EdT55 — Quem encara, pela primeira vez, o discreto edifício da Cadrans Fluckiger, em St-Imier, na Suíça, talvez não saiba que, sob a chancela Patek Philippe, ali são produzidos diariamente mostradores que serão o rosto de alguns dos mais prestigiados relógios de pulso. Tecnologia, rigor e precisão são palavras-chave desta manufatura. Savoir-faire e dedicação também.
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Originalmente publicado na versão impressa da Espiral do Tempo 55.
A Espiral do Tempo viajou a convite da Patek Philippe

«Sou primo do Cristiano Ronaldo!» — anunciou, em jeito bem divertido, o português que nos recebeu nos ateliers de guilloché da Cadrans Fluckiger, a fábrica de mostradores, com chancela Patek Philippe, localizada em St-Imier, perto de La Chaux-de-Fonds, na Suíça. E se a sua afirmação pode ter sido brincadeira — tendo em conta que se estava a dirigir a um grupo de espanhóis e portuguesa e por sabermos que é uma brincadeira comum entre madeirenses (porque ele é madeirense) —, a verdade é que, podendo ou não ser primo do craque do futebol, é de um craque do guilloché de que estamos a falar. Com efeito, trata-se de um dos poucos artesãos responsáveis por este trabalho nos mostradores da Patek Philippe. A acompanhar os mestres, há, depois, os aprendizes — que absorvem o ofício à moda antiga, numa lógica de ensino-aprendizagem em cadeia, na qual o mestre vai transmitindo o seu saber ao discípulo e guardando algo para si. É que, nestas coisas, há segredos que ficam guardados, porque são esses que fazem com que cada mostrador com decoração guilloché destinado aos relógios da Patek Philippe se revele uma peça única. Os traços da gravação permitem aos mais entendidos distinguir as mãos que lhe deram vida e descortinar algures uma eventual assinatura do artesão. E começámos, assim, esta incursão pela Cadrans Fluckiger in media res, já que o trabalho de guilloché é apenas uma das etapas pelas quais um mostrador pode passar antes de ser emoldurado pela caixa do relógio.
Cadrans Fluckiger

Especializada no fabrico de mostradores e de apliques de alta gama, a Cadrans Fluckiger foi fundada em 1860 por Zelim Jacot e adquirida pela Patek Philippe em 2004. Trata-se de uma instituição que, no final de 2015, contava com 100 colaboradores, responsáveis por uma produção anual de 100.000 mostradores, distribuídos por séries de 500, 100 ou cinco unidades, esta última equivalente a uma série limitada. O fabrico de um só mostrador pode implicar entre 50 e 110 operações, consoante o tipo de série em causa e nível de complexidade, para um período médio de produção de quatro meses. A manufatura não produz mostradores apenas para a Patek Philippe, pelo que os números apresentados implicam uma produção destinada também a outras marcas. Mas passear pelos corredores e pelas salas do edifício da Cadrans Fluckiger representa muito mais do que assistir ao processo de fabrico de mostradores. Trata-se também de uma viagem no tempo. Ali encontram-se desde as máquinas mais avançadas até às ferramentas históricas que são utilizadas à medida de cada momento do processo de produção. Falamos do ontem e do hoje reunidos num mesmo teto.
A arte do guilloché

Voltando ao atelier de guilloché onde trabalha o suposto primo de Cristiano Ronaldo: uma pequena sala guarda diferentes exemplares de máquinas destinadas à realização deste trabalho, catalogado pela própria Patek Philippe como um ofício de alto-artesanato. Com efeito, o guilloché consiste na gravação mecanizada de padrões elaborados em metal. No caso da relojoaria, é utilizada na decoração de mostradores, movimentos, caixas e braceletes. As suas origens remontam ao século XVI, repercutindo-se no mundo da relojoaria ao longo do século XIX para depois cair em declínio nos finais desse mesmo século, altura em que esteve em vias de desaparecer na Suíça. Com o surgimento do gravador a laser, o ofício tradicional renasceu, como que uma reação — com a Patek Philippe a apostar nele em força e com os poucos artesãos que estavam dentro do assunto a conseguirem transmitir o seu conhecimento. São assim resgatadas máquinas antigas. E, entre as máquinas que estão em utilização no atelier de guilloché da Cadrans Fluckiger, há um exemplar datado de 1903 que foi sendo restaurado aos poucos e à medida do mestre que a utiliza. Precisão e paciência são palavras-chave no manuseamento destes instrumentos. «Mediante a rotação simultânea de duas manivelas, o princípio é sempre guiar a ferramenta de corte para realizar finas fendas num suporte de metal em padrões repetidos, em linha reta ou de roseta que permite linhas curvas e uma variedade mais ampla de ornamentos»*. Com um sistema semelhante ao do pantógrafo, trata-se de replicar em miniatura no mostrador em metal o motivo que se encontra numa placa de maiores dimensões. O mais curioso é constatar a diferença a olho nu entre um trabalho de guilloché feito com a intervenção do artesão e um trabalho totalmente mecanizado. Os reflexos de luz são muito mais intensos nos mostradores que resultaram de trabalho manual. E são esses reflexos que se destacam nas caixas repletas de mostradores guilhochados do atelier, fazendo lembrar arcas de tesouros, principalmente se tivermos em conta que são mostradores de ouro, destinados aos mais requintados modelos.
Dos protótipos à etapa final

Na Cadrans Fluckiger, a produção de mostradores compreende diversas etapas, mas apenas algumas são comuns a todos os mostradores. O primeiro momento, passa pela equipa de prototipagem, responsável pela análise da viabilidade dos pedidos dos clientes, pela elaboração dos desenhos técnicos, pelo estabelecimento das especificações técnicas e estéticas e pelo fabrico do ébauche, ou seja, a base limpa que será o mostrador. Esta primeira etapa é concluída com uma tiragem de cinco unidades do mostrador em causa e com a concretização dos níveis de satisfação. Segue-se então a produção em série propriamente dita.
A base dos mostradores é, de um modo geral, o latão (95%), mas também se utiliza ouro, principalmente nos mostradores que serão depois submetidos a trabalhos de alto-artesanato. Perante uma base inicial de metal, são então feitos os primeiros recortes equivalentes às aberturas de determinadas funções ou às aberturas destinadas aos ponteiros. Segue-se então o recorte de perfil que dará ao mostrador a sua forma final. No entanto, há ainda os acabamentos nesta fase inicial que passam pela remoção dos pinos traseiros, bem como acabamentos mecanizados, a amenização de arestas e preparação da superfície que permitirão então conduzir os mostradores para mais uma etapa. É curioso notar que, devido à vibração, o polo de máquinas de CNC, está estrategicamente afastado de outros polos que exigem um efetivo trabalho de precisão manual.

Fora os mostradores guilhochados, esmaltados, cravejados ou em madrepérola, a galvanização é o processo que se segue. Trata-se da deposição por eletrólises de uma camada de metal — que pode oscilar entre os 0,01 e os 10-15 mícrones — sobre a superfície do mostrador, que além do efeito estético é também uma forma de proteção contra a oxidação. Os metais utilizados podem ser diversos, entre ligas de ouro, prata, ródio, ruténio ou níquel. Depois, os mostradores são submetidos a diferentes banhos químicos que lhes permitirão adquirir a tonalidade final desejada, numa paleta que vai desde o cinzento-dourado até ao preto, passando por diferentes tons de cinzento e prata. Segue-se o acabamento que dá vida a nomes como acabamento mate, escovado, aveludado, sablé ou soleil. Para dar um exemplo, o efeito escovado consiste em cobrir o mostrador com um pó branco muito específico e água seguindo-se a passagem manual pela superfície do mostrador de uma escova no sentido vertical. Já o efeito soleil, implica a escovagem mecanizada.
Por esta altura, os mostradores ficam depois prontos para receber os apliques — os indexes e os números. Aplicados pacientemente à mão, com o apoio de ferramentas próprias, por meio de rebites ou por soldadura, os apliques são também concebidos na própria Cadrans Fluckiger. Também há a opção de impressão dos mesmos — nomeadamente nos delicados mostradores esmaltados. Neste caso, é impossível não mencionar o atelier onde técnicos vestidos a rigor — a rigor, neste caso, significa um fato protetor que os cobre dos pés à cabeça, deixando apenas o rosto de fora — posicionam milimetricamente os mostradores num suporte próprio e, por meio de decalque, imprimem os elementos necessários, entre numerais, indexes, escalas e a referência da marca. Semelhante a um laboratório de aparência esterilizada, este espaço é a prova de que a precisão suíça vai muito além dos movimentos mecânicos que equipam os relógios. Segue-se ainda a soldadura de novos pinos na parte traseira que permitirão a fixação no movimento. A etapa final traduz-se, obviamente, no controlo de qualidade.
Nota final

Claro que o processo não está descrito de forma exaustiva e soa a pouco perante o que se viu. Importa, por exemplo, destacar a perícia que está por trás da criação dos mostradores cravejados e dos delicados mostradores esmaltados ou de madrepérola. Com efeito, a reduzida espessura do nácar confere-lhe uma surpreendente fragilidade, pelo que a sua remoção da concha e fixação numa base de latão obrigam a um extremo cuidado. Para que se tenha noção do que estamos a descrever, cerca de 50% dos discos de madrepérola que cobrem os mostradores acabam por quebrar a meio caminho do processo. Já no caso da esmaltagem, falamos de um minucioso ofício artesanal que passa por conseguir obter uma superfície completamente lisa, sem vestígio de qualquer minúscula cratera — algo possível com um preciso controlo da temperatura. E não estamos a referir-nos a trabalhos decorativos elaborados da arte da esmaltagem, bem conhecidos na coleção da Patek Philippe …
Posto isto, fica claro que, em complemento a outras visitas que a equipa da Espiral do Tempo fez a várias artérias de criação da marca genebrina, esta mais recente visita era, sem dúvida, obrigatória. Mais do que uma partilha de segredos, fomos convidados a conhecer um espaço que respira história, também por toda a envolvente de montanha e de verdes que evoca as ancestrais origens da relojoaria suíça. E são as enormes janelas que fazem com que toda essa beleza natural pareça irromper sem tréguas pelo edifício adentro. Os colaboradores, no entanto, revelam-se aparentemente indiferentes ao que os rodeia e concentram-se nos seus ofícios, nas suas funções. Mas acredito que parem para olhar lá para fora, como quem quer respirar um pouco. Da nossa parte, a paisagem falou-nos por instantes mais alto, levando-nos a pensar na serenidade que é necessária para levar a bom porto cada componente ali criado. Mesmo para o craque português do guilloché que todos os dias trabalha com dedicação os futuros mostradores da Patek Philippe, só uma paisagem assim pode garantir aquela serenidade.

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