Complicação inútil nº 4: horas errantes

Nos relógios há uma complicação que naturalmente, como as melhores, não tem utilidade prática absolutamente nenhuma – as horas errantes (wandering hour).

“Não podes perguntar porquê a um tipo como eu. Eu queria voar pelo ar, era audaz, um artista. Adorava a emoção, o dinheiro, toda essa coisa de ser macho. Foi este espírito que fez de mim Evil Knievel. Claro, sentia medo. Tens de ser um idiota para não sentir medo. Mas passei a perna à morte. Tudo passava tão rápido! Num abrir e fechar de olhos. Um Mississippi, dois Mississippi, três Mississippi, quatro Mississippi. Ficas no ar por quatro segundos, és parte da máquina. Nesse momento, se cometeres um erro no ar, dizes para ti mesmo: Oh diabo. Eu vou bater, e não há nada que possas fazer para impedi-lo.” Evil Knievel na sua última entrevista.

Robert Craig Knievel Jr, mais conhecido como Evil Knievel, entre 1965 e 1980, fez 75 longos saltos de mota entre duas rampas. Um dos seus saltos foi a bordo do Skycycle X-2, um foguetão a vapor, com o objectivo de atravessar um lago de 1,6 km. Ao longo da sua vida sofreu 433 fracturas ósseas. Era um tipo corajoso.

Engenharia da coragem

Evel Knievel no foguetão Skycycle X-2.
Evel Knievel no foguetão Skycycle X-2.


Se a coragem se pudesse decompor quais seriam os seus ingredientes? Como seria a engenharia da coragem? Um estímulo demasiado intenso poderia resultar em pânico sem coragem possível para o enfrentar. Seria preciso calcular a resistência do ser humano perante os diferentes estímulos. Como se de um cálculo de resistência de materiais se tratasse. Seria até possível construir uma escala que poderia ir de condutor de Prius a Evil knievel. Cada pessoa pode tender mais para um ponto ou para o outro da escala em alturas diferentes da vida. Porém, normalmente, entusiasmamo-nos com os medos rápidos e não os muito intensos. Interessam-nos aqueles que se encontram no nível do entusiasmo, da excitação, ou mesmo do susto. Somos corajosos quando enfrentamos o medo das alturas, arborismo, escalada, passeios de balão, de avião. Gostamos do medo da velocidade, corridas de motas, de carros, vela, surf. Gostamos da mistura de medos, velocidade e alturas, montanhas russas, bungee jumping, paraquedismo. Não gostamos de contactos directos com leões no passeio, nem de terramotos, nem de assaltos, nem de nada que seja demasiado intenso e rápido como atravessar um lago num foguetão a vapor ou saltar sobre 19 carros numa Harley-Davidson XR-750.

O salto de Evel Knievel na sua Harley Davison XR-1200 por cima de 19 carros.
O salto de Evel Knievel na sua Harley Davison XR-1200 por cima de 19 carros.

O medo em si é feito de descontrolo, de falta de conhecimento. Em criança tememos o escuro porque não conseguimos saber o que esconde. Tememos normalmente o desconhecido. Por exemplo, quando Robert Knievel estava aqueles quatro segundos no ar, com todo o mundo parado de olhos postos nele, tinha um claro conhecimento sobre se se ia despenhar ou não. Esse conhecimento trazia-lhe alguma calma. Não sabia qual iria ser a extensão dos danos do seu acidente e essa dúvida trazia-lhe, como confirmou, algum medo. O conhecimento traz-nos calma. A imprevisibilidade traz-nos medo. Perante todos os tipos de medo, perante todas as suas formas, o conhecimento é sempre uma boa solução.

O medo, a calma e a coragem dos outros

Tudo em nosso redor está em mudança constante, tudo segue um caminho desconhecido, caótico, imprevisível. A meteorologia, a saúde, ou simplesmente um novo trabalho, uma nova relação, todas estas situações são imprevisíveis. Assustam-nos ao ponto de admirarmos quem não as teme, tal como o mundo admirava Evil Knievel pela televisão. As transmissões em directo eram uma novidade na altura e os seus saltos foram os grandes protagonistas desta novidade. As pessoas estavam a aprender a ficar confortavelmente na segurança previsível das suas casas. Por esta razão criámos uma vida artificial, controlada por algoritmos absolutamente previsíveis. Vivemos em casas que nos garantem previsibilidade, por mais que a meteorologia esteja no domínio do caos total, o comando do ar condicionado obedece-nos cegamente.

Evel Knievel no Madison Square Garden.
Evel Knievel no Madison Square Garden.

O desconforto causado pela imprevisibilidade sempre existiu, e foi talvez por essa razão que criámos o próprio tempo. O tempo permite-nos ter uma sensação de previsibilidade sobre o mundo. Queremos os instrumentos que medem o tempo que sejam absolutamente precisos, a precisão distancia-nos da natureza e dessa forma acalma-nos. Criámos o tempo para podermos estar calmos. Precisamos da certeza da precisão horária para, a partir daí, criarmos uma excitação artificial. Ou seja a natureza assusta-nos com a sua imprevisibilidade e o tempo acalma-nos. Porém, aqui surge um novo problema, a calma aborrece-nos.

Para fazer frente a este problema precisamos de medo em doses controláveis, ou de observar outras pessoas a vencerem os seus medos. Queremos sentir medo, mas apenas se pudermos controlar absolutamente a sua intensidade. Dos nossos relógios queremos o mesmo. Queremos que sejam a ferramenta principal no processo de previsão dos acontecimentos. Para estarem à altura desta função devem ser absolutamente precisos. Porém, o problema repete-se também nos relógios, se forem apenas absolutamente precisos tornam-se aborrecidos. Aqui a solução pode ser a que Evil Knievel descobriu: sustos, ou mesmo pânico em doses controladas.

Horas errantes, a complicação inútil

Os quatro Mississipis de Evil Knievel petrificavam um mundo de telespectadores nos anos 60 e 70. Nos relógios há uma complicação que naturalmente, como as melhores, não tem utilidade prática absolutamente nenhuma – as hora errantes (wandering hour). Funciona da seguinte forma, um mecanismo que inclui uma roda de Genebra permite que os marcadores das horas façam uma dança das cadeiras a cada mudança de minuto.

É uma complicação das mais antigas, atribuída aos irmãos Campani em 1600 num relógio oferecido ao Papa Alexandre XII. Os melhores exemplos actuais são o Audemars Piguet Star Wheel e o Urwerk UR-200 que transformou o sistema de discos num sistema de retângulos rotativos.

À esquerda o relógio atribuído aos irmãos Campani em 1600 e oferecido ao Papa Alexandre XII. À direita, uma peça da autoria de Pietro Tommaso Campani Matteo.

Ao observarmos um relógio com horas errantes, por muito breves momentos, sentimos o medo de não saber as horas, de não prevermos e controlarmos o tempo das coisas. Sentimos um medo muito ligeiro, uma excitação, para depois ter a confirmação absolutamente precisa do tempo certo. Este salto dos três mostradores funciona como uma janela para a realidade tal como ela é, completamente imprevisível. Imediatamente a seguir somos devolvidos, em segurança, ao mundo que construímos, calmo e confortável. Horas errantes em relógios certos, não há melhor ideia!

Audemars Piguet Star Wheel e o Urwerk UR-200.

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