Ir ao bolso

EdT56 — Mais um mito do eterno retorno: antes, para se ver as horas era necessário recorrer aos relógios de bolso; agora, a nova geração também vai ao bolso para ver as horas no seu smartphone. Poderão os novos smartwatches inverter essa tendência? A relojoaria tradicional agradece…

Crónica originalmente publicada na edição 56 da Espiral do Tempo (outono de 2016).

 A segunda geração do Apple Watch (assim designado porque iWatch seria uma designação demasiado voyeurista, não?) foi desvelada recentemente com as restantes novidades da marca da maçã dentada e os aperfeiçoamentos relativamente ao modelo precedente foram expectáveis — caixa ‘à prova de natação’, sistema operativo aperfeiçoado (watchOS 3), recurso a novos materiais (passa a existir uma versão em cerâmica). Mais interessante no âmbito da indústria relojoeira foi a tabela apresentada com uma espécie de ranking das marcas com maior volume de vendas em 2015: a Rolex surge em primeiro lugar, depois vem a Apple e o top 11 fica completo com a Fossil, Omega, Cartier, Citizen, Seiko, Patek Philippe, Longines, Tissot e Casio.

Apple Watch Series 2
Apple Watch Series 2, cerâmica © 2016 Apple Inc.

A primeira conclusão óbvia tem a ver com o facto de a Apple não se ter comparado a outras companhias que produzem artigos semelhantes aos seus, o que só confirma a previsão iconoclasta do seu design chief, Jony Ive: a de que o Apple Watch teria como principal objetivo abalar a indústria relojoeira suíça e não apenas dominar o seu segmento. A segunda tem a ver com o termo de comparação sublinhado na apresentação, quando Tim Cook referiu que «só a Rolex está acima de nós»; além da evidência classificativa, a tirada mostra todo um respeito subjacente à Rolex e ao que a marca da coroa vai continuar a representar na cabeça de muita gente: o tal simbolismo que levou o publicitário Jacques Séguéla a referir que «se aos 50 anos não tivermos um Rolex é porque falhámos na vida», tornando-se fonte da ira de tanta gente em França.

Jacques Séguéla percebeu no próprio dia a conotação negativa que foi atribuída à sua declaração e pediu desculpas, explicando-se posteriormente de uma maneira também politicamente incorreta: «aquilo que disse significa que a vida é um sonho, que é preciso sonhar; um Rolex é um símbolo como qualquer outro e poderia ter dito um Ferrari ou mesmo uma caneta Bic, um objeto de culto de que tenhamos vontade de ter. Não há razão para dizer às pessoas que elas estão condenadas a nunca se regalarem na vida. Todos temos o direito, mesmo se formos um qualquer vagabundo, de podermos colocar de lado 1500 euros para um luxo. Temos o direito de sonhar!» A ironia da situação teve a ver com o facto de Jacques Séguela nem sequer possuir um Rolex na altura da celeuma… a mulher ofereceu-lhe um depois, aquando do seu 80.º aniversário; «aos 80 anos finalmente dei certo na vida», ironizou.

Quem diz Rolex, diz qualquer outra marca de prestígio — como a Patek Philippe, incluída na tal tabela da Apple e sobejamente conhecida pela campanha que afiança que «não possuímos um Patek Philippe, apenas o guardamos para a geração seguinte». Alguém imagina semelhante passagem transgeracional relativamente a um smartwatch, com a sua obsolescência programada? Ninguém. E aí reside o grande fosso entre os conceitos de relojoaria mecânica e relojoaria conectável. Não, não me parece que o relógio mecânico seguirá o caminho dos telefones analógicos ou das velhas máquinas fotográficas de película; quanto muito, poderá ser encarado como um artigo rétro num futuro a médio prazo — mas não está tudo o que seja vintage a ganhar valorização, sobretudo os automóveis clássicos? Além de nada bater um relógio mecânico de mostrador analógico na indicação essencial da hora. Além disso, a Apple estar a vangloriar-se das vendas dos seus relógios é um pouco como a McDonald’s assumir-se como o maior vendedor de sushi caso passasse a comercializar comida japonesa — os verdadeiros apreciadores continuariam a comer noutro lado. A inclusão no tal top 11 de vendas tem mais a ver com volume do que com qualquer outra coisa.

    Rolex Oyster Perpetual Datejust Vintage © Miguel Seabra
Rolex Oyster Perpetual Datejust Vintage © Miguel Seabra

Soluções híbridas

E depois há a questão dos alhos e dos bugalhos. Lembro-me de que Franck Muller me disse, logo no início do milénio, que perspetivava um futuro em que a relojoaria mecânica convivesse no pulso com um complemento eletrónico. A própria Linde Werdelin nasceu de um conceito baseado num relógio mecânico que pudesse receber um instrumento eletrónico acoplado no seu topo; uma década depois, as vendas do instrumento (o The Rock, para a montanha; e o The Reef, para mergulho) são completamente residuais. A Montblanc apresentou há dois anos uma correia dotada de um terminal para smartphone que pode ser colocada num relógio mecânico e têm-se sucedido as soluções do género — desde uma bracelete dupla que mete um Apple Watch na parte interior do pulso em oposição ao relógio mecânico sobre o pulso até a pequenas placas a colar no fundo de um relógio mecânico que simplesmente emitem sinais luminosos ou vibratórios para anunciar a chegada de e-mails ou mensagens. E porquê não aproveitar os dois pulsos, com um relógio de um lado e um miniterminal de computador do outro?

O próprio Jean-Claude Biver, responsável pelo polo relojoeiro do grupo LVMH, acredita numa solução complementar para a Hublot baseada eventualmente na bracelete, enquanto fomentou a criação do Carrera Connected na TAG Heuer — com a nuance especial de cada dono de um Carrera Connected poder substituí-lo futuramente por um de calibre mecânico. Com exemplos como o Apple Watch e o Carrera Connected, a nova geração poderá abandonar o costume ancestral de tirar o smartphone do bolso para ver as horas e recuperar o hábito de ter um smartwatch no pulso, o que significa também que lá mais para a frente (possivelmente bem antes dos 50 anos proclamados por Jacques Séguéla) poderá optar por um relógio mecânico propriamente dito.

Mas o que a Apple não percebeu ao divulgar o tal ranking de vendas foi que estava também a mostrar que o azeite e a água não se misturam. Além de marcas puramente suíças, a lista inclui também outras marcas baseadas sobretudo em movimentos de quartzo. E, como se sabe, a Citizen ou a Casio não são concorrentes diretos da Rolex ou da Patek Philippe. É nesse setor que o Apple Watch está a resvalar, não no da indústria relojoeira de luxo: a relojoaria mecânica assenta em valores emocionais difíceis de replicar, cada relógio automático ou de corda manual oriundo de uma das manufaturas mais consagradas transforma-se num objeto de culto ou numa demonstração de status. ET_simb

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