Arnaud Chastaingt: a propósito do novo Chanel J12

Em Paris | A caminho do 20.º aniversário do seu mais emblemático relógio, a Chanel decidiu atualizar o J12 — e a consagração não se fez esperar, com um galardão no Grand Prix d’Horlogerie de Genève e uma bela maquia no leilão Only Watch. Fomos a Paris conversar com Arnaud Chastaingt, diretor criativo do departamento de relojoaria da maison francesa, para tentar perceber como é que se reinventa um ícone fazendo parecer que nada mudou. A entrevista foi esclarecedora e fascinante. O texto completo pode ser lido no número 69 da edição impressa da Espiral do Tempo.

É o responsável pela atualização do J12, um relógio que, não sendo da sua autoria, teve uma grande influência no rumo que deu à sua carreira profissional..
O J12 surgiu num momento-chave para a minha carreira. Foi lançado em 2000. Eu já tinha um fascínio pela casa Chanel e cheguei a Paris vindo de uma região no sul, onde Coco Chanel passou uma fase importante da vida, que influenciou muito o seu estilo. Completei os estudos em Artes Aplicadas e vim para a capital. O universo do luxo interessava-me e a Chanel era a casa do luxo por excelência. A certa altura, disseram-me para estar atento à imprensa, porque a Chanel tinha criado algo de muito especial. Então vi o J12 e fiquei completamente apaixonado. Os relógios não eram uma temática que me seduzisse, mas ao tomar contacto com o J12, fiquei apaixonado — não tanto pelo objeto em si, porque era ainda um universo abstrato para mim, mas pelo look. Eu tinha então 20 anos e os olhos de um jovem criador. O visual, a silhueta, o ar um pouco andrógino, a frontalidade da campanha de comunicação… e era a primeira vez que alguém apresentava um relógio de modo tão autoritário. Senti que era um relógio audacioso e achei-o fascinante. Depois, surgiu o modelo branco, um ato criativo ainda mais radical que se tornou num fenómeno. A cerâmica branca foi então super impactante. Muitos jornalistas não hesitaram em categorizar o J12 como sendo revolucionário. E foi, possivelmente, a primeira grande revolução relojoeira do século XXI. Para mim, foi uma revolução. Foi o relógio que me pôs em contacto com a relojoaria, que me fez entrar nesse universo e passar a compreendê-lo. Entrei para a Chanel em 2003, tornando-me espetador da entrada da Chanel no círculo fechado da relojoaria fina — bruscamente, começou a ser encarada de outra maneira pelas grandes marcas relojoeiras, sendo a relojoaria um círculo tão fechado e, normalmente, um universo de criação que nem é muito audacioso. Quando surgiu, o J12 tinha 38 mm e não era um modelo pequeno para senhora. Na altura, ainda não se viam senhoras a usar relógios maiores, excetuando aquelas belas italianas que já usavam Panerai…

Chanel J12
Chanel J12

O J12 foi uma revolução tanto no seio da Chanel, como no da própria relojoaria. Foi um game changer, nunca se tinha visto algo semelhante…
A Chanel já tinha lançado o Première, em 1987, mas o J12 foi mesmo uma revolução. Temos o perfume dos perfumes, o Nº 5. Temos uma mala icónica, a 2.55. O J12 entrou para esse patamar. Claro que, num universo tão tradicional como o dos relógios, o J12 foi encarado como radical. E ainda hoje é assim. Ou se ama, ou se detesta. E eu até prefiro que seja assim, porque isso para mim é um sinal de sucesso; quando toda a gente me diz que gosta das minhas criações, eu digo para mim mesmo que algo não está bem — prefiro quando há quem me diga que adora e quem me diga que detesta. Acho que é um sinal de sucesso.

Objeto de desígnio - Chanel J12 01

E qual tem sido o seu trajeto ao longo dos últimos anos?
Depois de dez anos na Chanel, estive no departamento relojoeiro da Cartier; trabalhei em coleções de maior produção e em criações mais específicas, com métiers d’art. E só havia uma casa pela qual aceitaria trocar a Cartier: a Chanel. Além do fascínio que tinha pela maison, o departamento relojoeiro tinha uma grande liberdade. Pediram-me que tomasse conta do estúdio de criação. Jacques Helleu morreu alguns anos antes de eu regressar e era um homem de convicções. Não houve ninguém do departamento de marketing a dizer-lhe que era preciso um relógio assim ou assado, preto ou branco, em cerâmica ou de outro tipo. Nada disso. Um dos grandes luxos que temos na Chanel é a liberdade criativa, eu nem sei o que é um briefing de marketing. Por exemplo, ninguém me diz que temos de seguir determinadas tendências de mercado. O que sempre me fascinou na Chanel foi o facto de que, sendo uma casa de moda, é uma casa muito discreta e muito secreta. Ninguém sabe o que se passa na Chanel. Faz parte do ADN da maison, desde sempre. Quando estava na Cartier, sabia o que se passava dentro de outras casas, mas não o que se passa no interior da Chanel. Era um sonho meu trabalhar na Chanel e realizei esse sonho. Somos uma casa de moda com um departamento de criação muito livre, mas na parte do fabrico trata-se de gama alta. Vim encontrar gente que só quer a excelência e apenas a excelência. E isso é importantíssimo.

Arnaud Chastaingt © Chanel
Arnaud Chastaingt © Chanel

E quais foram os passos tomados nos últimos anos que levaram até à atualização do J12, à perenização de um ícone?
Quando regressei, começámos com o Monsieur de Chanel. O antigo presidente do departamento disse-me que a Chanel iria criar o seu próprio movimento. Nem percebi bem, ele teve de mo repetir três vezes. É preciso um investimento enorme e tempo de maturação. Achei fascinante irmos nessa direção. Normalmente, o processo costumava ser de alguma forma fechado, os relojoeiros davam-nos o movimento e nós ‘vestíamo-lo’. No caso do Monsieur de Chanel, os relojoeiros vieram da Suíça ter comigo a Paris e perguntaram-me: o que quer? A situação foi-me apresentada ao contrário; expliquei-lhes então a minha filosofia, o meu modo de ver os movimentos. As complicações. Nunca percebi bem esse termo — para quê complicar se podemos ser simples? Prefiro a clareza. A própria Gabrielle Chanel tinha por filosofia a eficácia e a evidência. E eu disse-lhes: libertem-se de tudo o que não serve para nada. Foi um exercício fascinante. Pedi-lhes para fazerem pontes redondas num círculo perfeito, e o desafio foi enorme. Foi necessária uma grande astúcia, mas eles conseguiram fazê-lo. O impacto técnico que teve fazer com que tudo acabasse em círculo foi enorme. Trabalho com relojoeiros apaixonados pelo processo criativo e que conseguem satisfazer os meus fantasmas mais loucos. A Chanel reconciliou-me com a alta-relojoaria!

Chanel J12 Ref. H5700 Corda automática | Cerâmica branca | 38 mm | Preço sob consulta © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Chanel J12 Ref. H5700
Corda automática | Cerâmica branca | 38 mm | Preço sob consulta © Paulo Pires / Espiral do Tempo

O Monsieur de Chanel estabeleceu um marco importante para a marca, abrindo uma via para o novo J12.
Sim, porque decidimos que o primeiro movimento manufaturado da Chanel seria para homem. Para homem! A Chanel é uma maison feminina por excelência, mas todo o estilo Chanel é construído à volta das influências dos homens na vida de Gabrielle Chanel: os seus amantes, os amigos, os artistas que a acompanhavam, o preto, o smoking — todo o seu estilo vem dos homens que influenciaram a sua vida e o seu estilo, o tweed masculino das suas roupas, o preto dos fatos. É uma marca que tem um lado muito feminino, mas que foi construída à volta do universo masculino; prestámos homenagem póstuma a esses homens, oferecendo-lhes um relógio. Ou seja, um dos paradoxos de que tanto gostamos na Chanel. E, na minha visão do seu processo de criação, não queria cair na caricatura. Acho que muitos estariam à espera de que eu fizesse algo com muito design. Mas eu, enquanto designer, não queria que o Monsieur de Chanel fosse um exercício de design; é um produto relojoeiro construído à volta do movimento e da sua performance — a estética nasceu à volta do calibre com um ingrediente Chanel na tipografia, a janela das horas saltantes que evoca a tampa do perfume Nº 5 e a presença do emblemático leão, que era um símbolo de Gabrielle Chanel, mas que acaba também por ser um símbolo da potência masculina. Depois, fiz o Boy.Friend, um desenvolvimento do Première, que, para mim, é o relógio feminino por excelência da Chanel, e também o Code Coco. Na minha coleção relojoeira, é importante ter estéticas que não se canibalizem. A inspiração vem sempre de uma das diferentes facetas da mulher Chanel.

Chanel J12 Ref. H5697 Corda automática | Cerâmica preta | 38 mm | Preço sob consulta © Paulo Pires / Espiral do Tempo
Chanel J12 Ref. H5697
Corda automática | Cerâmica preta | 38 mm | Preço sob consulta © Paulo Pires / Espiral do Tempo

Mas a inspiração do J12 original não foi propriamente feminina…
Jacques Helleu desenhou o J12 para ele próprio, era um fantasma pessoal do criador — um relógio de homem, mesmo que depois as mulheres se tenham também apoderado dele. Ele concebeu o J12 totalmente preto e de certo modo isso fez com que se tornasse unissexo. Por exemplo, o J12 também é muito usado pelos homens na Ásia, e as novas gerações têm uma abordagem diferente à temática do género, têm menos preconceitos sobre o que é masculino e feminino — e isso é completamente Chanel. Como quando Gabrielle Chanel se disfarçava e se vestia como um homem. Quando apareceu, a versão branca do J12 era mais do que radical: era insolente. Era muito Chanel — a insolência faz parte da audácia de uma casa que não tem impedimentos, nem se deixa influenciar por modas ou estudos de marketing.

O Calibre 12.1 que equipa os novos J12 foi especificamente pensado para ser imediatamente reconhecível, daí a assinatura circular que encontramos no rotor, promovendo ao mesmo tempo a eficiência com a massa na extremidade. O fundo aberto permite contemplar este novo movimento que tem precisão certificada pelo Contrôle Officiel Suisse des Chronomètres (COSC). © Chanel
O Calibre 12.1 que equipa os novos J12 foi especificamente pensado para ser imediatamente reconhecível, daí a assinatura circular que encontramos no rotor, promovendo ao mesmo tempo a eficiência com a massa na extremidade.
O fundo aberto permite contemplar este novo movimento que tem precisão certificada pelo Contrôle Officiel Suisse des Chronomètres (COSC). © Chanel

E quanto tempo levou a maturação do projeto até ao lançamento do novo J12?
O J12 faz parte da minha herança, embora queira descartar esse termo. É preciso consciencializar a minha relação com o relógio, que foi uma espécie de musa para mim numa primeira fase da minha carreira. Enquanto responsável pelo departamento de design, a atualização do J12 faria sempre parte do meu trabalho, mas, numa primeira fase, recusei mexer nele. Reuni a equipa e disse que eu não lhe iria tocar. Entretanto, surgiram demasiadas referências e variantes do J12, e eu queria reconcentrar-me no original, mesmo tendo todas essas variações contribuído para cimentar o J12 enquanto ícone. Houve a versão Marine, muitas variações joalheiras. Não quis tocar no ícone, mas isso não me impediu de brincar com as variantes, de explorar o J12 para assumir a sua posição no mundo da moda sem qualquer vergonha. Criei variações cápsula, o Mademoiselle J12. Sempre assente na excelência e no savoir-faire da Chanel. Até me sentir pronto para mexer no original. Felizmente, a Chanel é uma casa que nos dá tempo. O tempo é um luxo e a Chanel oferece-nos esse luxo. Numa primeira fase, quis mudar tudo: peguei no lápis e mudei tudo até dizer a mim próprio que tinha de parar. Inconscientemente, eu já sabia que iria demasiado longe — mas precisava de tentar. A revolução só acontece uma vez, e não fui eu quem a fez, foi Jacques Helleu. A mim, coube-me fazer a evolução. Um criador precisa de ter uma certa humildade. Tive de pôr o ego de lado, temperar o ímpeto criativo. O J12 foi para mim uma revelação e uma revolução, não o podia desnaturar. As pessoas não se dão conta, mas o mítico frasco do perfume Nº 5 parece nunca ter mudado, e o certo é que, desde a sua criação até agora, deve ter evoluído subtilmente cerca de 15 vezes. Quando me enviou as notas de preparação para esta entrevista, utilizou uma palavra que adorei; usou a expressão «um perfume seu no J12», e eu disse a mim próprio «que loucura, ele já percebeu perfeitamente tudo o que aconteceu!» Gostei muito dessa ideia: um perfume não se vê, mas sente-se. E isso faz toda a diferença. Não procurei mudar ou reinventar o visual do J12, quis apenas deixar uma fragrância. Não se vê, mas é uma assinatura. Essa metáfora do perfume é uma bela imagem que traduz bem aquilo que eu fiz.

Nunca é fácil mexer num ícone sem que perca a sua essência…
Para mim é muito mais fácil começar a partir de uma página em branco e começar do zero do que retocar um ícone como o J12. A responsabilidade é muita. Podemos tocar num mínimo pormenor e perder completamente o pé. Avançamos, recuamos… é um processo quase cirúrgico. Analisar as forças e as relativas fraquezas passado todo este tempo e numa perspetiva contemporânea. Houve pequenos detalhes que achei que devia otimizar para manter a contemporaneidade. Acabei por ser mais um cirurgião estético do que um designer. Foi como me tivesse convencido a fazer um pequeno lifting e fazer com que não se notasse. Gostei muito da sua ideia do perfume, porque acabou por ser isso que aconteceu.

Calibre do novo J12 © Chanel
Calibre do novo J12 © Chanel

Mas houve mudanças e foram muito mais do que se pode supor. Pode precisar quais foram as alterações?
Entre mudar tudo e não mudar nada, escolhi mudar tudo sem nada mudar. Pode ser contraditório, mas foi o que fiz para não desnaturar o J12. Um dos primeiros detalhes que quis otimizar foi a luneta. Havia uma espécie de anel em metal à volta do mostrador que achei demasiado imponente. Aumentei o número de dentes na periferia da luneta, de 40 para 60, mantendo o mesmo aspeto gráfico. Isso permitiu-me aumentar subtilmente a abertura do mostrador. Depois, houve muito trabalho relativamente aos algarismos; não sabemos bem a origem exata dos algarismos, achamos que nasceram do próprio Jacques Helleu — mas com uma lupa, vimos certos aspetos que podiam ser melhorados. Então, resolvi recorrer a um tipógrafo. E é um trabalho incrível. A partir de uma tipografia, pode haver mil variações. A arte tipográfica é uma arte muito específica. Temos na Chanel uma divisão que se ocupa da comunicação e da parte gráfica, mas, para mim, tornou-se evidente recorrer a especialista nessa área. Para os algarismos e não só: era importante ter uma tipografia Chanel mais assumida para o termo «Automatic» e para a designação «swiss made». Além disso, os algarismos passaram a ser inteiramente em cerâmica; antes, eram de uma matéria compósita que permitia ter o número em destaque, mas não em cerâmica. Em Châtelain, existe tecnologia de ponta no fabrico de cerâmica e, ao longo de 20 anos, aprenderam e desenvolveram muito. Agora, há sistemas de moldes de injeção; antes, o fabrico de cerâmica era muito complexo. Disseram-me que podiam fazer os algarismos em cerâmica. Um luxo: a superfície agora é perfeita, enquanto a anterior poderia ter algumas imperfeições. Depois, há também diferenças no caminho de ferro da minuteria, existindo agora um rehaut na orla do mostrador para onde os indexes foram deslocados. Quanto aos ponteiros, são agora mais arredondados na ponta. Além disso, normalmente o ponteiro das horas é mais largo do que o dos minutos; nunca fui um grande fã disso e escolhi terem uma largura equivalente. Nos modelos branco e preto do J12 original, Jacques Helleu optou pelo negativo um do outro… mas naquela altura, não existia SuperLuminova preto, pelo que nesse aspeto Jacques Helleu não conseguiu o negativo perfeito que nós pudemos ter hoje em dia. A luneta tem o mesmo número de cliques numa rotação completa, mas o som é diferente quando a rodamos — sente-se mais qualidade, como sentimos quando ouvimos na rua, sem ver os carros, a diferença entre o motor de um Bentley e o motor de um pequeno Renault.

Leia a entrevista completa no número 69 da edição impressa da Espiral do Tempo.

Outras leituras