreensível arquitetura integrada.

Girard-Perregaux laureato Infinity Edition 42mm © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Girard-Perregaux Laureato Infinity Edition 42mm © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
Matrix Green do novo Streamliner Centre Seconds da H. Moser & Cie.  © H. Moser & Cie.
Matrix Green do novo Streamliner Centre Seconds da H. Moser & Cie. © H. Moser & Cie.

A Louis Erard marcou presença no Hotel Beau Rivage, mas não fazia parte do elenco oficial do Geneva Watch Days; já a Czapek integrava o lote de marcas ‘associadas’ (com a Artya, a Bovet, a Ferdinand Berthoud, a Louis Moinet, a Maurice Lacroix e a Reuge) que secundou as marcas ‘fundadoras’ (Bulgari, Breitling, De Bethune, Gerald Genta, Girard-Perregaux, H. Moser & Cie., MB&F, Ulysse Nardin e Urwerk). Foi estranho não ver as outras marcas do grupo LVMH (TAG Heuer, Zenith, Hublot) secundar a iniciativa da ‘parente’ Bulgari — até porque várias outras, incluindo algumas do grupo Richemont como a Panerai ou a IWC, aproveitaram a ocasião para criar espaços nas respetivas boutiques onde celebraram as suas últimas novidades. E a F.P. Journe organizou uma exposição dedicada aos 20 anos do Chronomètre à Résonance, complementada com a apresentação dos novos calendários perpétuos e a mais recente declinação do Elegante.

F.P. Journe organizou uma exposição dedicada aos 20 anos do Chronomètre à Résonance. © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
F.P. Journe organizou uma exposição dedicada aos 20 anos do Chronomètre à Résonance. © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

Efeito moralizante

O Geneva Watch Days gerou partilha, intercâmbio e entusiasmo. Recuperou amizades e cumplicidades mantidas à distância desde o início do ano. A organização arriscou e petiscou, com as marcas participantes a serem recompensadas comercialmente e mediaticamente. E o efeito moralizante foi notório: todos os agentes da indústria que marcaram presença estavam contentes, não havendo grandes críticas à organização nem aparentes consequências nefastas de contaminação. Até porque as próprias marcas se encarregaram de oferecer máscaras personalizadas e gel sanitário…

As máscaras e gel personalizadas por cada marca. © Miguel Seabra / Espiral do Tempo
As máscaras e gel personalizadas por cada marca. © Miguel Seabra / Espiral do Tempo

Sobretudo, foi positivo constatar que é possível realizar de novo um evento relojoeiro — apesar das restrições expectáveis tendo em conta o delicado enquadramento da pandemia, perante a ameaça de recrudescimento do vírus e a incerteza no que diz respeito a eventuais quarentenas. Será interessante constatar a reação dos principais aglomerados relojoeiros, o Grupo Swatch e a Richemont, face ao sucesso do Geneva Watch Days, e ver o que mais poderá surgir para saciar a fome de relógios no último trimestre deste tão famigerado ano de 2020.

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