GPHG 2019: emoção, paixão, compaixão

Em Genebra | Muitos relógios extraordinários, algumas surpresas e um prémio especial para a causa nobre que está a transcender a comunidade relojoeira: eis o rescaldo à 19ª edição do Grand Prix d’Horlogerie de Genève — que este ano se realizou não só sob o habitual signo da emoção e da paixão, mas também da compaixão e até de uma pretensa redenção. Aqui fica a lista dos vencedores da noite com as devidas notas de bastidores!

Grand Prix de la Haute Horlogerie / Genève / 8  novembre 2019
O Théâtre du Léman completamente cheio © GPHG

Emoção e paixão, como habitualmente. Mas também compaixão e uma pretensa redenção, vários exemplos de inspiração e outros de exaltação. E ainda uma situação caricata do Sol Nascente, uma irónica alusão ao inquilino da Casa Branca e um momento de menor cavalheirismo britânico. Pois é: caiu o pano sobre mais uma animada edição do Grand Prix d’Horlogerie de Genève — a 19ª e última realizada sob os moldes de votação vigentes nos últimos anos. Dentro de semana e meia, no decurso da Dubai Watch Week, a fundação que organiza o mais celebrado evento anual de premiação dos relógios do ano irá anunciar novos contornos no processo de escolha das próximas edições. Os chamados Óscares da Relojoaria vão evoluir no sentido dos Óscares da Academia precisamente com a criação de uma academia baseada numa rede mundial de personalidades ligadas ao setor; cá estaremos para divulgar essa evolução estratégica no seu devido tempo.

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Momento musical e o troféu em destaque. Haverá mudanças de formato já na próxima edição. © GPHG

Já se sabe que, entre as múltiplas eleições destinadas a promover os melhores exemplares do ano, o Grand Prix d’Horlogerie de Genève se destaca pela obrigatoriedade de as marcas inscreverem os seus modelos nas respetivas categorias… havendo marcas que nem sempre o fazem ou que nunca o fizeram. Ou seja, e para esclarecimento de quem está menos a par dos trâmites da iniciativa, a consagração dos melhores é feita apenas entre os exemplares submetidos a concurso.

François-Henry Bennahmias: o discurso do triunfo. © GPHG
François-Henry Bennahmias: o discurso do triunfo. © GPHG

No universo relojoeiro há múltiplos sufrágios que se regem por parâmetros diferentes e um escrutínio livre, mas nenhum tem a pompa e circunstância ou o peso institucional do Grand Prix d’Horlogerie de Genève. Quem não se inscreve não se sujeita ao escrutínio; é mesmo caso para dizer que “quem não está, não faz falta”. E, entre os que estiveram, houve vencedores para todos os gostos: marcas seculares e recentes, nomes conhecidos e surpreendentes revelações, grandes grupos do luxo e pequenos produtores independentes. Atempadamente, já aqui tínhamos deixado a lista dos relógios consagrados com as respetivas imagens.

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Jean-Cristophe Babin, CEO da Bulgari depois de ter liderado a TAG Heuer, somou mais dois troféus a um impressionante currículo © GPHG

A Audemars Piguet foi a grande vencedora do certame com três galardões; a Bulgari e a Voutilainen completaram o pódio com duas estatuetas cada.

O mestre Kari Voutilainen a caminho do palco, devidamente filmado pela Espiral do Tempo... © GPHG
Kari Voutilainen a caminho do palco, devidamente filmado pela Espiral do Tempo. Somou mais dois troféus para o seu ainda curto mas rico historial © GPHG

Mas para já, e antes de mais desenvolvimentos, aqui fica novamente o palmarés da 19ª edição do Grand Prix d’Horlogerie para uma rápida apreciação:

  • Grande Prémio ‘Aiguille d’Or’: Audemars Piguet, Royal Oak Selfwinding Perpetual Calendar Ultra-Thin
  • Relógio de Senhora: Chanel, J12 Calibre 12.1
  • Relógio Complicado de Senhora: MB&F, Legacy Machine FlyingT
  • Relógio de Homem: Voutilainen, 28ti
  • Relógio Complicado de Homem: Audemars Piguet, Code 11.59 by Audemars Piguet Minute Repeater Supersonnerie
  • Relógio Icónico: Audemars Piguet, Royal Oak ‘Jumbo’ Extra-Thin
  • Prémio de Cronometria: Chronométrie Ferdinand Berthoud, Carburised Steel Regulator
  • Relógio de Calendário/Astronomia: Hermès, Arceau L’Heure de la Lune
  • Relógio com Mecânica de Exceção: Genus, GNS1.2
  • Relógio Cronógrafo: Bvlgari, Octo Finissimo Chronograph GMT Automatic
  • Relógio de Mergulho: Seiko, Prospex LX Line Diver’s
  • Relógio de Joalharia: Bvlgari, Serpenti Misteriosi Romani
  • Relógio de Ofícios de Arte: Voutilainen, Starry Night Vine
  • Prémio ‘Petite Aiguille’: Kudoke, Kudoke 2
  • Prémio ‘Challenge’: Tudor, Black Bay P01
  • Prémio Inovação: Vacheron Constantin, Traditionnelle Twin Beat Perpetual Calendar
  • Prémio Audácia: Urwerk, AMC
  • Prémio Revelação: Ming, 17.06 Copper
  • Prémio Especial do Júri: Luc Pettavino, Fundador e Organisador do Only Watch

Grand Prix e a redenção

A Audemars Piguet acabou por se sagrar grande vencedora da noite com a conquista de três troféus – incluindo o mais importante, o ‘Aiguille d’Or’, que é o Grand Prix atribuído entre todos os exemplares finalistas em todas as categorias. E, para o júri, o melhor dos melhores foi o Royal Oak Selfwinding Perpetual Calendar Ultra-Thin, que havia anteriormente sido apresentado como concept watch da equipa de pesquisa e desenvolvimento de produto da secular casa de Le Brassus mas que entretanto passou para produção regular.

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François-Henry Bennahmias no principal momento de consagração da noite © GPHG

No seu discurso final, François-Henry Bennahmias honrou a ‘matriarca’ Justine Audemars e destacou a importância dos ‘fornecedores’ no tecido industrial da relojoaria – depois de já ter discursado duas vezes na sequência da conquista de dois troféus anteriores: o da categoria ‘Relógio Íconico’, graças ao Royal Oak ‘Jumbo’ Extra-Thin com mostrador salmão, e o da categoria ‘Relógio Complicado para Homem’, com o Code 11.59 Minute Repeater Super Sonnerie.

Audemars Piguet Code 11.59 © GPHG
Audemars Piguet Code 11.59 © GPHG

E o CEO da Audemars Piguet aproveitou então para criticar os críticos do Code 11.59, num ato de redenção que não acertou bem no alvo: o Code 11.59 foi arrasado pela crítica, mas no que diz respeito aos modelos de base (três ponteiros; cronógrafo); o complexo 11.59 Minute Repeater Super Sonnerie sempre foi considerado o mais bem conseguido exemplar da nova coleção. A redenção do Code 11.59 prosseguiria no dia seguinte com o exemplar único do 11.59 Tourbillon Skeleton a ser arrebatado por um milhão de francos suíços no leilão Only Watch…

Paixão, até ao fim?

No plano da paixão, e para além da paixão relojoeira que serve de fio condutor à indústria e aos seus aficionados, houve muito a destacar durante a cerimónia. Primeiro, vale a pena salientar o discurso de Max Büsser, que ganhou mais um prémio para o seu sensacional Legacy Machine FlyingT: dedicou o ‘Relógio Complicado de Senhora’ à mulher e às filhas, que lhe serviram de inspiração para conceber algo que nunca estivera na sua mente. Saiu da sua zona de conforto e deu-se muito bem.

MB&F Legacy Machine FlyingT © GPHG
MB&F Legacy Machine FlyingT © GPHG

Depois, há a destacar a atribuição do galardão ‘Petite Aiguille’ (destinado a premiar um modelo com peso relojoeiro a preço acessível) ao Kudoke 2; o casal Stefan e Ev Kudoke foi ao palco receber o troféu e no discurso revelou a inspiração que tinham sido para eles Richard e Maria Habring, que na presente década conquistaram precisamente quatro galardões ‘Petite Aiguille’ no Grand Prix d’Horlogerie de Genève graças a peças de grande valor relojoeiro a preço relativamente acessível (no ano passado triunfaram com o Doppel-Felix, um cronógrafo rattrapante por cerca de 8.000 euros).

Kudoke 2 © GPHG
Kudoke 2 © GPHG

Pena que Stefan e Ev Kudoke não tenham selado a presença no palco com um beijo, como o fizeram antes Richard e Maria Habring! No final, quis tirar uma fotografia aos dois casais precisamente para a poder utilizar como nota de reportagem, mas Richard e Maria insistiram para que ficasse também na imagem. Não se nega um pedido a amigos com quatro troféus do GPHG… acaba por ser a única disponível com os dois casais.

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“That’s the power of love”, como rezava a canção de Huey Lewis © Elizabeth Doerr

Na cerimónia esteve outro casal de destacados relojoeiros, embora sem qualquer peça a concurso: Rebecca Struthers, cujo perfil desvelamos na última edição da Espiral do Tempo, integrou o júri e o seu marido Craig, com quem fundou a Struthers Watchmakers, também estava na sala. É bom ver casais a criar em conjunto e a receber prémios. E houve outro casal, embora sem matrimónio, a receber o galardão do ‘Relógio com Mecânica de Exceção’ pelo GNS1.2 da nova marca Genus: os fundadores Sébastien Billières et Catherine Henry.

Genus GNS1.2 © GPHG
Genus GNS1.2 © GPHG

Nem tanto gentleman

Para além dos casais galardoados, a maior parte dos prémios foram entregues por duplas mistas de membros do júri – um homem e uma mulher. E a situação menos agradável de uma cerimónia que até correu de maneira bem ritmada e rápida foi proporcionada por alguém de quem frequentemente se diz ser um gentleman – talvez por ser muito britânico… – mas que não esteve à propriamente à altura desse atributo na altura em que era mais necessário.

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Nick Foulkes, Max Büsser e Marine Lemonnier-Brennan. A imagem diz tudo. © GPHG

Nick Foulkes, o conhecido colunista e autor, foi ao palco entregar o prémio do ‘Relógio Complicado de Senhora’ na companhia de Marine Lemonnier-Brennan… mas não só não deu a palavra à sua colega do júri como anunciou ele próprio o vencedor e ainda entregou sozinho a estatueta. Ainda por cima tratando-se de um prémio para um relógio de senhora. O facto de ninguém se ter surpreendido com o sucedido diz muita coisa…

Make those hands great again

A categoria ‘Petite Aiguille’, ganha pelo Kudoke2 da Kudoke, foi apresentada por outra dupla mista: Dody Giussani, editora da revista L’Orologio e colaboradora ocasional da Espiral do Tempo, e Carson Chan. A conversa entre ambos começou por um trocadilho com a designação do prémio ‘Petite Aiguille’, que em português significa ‘Pequeno Ponteiro’ mas que em inglês é traduzido por ‘Small Hand’. Foi a oportunidade para uma sarcástica alusão a Donald Trump, de quem se diz ter mãos muito pequenas…

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Dody Giussani e Carson Chan com Stefan e Ev Kudoke, depois da piada das mãozinhas pequenas. © GPHG

Esse acabou por ser o momento mais cómico da cerimónia, apesar de uma outra situação que teve tanto de engraçada como de constrangedora.

Constrangimento nipónico

A Seiko continua a ganhar o respeito de todos os especialistas e a sua qualidade foi premiada pelo segundo ano consecutivo; no ano passado triunfou com a reedição de um modelo histórico na categoria desportiva (o Seiko Prospex 1968 Diver’s Re-Creation, um tributo ao primeiro relógio de alta-frequência da marca: o SLA 025), este ano foi bem sucedida na categoria ‘Relógio de Mergulho’ com o Prospex LX Line Diver’s.

Seiko Prospex LX line diver's © GPHG
Seiko Prospex LX Line Diver’s © GPHG

Com mais de 100 anos na concepção de relógios mecânicos, não foi com excessiva surpresa que a marca nipónica voltou a ser consagrada em pleno coração do país da alta-relojoaria (outra marca de origem asiática, a Ming do conhecido fotógrafo Ming Thein, também conquistou um galardão) — e logo no preciso dia em que a Seiko anunciou que não estaria presente na edição de Baselworld de 2020, mais um rude golpe na organização do certame. Mas a entrega do prémio à Seiko ficou sobretudo marcada pela situação mais caricata da cerimónia.

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Um papel vermelho indesejado… © Miguel Seabra/Espiral do Tempo

Akio Nato (Director e Senior Executive Vice-President da marca) levantou-se e… levou com ele, colado ao fundo das costas, o papel com o seu nome que identificava a sua cadeira. Desceu a escadaria com uma ‘cauda’ de papel vermelha e, a caminho do palco, as pessoas começaram a aperceber-se disso. E começaram a rir-se. Passou ao meu lado e ainda tentei chamar a sua atenção quando me apercebi do papel, mas não ouviu e também ninguém lho tirou. Chegou ao palco com o papel atrás e recebeu o galardão dessa maneira… até que, durante o discurso, o apresentador Edouard Baer foi lá puxar o papel. Akio Nato nem se apercebeu do que se passou na altura, mas provavelmente alguém lhe terá contado depois. Felizmente que os duros códigos de honra ancestrais japoneses já não estão em vigor, como nos tempos em que considerar que se ‘perdeu a face’ podia levar ao hara-kiri. Nem o episódio mereceria ser encarado como tal…

Categoria Challenge: o efeito tetra

A nova categoria que surgiu no ano passado como uma espécie de subdivisão da ‘Petite Aiguille’, mas com modelos de preços até cerca de 4.000 euros, teve como vencedora a Tudor graças ao Black Bay P01 — o quarto (!) galardão na presente década para a marca e para a linha Black Bay em particular, mesmo que o caso do P01 seja especial devido ao seu caráter assimétrico e polarizante porque é um relógio completamente ‘fora da caixa’.

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O risco da Tudor surtiu efeito. O ‘Challenge’ foi ganho não só no sentido metafórico como no literal!

Prémio especial do júri

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Luc Pettavino foi um dos homens da noite e o grande protagonista do dia seguinte © GPHG

Depois de tanta emoção, da pretensa redenção e de muita paixão veio o grande momento de compaixão: o ‘Prémio Especial do Júri’ foi entregue a Luc Pettavino, fundador da iniciativa Only Watch destinada a angariar fundos para a investigação da distrofia muscular que vitimou o seu filho. O timing não poderia ser melhor, porque no dia seguinte o leilão Only Watch acumulou mais cerca de 39 milhões de euros, com um exemplar único Grandmaster Chime em aço da Patek Philippe a granjear 31 milhões e a tornar-se no mais caro relógio de sempre…

Membros do júri e rainhas da noite: Suzanne Wong, com a sua preferência pelo vermelho bem evidente, e Heekyung Yung, com um vestido tradocional coreano © GPHG
Membros do júri e rainhas da noite: Suzanne Wong, com a sua preferência pelo vermelho bem evidente, e Heekyung Yung, com um vestido tradicional coreano © GPHG

Aparentemente, a cerimónia continuará a realizar-se no subterrâneo Théâtre du Léman, mas continuo a achar que o Grand Théâtre é o palco mais nobre e natural para o certame — tanto pela grandiosidade da sua entrada como pelo salão que acolhe o jantar de gala pós-cerimónia.

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Fabrizio Buonamassa, diretor criativo do departamento relojoeiro da Bulgari, na sequência da chamada de atenção do seu CEO, Jean-Christophe Babin © GPHG

Quanto aos condicionalismos que restringem a eleição aos relógios formalmente inscritos, o peso institucional e mediático do Grand Prix d’Horlogerie de Genève merecia uma adesão total, mas já se sabe que a concorrência entre grandes grupos de luxo e orgulhosas marcas é muitas vezes não salutar porque ninguém gosta de perder e ainda há aqueles que detestam não ganhar. Espera-se que o novo conceito a anunciar em breve na Dubai Watch Week torne o Grand Prix d’Horlogerie de Genève ainda mais abrangente…

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François-Henry Bennahmias (CEO Audemars Piguet), Luc Pettavino (Founder & Organiser Only Watch), Nicolas Beau (Global Head of Watches & Fine Jewelry Business Development Chanel), Maximilian Büsser (Owner & Creative Director of MB&F), Kari Voutilainen (Owner, Voutilainen), Karl-Friedrich Scheufele (Presidente Chronométrie Ferdinand Berthoud), Laurent Dordet (CEO Hermès Horloger), Sébastien Billières et Catherine Henry (Co-founders, Genus), Jean-Christophe Babin (CEO Bulgari), Akio Naito (Director & Senior Executive Vice-President da Seiko Watch Corporation), Ev e Stefan Kudoke (Owners, Kudoke), Eric Pirson (CEO Tudor Watches), Ming Thein (Owner, MIng), Martin Frei & Felix Baumgartner (Co-founders, Urwerk), Louis Ferla (CEO Vacheron Constantin)

E fica assim concluído o rescaldo à 19ª edição do Grand Prix d’Horlogerie de Genève – para o ano há mais!

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